Espécie de sinfonia em vários tons, sobre
um estranho tempo que passa, e que merece a ironia da estranheza, e em que, de
repente, as frases em torno de Keith
Jarrett e da sua incapacidade de actuação futura, por doença grave, explodem,
como grito simultâneo de consternação e revolta, pelo compositor que todos
admiram, naquela mesa à volta da qual a covit-19 impõe regras de disciplina pouco
habituais. Uma bonita homenagem juvenil, à roda da mesa de discussão política,
em torno das presidenciais norte-americanas, de pontos de vista certamente
variados, mas de uniformidade na simpatia pesarosa por um compositor de todos amado. Um texto de excelência, concisa e ampla – de musicalidade, também - de Sebastião Bugalho.
O silêncio de deus /premium
Fez-se
um silêncio, como que reconhecendo a invulgaridade do minuto em que haviam
coincidido além do jantar. “Viram que o Keith Jarrett já não pode tocar
piano?”. É claro que viram.
SEBASTIÃO BUGALHO
OBSERVADOR, 07 nov 2020
Entre
novas emergências e reviravoltas eleitorais, não nos despedimos somente da
normalidade, do magnata de Brooklyn e das demais reportadas ocorrências.
Deu-se, além de tudo isso, um momento solene, familiar mas público, cuja
narração merece escrita e cuja redacção aqui fica.
Somos,
para parafrasear o poeta, cinco à mesa. Três sozinhos e um acompanhado pelo
outro. É uma reunião mensal que nunca calha à mesma semana. Comemos e
sentamo-nos como se nos tivéssemos visto no dia anterior, apesar de não termos.
Somos cinco à mesa porque uns partiram e outros, agora, deixaram de poder
estar. Somos cinco à mesa, não por o termos escolhido, mas porque nos aconteceu
sermos cinco e continuarmos a estar cinco, este ano de cadeiras mais afastadas
e com cada um a levar o seu prato, à vez, de volta à cozinha. Somos cinco à
mesa, com uma das cabeceiras vazias e menos iluminada pelo candeeiro de pé
alto, de presença inocentemente substituída pelo cesto de fruta e pelo jarro de
água de que ninguém bebe.
Os
cinco, depois da sopa e da conversa, em turnos diferentes de ingestão, chegaram
desta vez ao café numa harmonia despropositada. Fez-se um silêncio, como que
reconhecendo a invulgaridade do minuto em que haviam coincidido além do jantar.
“Viram que o Keith Jarrett já não pode tocar piano?”. É claro que viram. Saiu no New York Times a notícia de
que o pianista norte-americano sofreu dois enfartes, estando paralisado do
lado esquerdo do corpo, mão incluída. Aquele que o Guardian considerou
em 2014 o maior músico vivo no planeta está recluso no seu próprio corpo,
privado de um hábito e de um talento que lhe esculpiram a vida.
O
obituário de um génio deve ser feito aquando da sua partida, mas é o próprio
Jarrett que diz já não se sentir “um pianista”; como se o artista
desaparecesse, a obra permanecesse e a existência jazesse presa num limbo, sem
saber bem que condolências receber de si mesma. O leitor deve conhecê-lo
pelo seu concerto em Colónia, em 1975, ainda hoje o álbum de piano a
solo mais vendido na história da música – tocado inteiramente em
improvisação e de intensa fúria contra o instrumento, que era de modelo menor
do que o encomendado.
De Colónia, ouvem-se os pontapés na
madeira do piano, a marcar o tempo, e os grunhidos de um homem que está ali mas
não só ali. Os meus avôs
escutavam-no em casa, como os meus pais escutavam The Melody At Night With You,
uma obra-prima de tributo à sua mulher, que nunca faltou a um espectáculo seu
até se separarem. Não estou certo do que os meus filhos vão preferir dele, mas
a obra é vasta. Vai de Miles a Mozart, da música popular americana ao seu
mítico trio com Gary Peacock e Jack DeJohnette.
Quando
Peacock faleceu,
no início deste setembro, aos 85 anos,
lembro-me de nos telefonarmos todos uns aos outros, como se acabássemos de
perder um ente querido e não um longínquo contrabaixista. “Morreu o Gary
Peacock, sabias? Que tristeza”, e a praia lá ao
fundo.
Agora
que se sabe que Jarrett não tornará a criar nem tão-pouco a actuar, sobram os
discos, um deles editado há dias, com uma actuação de 2018 em Bucareste. Mas naquela mesa, com uma coluna sem fios ao centro,
a igual distância dos cinco, lá nos despedimos dele, que sempre cá esteve e nos
ligou, como se a partir de agora nos tivessem roubado de fuso horário ou
enviado para um país onde não se conseguisse ler a sinalética. Ficámos ali,
estranhos na nossa familiaridade, num silêncio breve apenas quebrado pela
música do pianista, esperando que o presuma na solidão a que o acaso o
deixou, sabendo que não sendo isso suficiente para o devolver a si mesmo, que,
pelo menos, fique connosco depois de ir embora.
CULTURA ARTE MÚSICA PANDEMIA SAÚDE
COMENTÁRIOS:
João Paulo Reis: Tenho quase sessenta e oito anos, mas não vos minto se disser que foi com
Keith Jarrett que aprendi a gostar de jazz. Tudo começou com o Köln Concert
tocado e interpretado num piano desafinado, mas assombrosamente íntimo e novo,
ao ler este texto emocionei-me no relembrar Garry Peacock e Keith Jarrett porque ainda hoje me dão
alguns dos momentos inesquecíveis de música. Gosto muito de piano e por isso
mesmo gosto muito dos concertos para piano de Beethoven e Mozart, num patamar
totalmente diverso Jarrett não lhes fica atrás, que me perdoem os puristas da
música clássica
Sr LeãoJoão > Paulo Reis: Pois não, João Paulo (que não
tenho o gosto de conhecer pessoalmente), Beethoven e Mozart são sempre os
maiores quando alguém pretende ostentar uma erudição musical que na verdade não
possui. Mas Jarrett, como felizmente muitos
outros, não lhes fica nada atrás. Diria mesmo que tomariam eles, Beethoven e
Mozart, a genialidade que sempre emergiu tsunamicamente na música que nos foi
legada pelo Jarrett, malgrado alguns pontapés no piano e a guincharia que por
vezes chegava a incomodar mas de que iremos sentir a falta... Cumprimentos.
victor guerra > Sr Leão: Sendo um fanático da música erudita, já não
identificava a música de Jarrett .As palavras do Paulo Reis levaram-me a ir ao
YouTube ouvir várias peças do Jarrett. Muito bom, mas não compare o
incomparável. Jarrett chegou onde chegou, porque ouviu antes Mozart e Beethoven
NOTAS DA INTERNET:
Keith Jarrett
Origem: Wikipédia,
a enciclopédia livre.
Keith Jarrett (Allentown,
8 de maio
de 1945)
é um compositor e pianista estadunidense. As suas técnicas de
improvisação conjugam o jazz a outros
Outros
trabalhos
Jarrett também toca cravo,
clavicórdio, órgão,
saxofone soprano, bateria e outros instrumentos musicais.
Ele
tocava saxofone e percussão no American Quartet, embora
as suas gravações após a separação do grupo raramente tenham apresentado outros
instrumentos. Nos últimos vinte anos, a maioria das suas gravações
têm sido com piano acústico. Ele diz
estar arrependido por ter escolhido abandonar outros instrumentos, em
particular o saxofone. Em alguns dos seus muitos álbuns anteriores, demonstrou
a sua versatilidade com instrumentos.
Existem
diversas compilações e colecções cobrindo vários aspectos da carreira de Jarrett.
Nenhum comentário:
Postar um comentário