quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Incertezas, premonições…

 

E tudo se reduz a: «Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?» Releiamos, pois, e sempre, a extraordinária “Tabacaria”, que Joe Biden não deve conhecer, e mesmo que conhecesse, não se deixaria, de certeza, impressionar. Como o nosso Costa também não deixa, pese embora o desnível megalómano da equiparação. De facto, as responsabilidades de Biden são de nível global, nada a ver. E o texto de José Pedro Teixeira Fernandes parece que dá no vinte.

ANÁLISE ELEIÇÕES EUA 2020

A política externa da América liberal e a fragilidade de Joe Biden

No actual contexto, um possível regresso da América ao internacionalismo liberal (intervencionista) arrisca-se a chocar com a Rússia e a China de uma forma que pode ser ainda mais desestabilizadora do mundo do que já vimos nestes últimos quatro anos.

JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES

PÚBLICO, 11 de Novembro de 2020

Voltar ao statu quo anterior a 2016 é na maioria dos casos impossível. A geopolítica mundial está num outro ponto devido à cadeia de acontecimentos entretanto ocorrida, algo que não é reversível. Ao mesmo tempo, voltar ao business as usual é também ignorar problemas sérios anteriores — não resolvê-los — por razões que vou procurar explicar. Para isso é necessário olhar primeiro para a forma de funcionamento da máquina político-burocrática que tradicionalmente concebe e implementa a política externa nos EUA. Na designação sarcástica cunhada por Ben Rhodes, um antigo assessor da equipa de Segurança Nacional de Barack Obama, essa máquina é “a Bolha” (the Blob). É uma burocracia em interminável expansão onde os seus membros procuram (auto) justificar a sua importância e de tudo o que gravita à sua volta, frequentemente através de um intervencionismo liberal no mundo exterior, onde os ideais da democracia e humanitários se misturam com interesses estratégicos.

Naturalmente que aqueles que integram o imenso aparelho da política externa e de segurança dos EUA rejeitam tal imagem e críticas, vendo-se, a si próprios, como indispensáveis aos interesses da América e à estabilidade mundial.

2. Para a esmagadora maioria da comunidade ligada à política externa e de segurança da América, o afastamento de Donald Trump foi um enorme alívio, mas não só pelas melhores razões usualmente explicitadas. É verdade que Donald Trump falou grosso aos aliados, por vezes num tom parecido ao usado com os inimigos, o que é de facto extraordinário. Usou ainda uma retórica belicosa, teve um comportamento errático e atitudes muito impróprias na diplomacia de uma grande potência democrática-liberal. A sua política errática, inconsequente, por vezes mesmo perigosa, foi um compreensível e fundado motivo de apreensão para os meios da política externa e segurança.

Todavia, paradoxalmente, este foi um período onde não houve intervenções militares de vulto dos EUA no exterior. Ocorreram algumas retiradas, ainda que limitadas, de tropas norte-americanas de bases no Médio Oriente e noutras partes do mundo. Ao contrário de Donald Trump, Joe Biden é um político que anda há 40 anos pelos corredores do poder em Washington, com uma presença regular nos mecanismos federais da política externa e de segurança. Com Joe Biden é expectável uma reversão das políticas de Donald Trump e o regresso dos EUA ao multilateralismo — por exemplo do Acordo de Paris ou da Organização Mundial de Saúde (OMS) —, o que é bom como tem sido amplamente evidenciado. Mas o percurso anterior de Joe Biden na “Bolha” sugere também um regresso ao lado mais problemático da política externa anterior, que não era propriamente exemplar. Apesar de se evitar falar disso nesta altura, são, ou deveriam ser, bem-conhecidos os problemas levantados pelo desacerto de uma parte do intervencionismo liberal dos EUA no mundo exterior.

3. A animosidade e o ressentimento contra o Governo de Donald Trump na política externa têm múltiplas motivações, nem todas tão louváveis e benignas como poderia parecer à primeira vista. As mais problemáticas escondem-se por detrás do multilateralismo e do argumento de voltar a criar a confiança junto dos aliados — essas são as boas razões que têm sido exaustivamente enunciadas.  

A recusa de um intervencionismo no exterior segundo a regras do intervencionismo liberal militar a que a “Bolha” estava habituada — e cujos conselhos os sucessivos governos anteriores, de republicanos e democratas, seguiam quase sempre escrupulosamente —, deixou os seus membros altamente frustrados. Ninguém gosta de ficar com o poder diminuído e ser ultrapassado nas decisões.

Donald Trump, com os conselheiros escolhidos entre a família, amigos e outros colaboradores próximos fê-lo, embora da pior maneira, sem mostrar profissionalismo, integridade política e uma visão estratégica articulada. Mas isso não significa que os problemas que o levaram a ser eleito em 2016 — desde a perda de bem-estar de partes importantes da população devido aos impactos da globalização, até à vontade de diminuir as intervenções no mundo exterior e fazer regressar os soldados — não sejam assuntos com forte ressonância e apoio no eleitorado. Pelo contrário, apesar de derrota eleitoral é politicamente relevante aqui notar que o número de “deploráveis” que votou em Donald Trump aumentou 7 milhões nas eleições presidenciais de 2020.

4. Não há qualquer dúvida que em termos éticos e cívicos Joe Biden é muito superior a Donald Trump e que estamos perante um político respeitável. Mas o que aqui está a ser analisado não é a sua personalidade moral, mas as suas capacidades políticas e visão estratégica, em particular na política externa, não as suas qualidades como pessoa.

Como é visto Joe Biden nos círculos da política externa e de segurança dos EUA? Se perguntarmos ao antigo secretário de Defesa, Robert Gates, que passou por vários governos republicanos e também pelo primeiro governo democrata de Barack Obama, a opinião é negativa. Robert Gates é apenas elogioso ao nível pessoal sobre qualidades humanas de Joe Biden. Não porque recuse, por princípio, intervenções militares no exterior — afinal, ambos fazem parte da “Bolha” e concordam que tais intervenções são por vezes necessárias para manter a supremacia dos EUA —, mas por não reconhecer visão estratégica, nem intuição na política externa, no futuro presidente norte-americano. Nas suas memórias publicadas em 2014, Robert Gates disse sobre Joe Biden:Acho que se enganou em quase todas as principais questões de política externa e segurança nacional nas últimas quatro décadas” (ver Robert Gates, Duty: Memoirs of a Secretary at War, Alfred A. Knopf, 2014). A frase é bem contundente.

5. A crítica de Robert Gates é certeira ou foi comentário injusto sobre um político rival? Olhando para o passado publicamente conhecido de Joe Biden fica a ideia de ter um fundamento. Apesar da longa passagem pelos círculos da política externa da América, Joe Biden não tem um registo particularmente brilhante. Esteve contra a Guerra do Golfo, em 1991, que obrigou Saddam Hussein a retirar do Koweit após os EUA terem organizado uma ampla coligação multinacional, a qual é vista como um bom exemplo de multilateralismo; em 2003 foi um dos democratas que abertamente apoiou o desencadear da invasão norte-americana do Iraque, a qual se mostrou desastrosa para os equilíbrios geopolíticos do Médio Oriente e negativa para a influência e o prestígio dos EUA no mundo. Mais à frente, em 2011, opôs-se ao raide das forças especiais que matou Osama bin Laden no Paquistão, tendo este sido até o maior sucesso militar do Governo Barack Obama.

Poderá agora como Presidente fazer melhor? Sobre isso, cada um fará as conjecturas que quiser. O futuro mostrará o acertado, ou desacertado, de tais previsões. Apesar do mea culpa posterior, o que parece claro é que as posições de Joe Biden foram problemáticas e não sugerem grande argúcia na política externa norte-americana; pelo contrário, são motivo para baixar as expectativas nessa área e adoptar um prudente realismo. No actual contexto, um possível regresso da América ao internacionalismo liberal (intervencionista) arrisca-se a chocar com a Rússia e a China de uma forma que pode ser ainda mais desestabilizadora do mundo do que já vimos nestes últimos quatro anos.

Investigador do IPRI-NOVA - Universidade NOVA de Lisboa

 

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