domingo, 8 de novembro de 2020

Um bonito texto

 

Espécie de sinfonia em vários tons, sobre um estranho tempo que passa, e que merece a ironia da estranheza, e em que, de repente, as frases em torno de Keith Jarrett e da sua incapacidade de actuação futura, por doença grave, explodem, como grito simultâneo de consternação e revolta, pelo compositor que todos admiram, naquela mesa à volta da qual a covit-19 impõe regras de disciplina pouco habituais. Uma bonita homenagem juvenil, à roda da mesa de discussão política, em torno das presidenciais norte-americanas, de pontos de vista certamente variados, mas de uniformidade na simpatia pesarosa por um compositor de todos amado. Um texto de excelência, concisa e ampla – de musicalidade, também - de Sebastião Bugalho.

 

O silêncio de deus /premium

Fez-se um silêncio, como que reconhecendo a invulgaridade do minuto em que haviam coincidido além do jantar. “Viram que o Keith Jarrett já não pode tocar piano?”. É claro que viram.

SEBASTIÃO BUGALHO

OBSERVADOR, 07 nov 2020

Entre novas emergências e reviravoltas eleitorais, não nos despedimos somente da normalidade, do magnata de Brooklyn e das demais reportadas ocorrências. Deu-se, além de tudo isso, um momento solene, familiar mas público, cuja narração merece escrita e cuja redacção aqui fica.

Somos, para parafrasear o poeta, cinco à mesa. Três sozinhos e um acompanhado pelo outro. É uma reunião mensal que nunca calha à mesma semana. Comemos e sentamo-nos como se nos tivéssemos visto no dia anterior, apesar de não termos. Somos cinco à mesa porque uns partiram e outros, agora, deixaram de poder estar. Somos cinco à mesa, não por o termos escolhido, mas porque nos aconteceu sermos cinco e continuarmos a estar cinco, este ano de cadeiras mais afastadas e com cada um a levar o seu prato, à vez, de volta à cozinha. Somos cinco à mesa, com uma das cabeceiras vazias e menos iluminada pelo candeeiro de pé alto, de presença inocentemente substituída pelo cesto de fruta e pelo jarro de água de que ninguém bebe.

Os cinco, depois da sopa e da conversa, em turnos diferentes de ingestão, chegaram desta vez ao café numa harmonia despropositada. Fez-se um silêncio, como que reconhecendo a invulgaridade do minuto em que haviam coincidido além do jantar. “Viram que o Keith Jarrett já não pode tocar piano?”. É claro que viram. Saiu no New York Times a notícia de que o pianista norte-americano sofreu dois enfartes, estando paralisado do lado esquerdo do corpo, mão incluída. Aquele que o Guardian considerou em 2014 o maior músico vivo no planeta está recluso no seu próprio corpo, privado de um hábito e de um talento que lhe esculpiram a vida.

O obituário de um génio deve ser feito aquando da sua partida, mas é o próprio Jarrett que diz já não se sentir “um pianista”; como se o artista desaparecesse, a obra permanecesse e a existência jazesse presa num limbo, sem saber bem que condolências receber de si mesma. O leitor deve conhecê-lo pelo seu concerto em Colónia, em 1975, ainda hoje o álbum de piano a solo mais vendido na história da música – tocado inteiramente em improvisação e de intensa fúria contra o instrumento, que era de modelo menor do que o encomendado.

De Colónia, ouvem-se os pontapés na madeira do piano, a marcar o tempo, e os grunhidos de um homem que está ali mas não só ali. Os meus avôs escutavam-no em casa, como os meus pais escutavam The Melody At Night With You, uma obra-prima de tributo à sua mulher, que nunca faltou a um espectáculo seu até se separarem. Não estou certo do que os meus filhos vão preferir dele, mas a obra é vasta. Vai de Miles a Mozart, da música popular americana ao seu mítico trio com Gary Peacock e Jack DeJohnette.

Quando Peacock faleceu, no início deste setembro, aos 85 anos, lembro-me de nos telefonarmos todos uns aos outros, como se acabássemos de perder um ente querido e não um longínquo contrabaixista. “Morreu o Gary Peacock, sabias? Que tristeza”, e a praia lá ao fundo.

Agora que se sabe que Jarrett não tornará a criar nem tão-pouco a actuar, sobram os discos, um deles editado há dias, com uma actuação de 2018 em Bucareste. Mas naquela mesa, com uma coluna sem fios ao centro, a igual distância dos cinco, lá nos despedimos dele, que sempre cá esteve e nos ligou, como se a partir de agora nos tivessem roubado de fuso horário ou enviado para um país onde não se conseguisse ler a sinalética. Ficámos ali, estranhos na nossa familiaridade, num silêncio breve apenas quebrado pela música do pianista, esperando que o presuma na solidão a que o acaso o deixou, sabendo que não sendo isso suficiente para o devolver a si mesmo, que, pelo menos, fique connosco depois de ir embora.

CULTURA  ARTE  MÚSICA  PANDEMIA  SAÚDE

 

COMENTÁRIOS:

João Paulo Reis: Tenho quase sessenta e oito anos, mas não vos minto se disser que foi com Keith Jarrett que aprendi a gostar de jazz. Tudo começou com o Köln Concert tocado e interpretado num piano desafinado, mas assombrosamente íntimo e novo, ao ler este texto emocionei-me no relembrar Garry Peacock e Keith Jarrett porque ainda hoje me dão alguns dos momentos inesquecíveis de música. Gosto muito de piano e por isso mesmo gosto muito dos concertos para piano de Beethoven e Mozart, num patamar totalmente diverso Jarrett não lhes fica atrás, que me perdoem os puristas da música clássica

Sr LeãoJoão > Paulo Reis: Pois não, João Paulo (que não tenho o gosto de conhecer pessoalmente), Beethoven e Mozart são sempre os maiores quando alguém pretende ostentar uma erudição musical que na verdade não possui. Mas Jarrett, como felizmente muitos outros, não lhes fica nada atrás. Diria mesmo que tomariam eles, Beethoven e Mozart, a genialidade que sempre emergiu tsunamicamente na música que nos foi legada pelo Jarrett, malgrado alguns pontapés no piano e a guincharia que por vezes chegava a incomodar mas de que iremos sentir a falta... Cumprimentos.

victor guerra > Sr Leão: Sendo um fanático da música erudita, já não identificava a música de Jarrett .As palavras do Paulo Reis levaram-me a ir ao YouTube ouvir várias peças do Jarrett. Muito bom, mas não compare o incomparável. Jarrett chegou onde chegou, porque ouviu antes Mozart e Beethoven

 

 

NOTAS DA INTERNET:

 

Keith Jarrett

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

 

Keith Jarrett (Allentown, 8 de maio de 1945) é um compositor e pianista estadunidense. As suas técnicas de improvisação conjugam o jazz a outros

Outros trabalhos

Jarrett também toca cravo, clavicórdio, órgão, saxofone soprano, bateria e outros instrumentos musicais.

Ele tocava saxofone e percussão no American Quartet, embora as suas gravações após a separação do grupo raramente tenham apresentado outros instrumentos. Nos últimos vinte anos, a maioria das suas gravações têm sido com piano acústico. Ele diz estar arrependido por ter escolhido abandonar outros instrumentos, em particular o saxofone. Em alguns dos seus muitos álbuns anteriores, demonstrou a sua versatilidade com instrumentos.

Existem diversas compilações e colecções cobrindo vários aspectos da carreira de Jarrett.

 

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