sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Os ovos da tia

 

De Fradique Mendes…

A indignação de MEC a respeito da pronúncia abandalhada ou pretensiosa da língua americana trouxe-me à lembrança a conhecida “Carta de Fradique Mendes a Madame S”, em “A Correspondência de Fradique Mendes, IV” (que felizmente a Internet me permite transcrever sem custo, no que lhe fico grata pelas páginas memoráveis queirosianas a que nos dá acesso). Coloco-a, pois, no fim, no prazer de uma escrita que alia sensatez, saber e elegância expressiva, pese embora uma certa afectação maneirista, de altivez patriótica ou de bom senso apenas, repito, já que dificilmente um estrageiro consegue reproduzir a fonética dos naturais de um país, a menos que ali esteja enraizado de longa data. Não quero, com essas magníficas páginas de Eça, contestar os considerando de MEC, a respeito dessa deturpação que a sua sensibilidade de expert na língua inglesa captou, deturpação que em nós é fruto apenas de pedantismo e de saloiice ignara, de quem igualmente deturpa constantemente a sua própria língua, indiferente ao respeito que ela nos merece a todos. Mas, sim, leiamos também Eça, e sempre Eça, “falemos nobremente mal, patrioticamente mal, as línguas dos outros!”, como escreveu “Fradique”. Aqui apenas acrescentaria – mas aprendamos a falar e a escrever patrioticamente bem a nossa língua, SenhoresQuanto a agacharmo-nos, apenas o façamos para pedir ovos no estrangeiro, como o fazia a tia de Fradique, em superior destaque representativo, à falta de expressão linguística adequada...

OPINIÃO

Lil’ monkeys lusos

Em 2020 a pronúncia portuguesa da língua inglesa parece uma declaração de ódio à pronúncia americana.

MIGUEL ESTEVES CARDOSO

PÚBLICO, 20 de Novembro de 2020

Sendo admirável que tantos jovens falem fluentemente inglês é pena que a pronúncia seja tão americana. Nos Estados Unidos da América são tantas as pronúncias encantadoras que é impossível preferir só uma. O horror é quando chega às nossas bocas onde a língua se arrasta e enrola como se estivéssemos a fazer pouco dos americanos.

Em 2020 a pronúncia portuguesa da língua inglesa parece uma declaração de ódio à pronúncia americana. É um ódio acústico que não deve corresponder a qualquer inimizade - e por isso mesmo é mais aberrante.

Quem diria que seria a Internet a ensinar os portugueses a falar inglês? E, para mais, em curtos vídeo-cliques, que tanto contribuem para o aprofundamento cultural que se quer.

Noto também, nas versões portuguesas, as inflexões trocistas e sarcásticas em que os americanos são especialistas. Só que os portugueses obviamente não conseguem copiar as subtilezas, as modulações e os distanciamentos sociais do grande multiverso dos EUA e o resultado é uma apropriação grosseira que parece reduzir-se, mais uma vez, a grunhidos armados em bons - quase um macaquear expedito.

É pena que os franceses, italianos e restantes europeus estejam tão fracamente representados na Internet. É altura de tornar obrigatória a aprendizagem do francês e do italiano nas escolas (e posteriormente do castelhano e alemão), para ver se os jovens portugueses ganham mais mundo, mais referências, mais escolhas, mais alegria de viver.

Os franceses, italianos, gregos e espanhóis sabem viver. Os portugueses ainda vão sabendo mas essa graça e esse jeito perdem-se com facilidade e levam gerações inteiras a recuperar.

Não é macaqueando o à-vontade passivo-agressivo e conscientemente fake dos americanos que vamos lá

TÓPICOS  OPINIÃO  INGLÊS  LÍNGUAS  INTERNET

 

COMENTÁRIOS

ATV INICIANTE: Estou a sorrir. A sorrir porque na realidade já não sei que inglês é que falo. O certo é que aprendi British, passei mais de 11 anos nos EUA e depois dois em Inglaterra... Nas conferências, com o nervoso de fazer a coisa bem feita, sei que deslizo para o British (já ouvi bocas sobre não saberem que era inglesa), mas no dia-a-dia, não faço ideia... dou por mim a usar as duas pronúncias, os diversos jargões e expressões. Escrevo em British ou American English consoante a revista a publicar... valham-nos os correctores automáticos que nos permitem não cometer honorable/honourable mistakes! Mas também sou culpada de não conseguir ter um jargão profissional em português para poder usar com os alunos, pelo que são aulas em versão erasmiana de cidadã do mundo... mas o meu tema é lixado, confesso.

Ceu Mateus INICIANTE: Sim, porque o domínio do português pelos ingleses é admirável. Quer ao nível do domínio da pronúncia quer das próprias expressões idiomáticas. Os americanos tb não estão mal. Mas, claro, não ao nível dos ingleses...

Fugo EXPERIENTE: Pois, é no que dá não termos uma cultura activa e visível. Procuramos identidades noutros lugares. A internet vem a jeito para a aculturação. Como por cá a maioria de tudo é norte-americano, é esse modus vivendi de pacotilha que absorvemos sem qualquer tipo de filtro. Nos anos setenta e oitenta ainda tínhamos filmes italianos e franceses nos cinemas. Agora aprendemos pela net e apenas o que queremos ver e ouvir, imitando sem "tutorial". Os governos têm-nos dado miséria ao nível do Ministério da Cultura. Assim, esquecemo-nos que existe vida para além do "fast and furious".

martins.ruijorge MODERADOR: Brilhante, caro MEC. Só acrescentava o hábito absolutamente irritante de entremear expressões americanas no meio das conversas e designações inglesas para coisas que, até há meia dúzia de anos tinham equivalente português. Já não vou beber um copo ao bar da praia, vou a um sunset. Já me torno religioso nos enrolanços com um sonoro oh, my god e até a praguejar já uso a F word. Desabafos. Estou a ficar velho.

Sandra. MODERADOR: Estás é a ficar burguês. :-)

martins.ruijorge MODERADOR: Se calhar é isso, Sandra :-))

nunos INICIANTE: Em cheio. Este texto devia ser dado nas escolas.

 

In “A Correspondência de Fradique Mendes” (< Internet)

A MADAME S. Paris, Fevereiro. Minha Cara Amiga. — O espanhol chama-se Dom Ramon Covarubia, mora na Passage Saulnier, 12, e como é aragonês, e portanto sóbrio, creio que com dez francos por lição se contentará amplamente. Mas se seu filho já sabe o castelhano necessário para entender os Romanceros, o D. Quixote, alguns dos «Picarescos», vinte páginas de Quevedo, duas comédias de Lope de Vega, um ou outro romance de Galdós, que é tudo quanto basta ler na literatura de Espanha,para que deseja a minha sensata amiga que ele pronuncie esse castelhano que sabe com o acento, o sabor, e o sal dum madrileno nascido nas veras pedras da Calle-Mayor? Vai assim o doce Raul desperdiçar o tempo, que a Sociedade lhe marcou para adquirir ideias e noções (e a Sociedade a um rapaz da sua fortuna, do seu nome e da sua beleza, apenas concede, para esse abastecimento intelectual, sete anos, dos onze aos dezoito) — em quê? No luxo de apurar até a um requinte superfino, e supérfluo, o mero instrumento de adquirir noções e ideias. Porque as línguas, minha boa amiga, são apenas instrumentos do saber como instrumentos de lavoura. Consumir energia e vida na aprendizagem de as pronunciar tão genuína e puramente, que pareça que se nasceu dentro de cada uma delas, e que, por meio de cada uma, se pediu o primeiro pão e água da vida — é fazer como o lavrador, que em vez de se contentar, para cavar a terra, com um ferro simples encabado num pau simples, se aplicasse, durante os meses em que a horta tem de ser trabalhada, a embutir emblemas no ferro e esculpir flores e folhagens ao comprido do Pau. Com um hortelão assim, tão miudamente ocupado em alindar e requintar a enxada, como estariam agora, minha senhora, os seus pomares da Touraine? Um homem só deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua da sua terra: — todas as outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro. Na língua verdadeiramente reside a nacionalidade;e quem for possuindo com crescente perfeição os idiomas da Europa, vai gradualmente sofrendo uma desnacionalização. Não há já para ele o especial e exclusivo encanto da fala materna, com as suas influências afectivas, que o envolvem, o isolam das outras raças; e o cosmopolitismo do Verbo irremediavelmente lhe dá o cosmopolitismo do carácter. Por isso o poliglota nunca é patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe no organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir. O seu patriotismo desaparece, diluído em estrangeirismo. Rue de Rivoli, Calle d’Alcalá, Regent Street, Willelm Strasse — que lhe importa? Todas são ruas, de pedra ou de macadame. Em todas a fala ambiente lhe oferece um elemento natural e congénere, onde o seu espírito se move livremente, espontaneamente, sem hesitações, sem atritos. E como pelo Verbo, que é o instrumento essencial da fusão humana, se pode fundir com todas — em todas sente e aceita uma Pátria. Por outro lado, o esforço contínuo de um homem para se exprimir, com genuína e exacta propriedade de construção e de acento, em idiomas estranhos — isto é, o esforço para se confundir com gentes estranhas no que elas têm de essencialmente característico, o Verbo — apaga nele toda a individualidade nativa. Ao fim de anos esse habilidoso, que chegou a falar absolutamente bem outras línguas além da sua, perdeu toda a originalidade de espírito — porque as suas ideias, forçosamente, devem ter a natureza, incaracterística e neutra, que lhes permita serem indiferentemente adaptadas às línguas mais opostas em carácter e génio. Devem, de facto, ser como aqueles «corpos de pobre» de que tão tristemente fala o povo — «que cabem bem na roupa de toda a gente». Além disso, o propósito de pronunciar com perfeição línguas estrangeiras, constitui uma lamentável sabujice para com o estrangeiro. Há aí, diante dele, como o desejo servil de não sermos nós mesmos, de nos fundirmos nele, no que ele tem de mais seu, de mais próprio, o Vocábulo. Ora isto é uma abdicação de dignidade nacional. Não, minha senhora! Falemos nobremente mal, patrioticamente mal, as línguas dos outros! Mesmo porque aos estrangeiros o poliglota só inspira desconfiança, como ser que não tem raízes, nem lar estável — ser que rola através das nacionalidades alheias, sucessivamente se disfarça nelas, e tenta uma instalação de vida em todas, porque não é tolerado por nenhuma. Com efeito, se a minha amiga percorrer a Gazeta dos Tribunais, verá que o perfeito poliglotismo é um instrumento de alta escroquerie. E aqui está como, levado pelo diletantismo das ideias, em vez dum endereço eu lhe forneço um tratado!... Que a minha garrulice ao menos a faça sorrir, pensar, e poupar ao nosso Raul o trabalho medonho de pronunciar Viva la Gracia! e Benditos sean tus ojos! exactissimamente como se vivesse a uma esquina da Puerta del Sol, corn uma capa de bandas de veludo, chupando o cigarro de Lazarillo. Isto todavia não impede que se utilizem os serviços de D. Ramon. Ele, além de Zorrilista, é guitarrista; e pode substituir as lições na língua de Quevedo, por lições na guitarra de Alma viva. O seu lindo Raul ganhará ainda assim uma nova faculdade de exprimir — a faculdade de exprimir emoções por meio de cordas de arame. E este dom é excelente! Convém mais na mocidade, e mesmo na velhice, saber, por meio das quatro cordas duma viola, desafogar a alma das coisas confusas e sem nome que nela tumultuam, do que poder, através das estalagens do Alundo, reclamar com perfeição o pão e o queijo — em sueco, holandês, grego, búlgaro e polaco. E será realmente indispensável mesmo para prover, através do Mundo , estas necessidades vitais de estômago e alma — o trilhar, durante anos, pela mão dura dos mestres, «os descampados e atoleiros das gramáticas e pronúncias», como dizia o velho Milton? Eu tive uma admirável tia que falava unicamente o português (ou antes o minhoto) e que percorreu toda a Europa com desafogo e conforto. Essa senhora, risonha mas dispéptica, comia simplesmente ovos — que só conhecia e só compreendia sob o seu nome nacional e vernáculo de ovos. Para ela huevos, oeufs, eggs, das ei, eram sons da Natureza bruta, pouco diferençáveis do coaxar das rãs, ou dum estalar de madeira. Pois quando em Londres, em Berlim, em Paris, em Moscovo, desejava os seus ovos — esta expedita senhora reclamava o fâmulo do Hotel, cravava nele os olhos agudos e bem explicados, agachava-se gravemente sobre o tapete, imitava com o rebolar lento das saias tufadas uma galinha no choco, e gritava qui-qui-ri-qui! có-có-ri-qui! có-ró-có-có. Nunca, em cidade ou religião inteligente do Universo, minha tia deixou de comer os seus ovos — e superiormente frescos! Beijo as suas mãos, benévola amiga. — FRADIQUE.

2 comentários:

Guilherme da Silva Figueiredo disse...

O que Eça diz é: para não fazermos figuras tristes como a sua tia, devemos falar línguas. Sabia?

Por AmaisB disse...

Sr. Guilherme Figueiredo, leu o que disse Eça? Creio que interpretou erroneamente.
Volto a transcrever:
«Um homem só deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua da sua terra: — todas as outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro. Na língua verdadeiramente reside a nacionalidade; — e quem for possuindo com crescente perfeição os idiomas da Europa, vai gradualmente sofrendo uma desnacionalização. Não há já para ele o especial e exclusivo encanto da fala materna, com as suas influências afectivas, que o envolvem, o isolam das outras raças; e o cosmopolitismo do Verbo irremediavelmente lhe dá o cosmopolitismo do carácter. Por isso o poliglota nunca é patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe no organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir. O seu patriotismo desaparece, diluído em estrangeirismo.»

Não significa que concordemos com Eça, ora essa! Faz o senhor muito bem em falar muitas línguas, por via do cosmopolitismo. E do preciosismo também. Só posso elogiar. E invejar. Berta Brás