Que al
Wahhab supere hoje o espírito de liberdade de expressão que,
no século XVIII europeu, pôde “iluminar os espíritos” graças à pena acutilante
de Voltaire (e não só),
que já nos seus muitos contos satíricos – e não só nos tratados referidos no
excelente artigo que encontrei na Internet, de José Pedro Teixeira Fernandes, contra a intolerância religiosa, e me
fez recordar muitas leituras da sátira voltairiana, que ainda fiz no liceu, por
volta do meu 7º ano, “Micromégas”, Zadig,
L’Ingénu, Candide, o poema “sur le
desastre de Lisbonne”, e me deliciavam na sua desmesura irreverente e
peripécias cheias de imaginação caricatural tantas vezes. Mas desconhecia al Wahhab, tão importante hoje, na justificação dos
atentados que têm vindo a processar-se, com a infiltração islamita no mundo
europeu, fundados num radicalismo fundamentalista que coloca em Alá a
exclusividade da orientação legislativa e política, segundo os desígnios
sunitas. Uma análise profundamente esclarecedora da evolução do espírito
crítico, constitui este texto de JPTF,
contra a intolerância religiosa clerical no século XVIII francês, expressa
altissonantemente por Voltaire, tanto no “Caso Calas”, como no caso Helvétius, segundo refere bem expressivamente, o articulista. E tudo isso a propósito do atentado
islâmico contra o “Charlie Hebdo”, contra
uma inusitada liberdade de expressão imprópria, repudiada pelo fundamentalismo
islamita, segundo conceito dos seguidores de al- Wahhab.
O certo é que os atentados terroristas,
de intolerância religiosa ou outro qualquer motivo, estão para durar, pobre
Europa. E pobre França, pátria do Iluminismo…
OPINIÃO
O futuro da liberdade de expressão: quando al-Wahhab
supera Voltaire
Os europeus do século XXI arriscam-se
a ser menos livres de expressar o seu pensamento do que Voltaire no século
XVIII.
JOSÉ PEDRO
TEIXEIRA FERNANDES
PÚBLICO, 12 de
Janeiro de 2016
1.
Voltaire, pseudónimo de François-Marie Arouet (1694-1778), é incontornável no
Iluminismo francês e europeu do século XVIII. A defesa da tolerância
religiosa e da liberdade de expressão estão-lhe estreitamente associadas.
"Não concordo com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu
direito a dizê-lo.” A frase é
um poderoso argumento clássico a favor da liberdade de expressão. Ao
contrário do que muitos supõem, não se deve a Voltaire. Deve-se à escritora britânica Evelyn
Beatrice Hall (1868-1956), que
publicava sob o pseudónimo de S. G. Tallentyre, no início do século XX. Surgiu originalmente na obra The Friends of
Voltaire / Os Amigos de Voltaire (Londres, Smith, Elder & Co, 1906), onde
esta escreveu, no capítulo “Helvécio: a contradição”: “‘I disapprove of what you say, but I will
defend to the death your right to say it’ (p. 199). O
contexto é o da polémica à volta do filósofo e poeta contemporâneo de Voltaire,
conhecido por Helvétius,
ou Helvécio (Claude-Adrien Schweitzer). Evelyn Beatrice Hall comentava-a no seu livro. A frase pretendia
condensar o pensamento de Voltaire, sobre a polémica à volta do caso Helvécio, que tinha publicado, em 1758, De l’ Esprit /
“Do Espírito”. A obra e
o seu autor foram atacados pelos meios religiosos da época, devido ao seu
pensamento empirista-materialista e afastamento das formas de moralidade
baseadas na religião cristã. Em
consequência, o privilégio real de publicação foi-lhe retirado e destruídos os
exemplares do livro. A propósito
desse acontecimento, comentou Evelyn Beatrice Hall (p. 198): “Aquilo que o livro nunca poderia ter feito
para si mesmo, ou para o seu autor, fez a perseguição por ambos. Do
Espírito não só se tornou o sucesso da temporada, mas um dos
livros mais famosos do século. Os
homens que o tinham odiado, e não gostavam particularmente de Helvécio,
cerraram fileiras à volta dele. Voltaire perdoou-lhe todas as injúrias,
intencionais ou não intencionais. ‘Que alarido por causa de uma omeleta’,
exclamou quando ouviu falar da queima dos livros. Como é abominavelmente
injusto perseguir um homem por uma bagatela arejada como essa!” Apesar das
perseguições, já na Europa do século XVIII, a polémica e a proibição
também podiam ser boas para a notoriedade do autor e da obra.
2. “O
Tratado sobre a Tolerância” de Voltaire, ganhou uma renovada actualidade e
interesse do grande público. O
atentado terrorista à redacção do Charlie Hebdo, perpetrado por
islamistas-jihadistas, a 7/1/2015, fê-lo ressurgir nas livrarias e nas
manifestações a favor da liberdade de expressão. Os autores do atentado afirmavam vingar as ofensas ao
Islão e ao Profeta Maomé, cometidas por esse jornal satírico. Essa argumentação, em nome do religioso e
sagrado, evoca memórias do passado, da Europa de Voltaire no século XVIII. Publicado originalmente em 1763, sob o título Traité sur la tolérance à
l’occasion de la mort de Jean Calas, é um
escrito panfletário. Tem como contexto histórico um caso judicial
ocorrido em França, em 1761-1762: a
condenação à morte de um huguenote (protestante) de Toulouse — o comerciante Jean
Calas — acusado, injustamente, de matar um dos filhos por se ter convertido
ao catolicismo. Na parte
final do livro, no capítulo XXII, “Acerca da tolerância universal”, Voltaire
deixou uma reflexão poderosa, que soa a actual, numa Europa cada vez mais
diversa e multicultural (trad.
port., 2.ª ed, Antígona, 2011, pp. 139-140): “Não é preciso grande arte,
eloquência muito rebuscada, para provar que diferentes cristãos devem
tolerar-se uns aos outros. Mas vou mais longe: digo-vos que é preciso olharmos
para todos os homens como irmãos. O quê! O turco, meu irmão? O chinês, meu
irmão? O judeu? O siamês? Sim, sem dúvida. Não somos todos nós filhos do mesmo
pai, criaturas do mesmo Deus? Mas esses povos desprezam-nos; chamam-nos
idólatras! Pois bem, dir-lhes-ei que o seu erro é grande. Estou em crer
que, no mínimo, poderia surpreender a teimosia orgulhosa de um imã ou de um talapão [sacerdote
budista da Birmânia e Tailândia], se lhes falasse mais ou menos assim: ‘Este
pequeno globo, que não é mais do que um ponto, gira no espaço como tantos
outros globos. Andamos perdidos nessa imensidão. O homem, com uma altura
aproximada de cinco pés, é sem dúvida coisa pouca no conjunto da criação. Um
desses seres imperceptíveis, na Arábia ou no país dos cafres [ou Cafraria,
grosso modo a parte conhecida dos europeus da África Austral], volta-se para
alguns dos seus vizinhos e diz: Escutai-me, porque o Deus de todos estes mundos
me iluminou: há sobre a terra cem milhões de minúsculas formigas como nós, mas
apenas só o meu formigueiro é amado por Deus; todos os outros lhe
causam horror eterno; só o formigueiro será feliz e todos os outros sofrerão o
infortúnio eterno’. Interromper-me-iam, então, e perguntar-me-iam que
louco poderia dizer tamanha tolice. E eu seria obrigado responder-lhes: ‘Sois
vós’. Procuraria de seguida apaziguá-los, mas seria muito difícil.” Na
Arábia, a prece humanista e ecuménica de Voltaire, do “Tratado sobre a
Tolerância”, não parece ter sido ouvida pelo seu contemporâneo, Muhammad
ibn Abd al-Wahhab.
3.
Voltemos ao século XVIII e às suas histórias paralelas. Na Europa, surgiam o
Iluminismo e a actual modernidade secular, marcadas por espíritos racionais e críticos da
religião (leia-se do
Cristianismo), como Diderot, Rousseau e Voltaire. Na mesma altura, na Península Arábica, ocorria um
processo histórico radicalmente diferente. Muhammad ibn Abd al-Wahhab (1703-1792),
um nome ainda há pouco tempo desconhecido dos europeus, marcou
esse século XVIII paralelo. Teólogo-jurista
da escola hanbalita — uma das escolas ortodoxas do Islão sunita —, dedicou-se
à propagação da dawa, a mensagem
do Islão. Para al-Wahhab, o
problema não era o excesso de religião, ou dos seus efeitos perversos, como
para Voltaire e os iluministas, mas a falta dela. Na
sua óptica, os muçulmanos do seu tempo não entendiam, ou não praticavam de
forma correcta, os preceitos fundamentais do Islão. Alá é o único senhor do universo não podendo ter
associados, ou parceiros, que partilhem atributos divinos. Ou seja, é o fundamento último — e
único — do poder político e legislativo. Para
os iluministas europeus, era o próprio fundamento divino do poder político e
legislativo que estava sob contestação. Para al-Wahhab, todos os assuntos de governo e de
criação de leis pertencem unicamente a Alá. Nenhum
ser humano pode fazer leis, nem alterar a Sharia, a lei islâmica. Efectuar
isso seria colocar-se no lugar de Alá, substituindo a verdadeira vontade divina.
Nada poderia estar mais em rota de colisão com o ideário do
Iluminismo e as teorias do contrato social e da soberania popular, se estas se
cruzassem no século XVIII. Não ocorreu
nessa altura, pela distância entre os dois mundos. Mas al-Wahhab foi mais longe. O seu conceito de tawhid— crença
na unicidade de Deus, fé em Deus único
—, traduziu-se numa aversão extrema a imagens de figuras religiosas e
templos de santos. Não por razões anticlericais ou de
obscurantismo religioso, como acontecia com os Iluministas europeus radicais e
com os revolucionários jacobinos franceses da época, mas porque eram vistos como
uma grave idolatria (shirk), uma manifestação de paganismo. No século XVIII, as primeiras tentativas de al-Wahhab convencer os muçulmanos na Arábia a seguir o
“verdadeiro” Islão, originaram perseguições e o exílio. Este via-se, a si próprio, como salafista – designação que evoca o esforço de imitar os
antepassados pios (salaf), companheiros do Profeta, no seu modo de vida
exemplar. A
aliança com a tribo dos Saud (Al Saud),
datada de meados do século XVIII,
deu-lhe segurança e estatuto oficial. No século XX, com a independência da Arábia Saudita, o wahhabismo tornou-se religião
de Estado. A sua forma retrógrada e puritana extrema do Islão,
estava confinada ao deserto arábico. No século XX, os recursos financeiros
de petróleo, que jorra na Península Arábica, alteraram o rumo da história. Voltaire nunca imaginaria ser superado
pelo imã al-Wahhab.
4. 1989, duzentos
anos após a Revolução Francesa de 1789, muçulmanos britânicos, em
Bradford, num “auto de fé”, queimaram publicamente “Os Versículos Satânicos”, de Salman Rushdie. Acusavam
o autor e a sua obra de blasfémia
contra o Profeta Maomé e o Islão. A fatwa do Ayatollah Khomeini teve um efeito similar a uma sentença de
morte, a qual deveria ser executada por qualquer muçulmano. Rushdie viveu escondido, sob protecção policial, durante
vários anos. Não foi um
caso isolado. Em 2005, o jornal dinamarquês, Jyllands-Posten,
publicou várias caricaturas que satirizavam o Profeta Maomé. Um pouco por toda a imprensa europeia e
ocidental, e noutras partes do mundo, estas foram também reproduzidas. Entre os
muçulmanos, a publicação originou forte indignação e protestos, alguns dos
quais violentos. Ocorreram
um pouco por toda a Europa, onde há substanciais comunidades muçulmanas e nos
países islâmicos. Os principais visados foram os autores das caricaturas, o
Jyllands-Posten e outros jornais que as divulgaram. A Dinamarca,
país de origem do jornal, teve as suas embaixadas ameaçadas em vários países
islâmicos. A França ficou também no centro
da contestação. A sua
imprensa, especialmente o jornal satírico Charlie
Hebdo, foram dos que mais contribuíram para a
difusão das caricaturas do Jyllands-Posten. Estes episódios trazem à mente as
lutas intelectuais e políticas em que Voltaire esteve envolvido no século XVIII
europeu. Na fórmula propagandística celebrizada pelos iluministas, tratava-se
de um combate das luzes contra obscurantismo; da razão e do progresso contra a
religião e a tradição. O contexto era o de uma Europa que dava os primeiros
passos no processo de secularização, na separação do religioso do político, em
sociedades profundamente cristãs, católicas ou protestantes. Mas era também o
de uma Europa segura de si própria, orgulhosa dos seus valores, e em expansão.
5. A
Europa de hoje é secular e está a descristianizar-se. A Europa perdeu o seu zelo missionário,
primeiro religioso e cristão, depois, a partir do iluminismo, civilizacional e
secular. Não tem a capacidade do passado, de
influenciar o resto do mundo, pela atracção da sua cultura, ou pela força. Os
actuais valores europeus não se espalham universalmente, como acreditavam os
iluministas. Enfrentam
contestação cultural e religiosa, no seu próprio terreno histórico, pelas
crescentes populações tradicionalistas, oriundas das migrações extra-europeias.
Apesar das resistências no passado histórico dos últimos dois séculos e meio –
os panfletos de Voltaire evidenciam-nas –, a Igreja Católica encontra-se hoje
retirada da esfera política, confinada, essencialmente, à crença espiritual e
privada. A partir dos anos 1960, no Concílio Vaticano II, fez um esforço assinalável
de adaptação às condições da modernidade secular. Para os europeus, a vitória do
espírito de Voltaire parecia total. A ironia é que pode não ser mais do que um
breve período histórico. Em vez de um
“fim da história” de paz secular e de tolerância, pode-se ter criado um vazio
de convicções profundas, o qual abre portas aos seus inimigos, no interior da
Europa e fora dela. Os valores da tolerância e liberdade de expressão
nunca estão adquiridos, são uma luta perpétua. Num mundo globalizado e cada vez menos
europeu, é o seu contemporâneo do Islão
século XVIII, al-Wahhab, que hoje projecta as suas ideias religiosas
salafistas e anti-iluministas na Europa secular, não o inverso. Os
jovens islamistas-jihadistas que perpetraram os atentados terroristas de Paris,
a 13/11/2015, são, de alguma forma, resultado (violento) de uma visão do mundo
similar à de al-Wahhab e de outros radicalismos. O
medo, a pressão social e a autocensura ressurgiram, sob outras formas, instalaram-se
na consciência colectiva. Os europeus do século XXI arriscam-se a ser menos
livres de expressar o seu pensamento do que Voltaire no século XVIII.
Investigador
MUNDO OPINIÃO ARÁBIA SAUDITA RELIGIÃO ISLÃO MUÇULMANOS HISTÓRIA
COMENTÁRIOS
Conta desactivada por violação das regras de conduta: Interessante texto e que possibilita alguns
esclarecimentos. Além da análise, saliento e volto a salientar a conclusão ou
constatação do autor que a Sra Isabel já referiu. E sobretudo, não resisto a
repetir, "O medo, a pressão social e a autocensura ressurgiram...".
Não posso estar mais de acordo, tristemente, infelizmente. 15.01.2016
ISABEL GONCALVES.250530 EXPERIENTE: Brilhante, como sempre! Faz uma reflexão apoiada na
lógica e na objectividade sem cedências ao politicamente correcto ou, melhor
dizendo, à censura, fenómeno muito visto nestes últimos tempos. Muito
informativo também sobre o contexto passado desta realidade. Gostei muito dos
últimos parágrafos "O medo, a pressão social e a autocensura ressurgiram,
sob outras formas, instalaram-se na consciência colectiva. Os europeus do século
XXI arriscam-se a ser menos livres de expressar o seu pensamento do que
Voltaire no século XVIII.", nos quais disse muito do que nos meios de
comunicação se tenta desesperadamente negar. Os meus parabéns!! Os seus artigos
justificam a minha assinatura deste jornal. obrigada. 14.01.2016
mulher e mãe MODERADOR: Bem actual, como diz, lembrar estes argumentos de
Voltaire. Volte ao tema com histórias destas, pois me parece que pouca gente o
terá lido. Obrigada. 12.01.2016
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