E tudo se reduz a: «Que
sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?» Releiamos,
pois, e sempre, a extraordinária “Tabacaria”,
que Joe Biden não deve
conhecer, e mesmo que conhecesse, não se deixaria, de certeza, impressionar.
Como o nosso Costa também não
deixa, pese embora o desnível megalómano da equiparação. De facto, as responsabilidades de
Biden são de nível global, nada a ver. E o
texto de José Pedro Teixeira
Fernandes parece que dá no vinte.
ANÁLISE ELEIÇÕES EUA 2020
A política externa da América liberal e
a fragilidade de Joe Biden
No actual contexto, um possível
regresso da América ao internacionalismo liberal (intervencionista) arrisca-se
a chocar com a Rússia e a China de uma forma que pode ser ainda mais
desestabilizadora do mundo do que já vimos nestes últimos quatro anos.
JOSÉ PEDRO
TEIXEIRA FERNANDES
PÚBLICO, 11 de
Novembro de 2020
Voltar
ao statu quo anterior a 2016 é na maioria dos casos impossível. A geopolítica
mundial está num outro ponto devido à cadeia de acontecimentos entretanto
ocorrida, algo que não é reversível. Ao mesmo tempo, voltar ao business as
usual é também ignorar problemas sérios anteriores — não resolvê-los — por
razões que vou procurar explicar. Para
isso é necessário olhar primeiro para a forma de funcionamento da máquina
político-burocrática que tradicionalmente concebe e implementa a política
externa nos EUA. Na designação
sarcástica cunhada por Ben Rhodes, um antigo assessor da equipa de Segurança
Nacional de Barack Obama, essa máquina é “a Bolha” (the Blob). É
uma burocracia em interminável expansão onde os seus membros procuram (auto)
justificar a sua importância e de tudo o que gravita à sua volta,
frequentemente através de um intervencionismo liberal no mundo exterior, onde
os ideais da democracia e humanitários se misturam com interesses estratégicos.
Naturalmente
que aqueles que integram o imenso aparelho da política externa e de segurança
dos EUA rejeitam tal imagem e críticas, vendo-se, a si próprios, como
indispensáveis aos interesses da América e à estabilidade mundial.
2. Para
a esmagadora maioria da comunidade ligada à política externa e de segurança da
América, o afastamento de Donald Trump foi um enorme alívio, mas não só pelas
melhores razões usualmente explicitadas. É verdade que Donald
Trump falou grosso aos aliados, por vezes num tom parecido ao usado com os
inimigos, o que é de facto extraordinário. Usou ainda uma retórica belicosa,
teve um comportamento errático e atitudes muito impróprias na diplomacia de uma
grande potência democrática-liberal. A sua política
errática, inconsequente, por vezes mesmo perigosa, foi um compreensível e
fundado motivo de apreensão para os meios da política externa e segurança.
Todavia,
paradoxalmente, este foi um período onde não houve intervenções militares de
vulto dos EUA no exterior. Ocorreram algumas retiradas, ainda que
limitadas, de tropas norte-americanas de bases no Médio Oriente e noutras
partes do mundo. Ao contrário de Donald Trump, Joe Biden é um político que anda
há 40 anos pelos corredores do poder em Washington, com uma presença regular
nos mecanismos federais da política externa e de segurança. Com Joe Biden é
expectável uma reversão das políticas de Donald Trump e o regresso dos EUA ao
multilateralismo — por exemplo do Acordo
de Paris ou da Organização Mundial de Saúde (OMS) —, o que é
bom como tem sido amplamente evidenciado. Mas o percurso anterior de Joe Biden
na “Bolha” sugere também um regresso ao lado mais problemático da política
externa anterior, que não era propriamente exemplar. Apesar de se evitar falar
disso nesta altura, são, ou deveriam ser, bem-conhecidos os
problemas levantados pelo desacerto de uma parte do intervencionismo liberal
dos EUA no mundo exterior.
3. A
animosidade e o ressentimento contra o Governo de Donald Trump na
política externa têm múltiplas motivações, nem todas tão louváveis e benignas
como poderia parecer à primeira vista. As mais problemáticas escondem-se por
detrás do multilateralismo e do argumento de voltar a criar a confiança
junto dos aliados — essas são as boas razões que têm sido exaustivamente
enunciadas.
A recusa de um intervencionismo no exterior segundo a regras do
intervencionismo liberal militar a que a “Bolha” estava habituada — e cujos
conselhos os sucessivos governos anteriores, de republicanos e democratas,
seguiam quase sempre escrupulosamente —, deixou os seus membros altamente
frustrados. Ninguém gosta de ficar com o poder
diminuído e ser ultrapassado nas decisões.
Donald Trump, com os
conselheiros escolhidos entre a família, amigos e outros colaboradores próximos
fê-lo, embora da pior maneira, sem mostrar profissionalismo, integridade
política e uma visão estratégica articulada. Mas
isso não significa que os problemas que o levaram a ser eleito em 2016 — desde
a perda de bem-estar de partes importantes da população devido aos impactos da
globalização, até à vontade de diminuir as intervenções no mundo exterior e
fazer regressar os soldados — não sejam assuntos com forte ressonância e apoio
no eleitorado. Pelo
contrário, apesar de derrota eleitoral é politicamente relevante aqui notar que
o número de “deploráveis” que votou em Donald Trump aumentou 7
milhões nas eleições presidenciais de 2020.
4. Não
há qualquer dúvida que em termos éticos e cívicos Joe Biden é muito superior a Donald Trump
e que estamos perante um político respeitável. Mas o que aqui está a ser
analisado não é a sua personalidade moral, mas as suas capacidades políticas e
visão estratégica, em particular na política externa, não as suas qualidades
como pessoa.
Como
é visto Joe Biden nos círculos
da política externa e de segurança dos EUA? Se perguntarmos ao antigo secretário de Defesa, Robert
Gates, que passou por vários governos
republicanos e também pelo primeiro governo democrata de Barack Obama, a
opinião é negativa. Robert
Gates é apenas elogioso ao nível pessoal sobre qualidades humanas de Joe Biden. Não porque recuse, por princípio, intervenções
militares no exterior — afinal, ambos fazem parte da “Bolha” e concordam que
tais intervenções são por vezes necessárias para manter a supremacia dos EUA —, mas por não reconhecer visão
estratégica, nem intuição na política externa, no futuro presidente
norte-americano. Nas suas
memórias publicadas em 2014, Robert Gates disse sobre Joe Biden: “Acho que se enganou em quase todas as
principais questões de política externa e segurança nacional nas últimas quatro
décadas” (ver Robert Gates, Duty: Memoirs
of a Secretary at War, Alfred A. Knopf, 2014). A frase é bem contundente.
5. A
crítica de Robert Gates é certeira ou foi comentário injusto sobre um político
rival? Olhando para o passado publicamente
conhecido de Joe Biden
fica a ideia de ter um fundamento. Apesar da longa passagem pelos círculos
da política externa da América, Joe Biden não tem um registo particularmente
brilhante. Esteve contra a Guerra do Golfo, em 1991, que
obrigou Saddam Hussein a retirar do Koweit após os EUA terem organizado uma
ampla coligação multinacional, a qual é vista como um bom exemplo de
multilateralismo; em 2003 foi um dos democratas que abertamente apoiou o
desencadear da invasão norte-americana do Iraque, a qual se mostrou desastrosa
para os equilíbrios geopolíticos do Médio Oriente e negativa para a influência
e o prestígio dos EUA no mundo. Mais à frente, em 2011, opôs-se ao raide das
forças especiais que matou Osama bin Laden no Paquistão, tendo este sido até o
maior sucesso militar do Governo Barack Obama.
Poderá
agora como Presidente fazer melhor? Sobre isso, cada um fará as conjecturas que
quiser. O futuro mostrará o acertado, ou desacertado, de tais previsões. Apesar
do mea culpa posterior, o que parece claro é que as posições de Joe Biden foram
problemáticas e não sugerem grande argúcia na política externa norte-americana;
pelo contrário, são motivo para baixar as expectativas nessa área e adoptar um
prudente realismo. No
actual contexto, um possível regresso da América ao internacionalismo liberal
(intervencionista) arrisca-se a chocar com a Rússia e a China de uma forma que
pode ser ainda mais desestabilizadora do mundo do que já vimos nestes últimos
quatro anos.
Investigador do IPRI-NOVA -
Universidade NOVA de Lisboa
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