Bom trabalho de José Milhazes que apraz registar, para nos irmos dando
conta do que temos a leste, em termos de dominação russa, mais propriamente
no Nagorno-Karabach,
na Bielorrússia e na Quirguízia. José Milhazes conta como é, e
o impacto que as ânsias de independência nos povos trazem de instabilidade e de
luta constante, a que a U E está bastante alheia, entregue, ela própria, aos
seus arranjinhos e/ou carências…
Rússia: Ter mais olhos do que a barriga / premium
A situação no Nagorno-Karabach, Bielorrússia
e Quirguízia são três exemplos de que o poder do Kremlin na sua “zona de
influência” não se traduz em capacidade de resolver as crises que atingem a
região
JOSÉ MILHAZES
OBSERVADOR, 02 nov 2020
A política externa russa dá cada vez
mais claros sinais de cansaço e impotência, processo
que não se deve ao “auto-isolamento” de Serguei Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, devido
à pandemia, mas por causa dos erros graves cometidos pela sua diplomacia.
A
situação no Nagorno-Karabach, Bielorrússia e Quirguízia, são três exemplos de que o poder do Kremlin na sua
“zona de influência” não se traduz numa capacidade de resolver as crises que
atingem esses países.
Comecemos
pela Bielorrússia, o mais
importante aliado da Rússia e país estratégico que serve de tampão entre ela,
por um lado, e a União Europeia e a NATO por outro. Depois de “deixar escapar” a Estónia,
Letónia, Lituânia, a Geórgia e a Ucrânia, a
aproximação de Minsk ao Ocidente abriria, para os estrategas que continuam a
operar com categorias do século XIX e primeira metade do século XX, caminho ao
avanço dos tanques da Aliança Atlântica rumo a Moscovo.
Aparentemente, o Kremlin parece ter vencido a batalha contra a oposição bielorrussa ao
manter no poder Alexandre
Lukachenko e adquirido maior capacidade de pressão sobre o
ditador do país vizinho. Nos
últimos anos, Lukachenko estava a realizar uma política de aproximação à União
Europeia e de afastamento em relação à Rússia, tentando, ao mesmo tempo,
continuar a receber bónus como preços mais baixos dos combustíveis russos, etc.
Para o regime de Vladimir Putin, essa política acabaria por provocar um
sério confronto entre o seu país e a UE. Porém, agora, esse
“pesadelo” está fora de hipóteses. Lukachenko viu as portas ocidentais
fecharem-se.
Nesta
situação, a Rússia tem todas as possibilidades para se livrar de um parceiro
odioso e criar condições para normalizar a situação na Bielorrússia e
incentivar as relações bilaterais. Porém, até agora, não tem conseguido superar
os obstáculos existentes.
O
principal é o próprio Lukachenko,
que vai convencer o seu homólogo russo, Vladimir Putin, de que não existe alternativa a ele próprio. Caso ele deixe de “mexer os cordelinhos”, a Bielorrússia será
palco de mais uma “revolução colorida”.
Isto,
por sua vez, irá fazer com que as prometidas reformas constitucionais, com
vista a uma mais equilibrada divisão de poderes entre o
Presidente, o Parlamento e o Governo,
bem como à realização de eleições presidenciaIs antecipadas, não levem à
pacificação necessária à sociedade bielorrussa.
Além
do mais, o Kremlin ainda não aprendeu a trabalhar e a dialogar com as
oposições, nem dentro nem fora da Rússia. Os políticos russos e seus
conselheiros continuam a olhar para os adversários de Lukachenko como para
“agentes do Ocidente”, “quinta coluna”, etc., não querendo ver diferentes
correntes no seu seio. Isto, bem como as ameaças de Putin de enviar tropas para
a Bielorrússia, criaram na sociedade bielorrussa disposições anti-russas que
antes não existiam.
Por
isso, os protestos não param e a situação política na Bielorrússia está longe
da sua solução.
No
que diz respeito a Nagorno-Karabach, território
do Azerbaijão onde a
maioria da população é arménia, a Rússia não está a conseguir congelar o
conflito tão rapidamente como em crises anteriores e está a permitir a entrada
de novos jogadores, neste caso, a Turquia, que não ajudam nessa tarefa.
(Aqui
falamos em congelar e não em resolver o conflito, pois este tem uma forte
componente étnica e serão necessários muitos esforços e anos para que se
encontre uma solução).
Os
Estados Unidos tentaram
conseguir um cessar de fogo uma vez e, embora o Presidente Donald Trump tenha
afirmado que se trata de um conflito de fácil solução, desistiram, pois o mais importante é a vitória nas
presidenciais e Nagorno-Karabach não é o Médio Oriente. Da União Europeia não vale a pena
falar, porque ela está mergulhada na luta pela sua própria sobrevivência.
A Rússia, por sua vez, encontra-se perante um forte dilema: não pode deixar de ajudar o seu aliado arménio, mas
também não pode romper com um parceiro estratégico como o Azerbaijão, tanto
mais que este último tem o apoio da Turquia, país que é, ao mesmo tempo,
parceiro e concorrente de Moscovo na região.
Até
agora, o Kremlin tem conseguido manter um equilíbrio muito importante, mas
este não agrada muito aos dirigentes da Arménia. Qualquer
cedência em Nagorno-Karabach pode
significar para eles a perda do poder, mesmo que isso diga apenas respeito às
regiões azeris controladas pelos arménios.
Os
actuais líderes arménios, num
momento em que a situação militar não lhes é favorável, consideram que a
Rússia deve proteger o seu país em conformidade com o Tratado da Organização de
Defesa Colectiva. Porém,
Moscovo responde que isso só poderá acontecer se as tropas do Azerbaijão
atacarem território arménio. Ora,
segundo o Direito Internacional, Nagorno-Karabach é parte integrante
do Azerbaijão. Além disso,
o Kremlin não está satisfeito com o governo
arménio, que procura diversificar os seus parceiros internacionais e receia que
ele se queira afastar da Rússia.
A
entrada activa da Turquia neste conflito vem complicar a vida à diplomacia
russa, pois são conhecidos os apetites do Presidente Erdogan naquela região. Por outro lado, é já um factor inevitável.
Por isso, a Rússia terá de conseguir dialogar com a Turquia e o Irão, outro
jogador neste conflito, mas de forma a que sejam respeitados os seus interesses
estratégicos. O Kremlin não pode permitir a aproximação de grupos terroristas
das suas fronteiras, principalmente do Cáucaso Norte, sério “tendão de
Aquiles”.
Na
Quirguízia, a luta
entre clãs levou ao terceiro golpe de estado desde 2005. Por
enquanto, nenhuma dessas mudanças bruscas prejudicou as relações entre esse
país e a Rússia. Todavia,
o Kremlin não pode continuar a dispensar apoio político e económico a grupos
criminosos que se alimentam do tráfico de drogas do Afeganistão para a Europa e
do trânsito ilegal de produtos chineses, pois arrisca-se a perder o controlo da
situação.
Cada vez com menos aliados, a Rússia deverá orientar a sua política
externa por objectivos pragmáticos, e não por sonhos quiméricos como a
“restauração da URSS”. E que não permita que os “seus olhos comam mais do que a
barriga”.
COMENTÁRIOS:
Gabriel
Henriques: Este Milhazes não precisa de ser crente
no Diabo, porque já tem um trauma com a Rússia
Antonio Tavares: Os serviços do
estado da Rússia são um sistema tipo oligarquia fascista com apoio religioso e
mantido em funcionamento através dos negócios na área de petróleo e do gás. Os
políticos e militares da Rússia têm uma atitude agressiva e bélica em relação
aos países vizinhos.
Adelino Lopes: Eu tenho uma
teoria: devemos olhar para as situações com os olhos das pessoas que as
vivem. Não significa concordar com elas. Significa perceber a lógica que
serviu de base às suas decisões. Por ex, falar das eleições americanas sob o
olhar dos europeus é no mínimo estúpido. O mesmo se aplica aos russos.
Só que no caso da Rússia existe um problema. A liberdade dos jornalistas
russos, ou a trabalharem na Rússia. Por isso, é que a opinião do José
Milhazes é muito importante. Tal como foi muito importante, todas as
conversas que consegui ter com uma russa que costumava almoçar comigo. E tantos
outros que fui conhecendo aqui e ali. Os livros da Svetlana são um óptimo começo.
Obviamente que uma andorinha não faz a primavera, mas começa a compô-la. E pelo
que sei, será muito difícil aos russos dialogarem com quer que
seja, porque pura e simplesmente não conseguem perceber/aceitar o ponto de
vista contrário. São radicais.
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