“As Três Marias”, uma
história talvez fictícia, mas com sabor a história real, da escritora
brasileira Rachel de
Queiroz, um livro que encontrei
na estante do meu pai, o qual retrata as vidas de três Marias e mais algumas
das suas colegas pensionistas num colégio de freiras, micromundo já de
experiências e distinções sociais, segundo a ágil condutora da intriga – Guta, uma das três Marias – Maria
Augusta - que vai habilmente revelando as variadas facetas de destinos mais ou
menos cinzentos, entre os quais o seu, de divergências, contrastes e situações
realisticamente referenciadas, sem a aura romântica dos tempos das irmãs Brontë, tempos também sombrios, mas iluminados
ainda pela suavidade crítica das distinções sociais, e dos contrastes
comportamentais, com, todavia, os finais felizes para os verdadeiramente
distintos na hierarquia dos sentimentos, acompanhados, é certo, da hierarquia
social, para regalo das nossas almas, aspirantes ingénuas à excelência dos
caracteres e dos destinos. Eram livros românticos, esses, como também os do
nosso Júlio Dinis, que a pena
admiradora mas suavemente
crítica de Eça de Queirós traduziu em
frase lapidar, de carinho irónico, embora “leve”, pelo que implica de repúdio
das suas histórias de harmonia - “Júlio
Dinis viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve”. E no entanto
os livros deste brilham ainda, em edições contínuas, encantadores e formativos,
na sobriedade elegante de um discurso sem as brechas de muitos dos empolamentos
ou desvirtuamentos discursivos que tantas vezes se observam na literatura
contemporânea, para efeitos de uma originalidade tantas vezes apenas de
snobismo, sem a dimensão pretendida. “As Três Marias”, publicado em
1930, é um romance que se enquadra já numa escola mais
modernista, embora sem os ressaibos críticos do sistema, do nosso
neo-realismo em ascensão, mas de uma análise lúcida das realidades, tanto
psicológicas como sociais, livro precoce, que contribuiria para os muitos
prémios e homenagens que Rachel de
Queiroz recebeu ao longo da vida.
Li-o por curiosidade, pois andava a
decifrar o nosso “Livro das Três
Marias”, como é conhecido, creio que mundialmente, o “Novas Cartas Portuguesas”, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, e cuja
leitura novamente interrompi, para reler as “ Cartas de Amor de Soror Mariana”, livro comprado em Moçambique, em bela
edição da Artis, cinco cartas
em letra grande, precedidas de uma restituição e esboço crítico de Jaime Cortesão e com ilustrações de Lima Freitas, cartas que historiam a paixão de “Mariana Alcoforada”, religiosa
em Beja, pelo cavaleiro de
Chamilly, em caso que naturalmente deu escândalo, na sua família e na sua terra.
E são essas cinco Cartas de paixão e
arrebatamento, de desmesura no sofrimento, mas reveladoras de uma estranha
qualidade psicanalítica, que serviram de leit-motiv
para o “Livro das três Marias” – “NOVAS
CARTAS PORTUGUESAS”, para, entre muitos outros motivos da sua aventura
novelística, dele se servirem recriando, entre outras “aventuras pelo universo feminino”, personagens dessa derivadas,
como amigos e familiares de Mariana
Alcoforado, contemporâneos ou seguidores no tempo, chegando
mesmo à actualidade que se centra na data de execução da obra – 1971.
É pois, este, como já aqui referi, «um livro poderoso, de intenções políticas, de
estrutura vária, de linguagem feita ora de ambiguidade, ora de simplicidade
prosaica a tender para a diversão trocista, sobretudo quando pega na linguagem
simples do povo iletrado, e tendo, como ponto de partida, as cinco “Cartas”
lacrimosas ao cavaleiro de Chamilly, da desgraçada amante Sóror Mariana Alcoforado, e como fio condutor, o ódio feroz ao homem
dominador da sociedade machista portuguesa, às mães submissas e castradoras das
filhas que condenavam à “fogueira” conventual, movidas por preferências de
outros afectos a outras filhas que destinavam ao casamento interesseiro, um
livro de ódio, um livro de “três Marias” que jamais se identificam, na
complexidade dessa estrutura que contém poesia, cartas e narrativas várias de
figurantes vários, breves acções de violência sexual e criminal perfeitamente
desinibida, um espasmo de ódio por uma sociedade machista e por um regime
político que se pretende destruir. Estou a ler e admiro, conquanto nem sempre
perceba os rebuscamentos linguísticos de alguns troços narrativos, sem uma
argumentação directa, porque grande parte das vezes ambígua, mas inegavelmente
rica de intencionalidade perversa que tudo leva de vencida, orquestrada pelos
afagos de mudanças do “Maio de 68” e da orientação “pedagógica” obtida com “Le Deuxième Sexe” e movimentos feministas afins.
Não sendo romance em torno de
personagens centrais, trata-se, todavia, de uma novela forte de criatividade em
torno da condição feminina no nosso país, com variedade de figurantes femininos
ou masculinos, próximos ou arredados no tempo, marcando o seu posicionamento
numa sociedade que de um modo geral se despreza – quer no pedantismo das
classes mais elegantes, quer na humildade subserviente das classes serviçais,
cujas vozes e pronúncias sobressaem, de intenção redutora, se não de diversão
trocista.
Nada, pois, de muito criativo, e fruto,
sobretudo, de especulação crítica que teve – e parece ter ainda, ao que vejo na
Internet – bastante impacto mesmo a nível mundial.
Passando ao lado das “poesias” quantas
vezes em discurso directo, fruto de entretenimento pessoal, mais ou menos
rebuscado, e das cartas ou das narrativas de situações estratégicas fulcrais,
de erotismo sórdido ou de dramatismo vingativo, há, no livro, passos da
condenação do sistema político vigente, extremamente lúcidos no seu razoado
seguidor de uma linha política profundamente adversa ao sentido patriótico que
constituiu a divisa “Deus, Pátria
e Família” do regime salazarista a destruir.
Um livro controverso, é certo, na desordem
de uma estruturação que implica o próprio apagamento da autoria dos textos, livro
pesado na sua dispersão, que satisfaz um objectivo – o do apontamento de uma
realidade desde sempre violadora dos direitos femininos e a pretensão de vir a
terreno terçar armas em defesa da Mulher. Livro, pois, repito, de estrutura vária,
que se observa nas intenções, na indefinição das autorias, na pluralidade de
intrigas e de formas literárias – que implicam poesias amplas de significado,
no descritivo forte e ambíguo, epístolas e narrativas de conteúdos centrados na
condição da mulher de todas as épocas e de todas as estruturas sociais, de
vicissitudes, de rebuscamentos literários, de carga emotiva, de variedade
linguística e de composição literária, de problemática amorosa, de crítica
social subentendida, nas temáticas da violência doméstica, de ardor amoroso, de
experiência vivida, de conhecimento literário. Um livro provocatório, um livro original,
um livro controverso, mas que nos orgulha como criação nacional: «NOVAS
CARTAS PORTUGUESAS», um vendaval.
Um
“furo”, afinal, “à la page”.
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