quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O que distingue os povos

 

É também a língua, e daí, o legado cultural de cada um. Eu julgava que esse “problema ibérico” estava ultrapassado, e desconhecia os textos de Fernando Pessoa que o Dr. Salles trouxe à baila, e outros que a Internet nos desvenda - se desejarmos abarcar princípios e razões que o sentimento pátrio, comum aos povos, nos impele a contestar, e que o próprio Pessoa soube bem traduzir na sua Mensagem. Só desejo que esta necessidade de uma “côdea” que, pelos vistos, cada vez temos mais dificuldade em obter, por esforço próprio, nos não faça novamente impelir para a questão do iberismo, “a pedir batatinhas”…

 

O PROBLEMA IBÉRICO

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 10.11.20

Segundo Fernando Pessoa

«Fortemente aristocrática na sua constituição espiritual, ferrenhamente católica no seu habitus moral, absurdamente tradicionalista no conjunto quotidiano dos seus usos e costumes, Castela apresenta-se como um elemento anteprejudicador de uma confederação, e como um elemento (e é isto que aqui importa) violador da nossa grande tradição árabe — de tolerância e de livre civilização. E é na proporção em que formos os mantenedores do espírito árabe na Europa que teremos uma individualidade à parte.

Assim o espírito castelhano é fundamentalmente inimigo, no seu espírito, da Ibéria. Mas estes característicos, que tornam Castela magnificamente incompetente para hegemonizar na Ibéria admiravelmente a dispõem para equilibrar as tendências (em outros sentidos excessivas) dos dois outros povos ibéricos. Por onde se vê que tudo se acha harmonizado pelo Destino para a futura confederação.

O segundo grande inimigo da Ibéria é a França. O espírito francês é o grande inimigo do espírito comum às populações ibéricas. Grande inimigo não só na sua constituição espiritual, senão também nos efeitos que tem tido para a degradação e decadência do autêntico espírito ibérico. A França herdeira directa da tradição romana, no que ela tem de estreitamente grega, a França representa na Europa não um país criador (como a Itália de onde vem a arte, ou a Inglaterra, de onde nasce a política), mas um país distribuidor e aperfeiçoador dos elementos que os outros povos fornecem. Tão pouco criador é o espírito francês que, para obter a única ideia que dentro dele se realizou, teve de chamar um suíço, Jean-Jacques Rousseau, e para pôr fim magnificamente à anarquia que daí adveio, teve de descobrir um italiano, Bonaparte.

Lúcidos, completos no seu nível inferior, os franceses têm sido os corruptores da nossa civilização ibérica. O seu espírito romano, sem a força romana, é fundamentalmente inimigo do nosso espírito romano-árabe, ao mesmo tempo complexo e intenso, e disciplinado e rude.

O terceiro inimigo da Ibéria é a Alemanha.

Mas aqui temos mais a temer o espírito alemão que a Alemanha propriamente dita. Estes herdaram o espírito romano na sua parte superior (ao contrário dos franceses que lhe herdaram a parte que já neles era secundária, porque basilarmente grega). Mas casaram-no com aquele curioso elemento de incompletidão que é distintivo dos bárbaros do Norte, que não sabem equilibrar duas coisas [...]

Nós, ibéricos, somos o cruzamento de duas civilizações — a romana e a árabe. Na França e na Alemanha a civilização romana existe sobreposta ao fundo original, sem outro influxo civilizacional. Somos, por isso, mais complexos e fecundos, de natureza, que a França ou Alemanha, que, quando tomarmos consciência da nossa ibericidade devem existir aproveitadamente no horizonte do nosso desprezo.»

Fonte: texto de Fernando Pessoa

MÉRTOLA NO ALENTEJO: LEGADOS ROMANO, ÁRABE E CRISTÃO

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"da minha biblioteca"

COMENTÁRIOS:

Anónimo 11.11.2020: Sabes, Henrique, quando no ano lectivo de 1960/61 me deparei na disciplina de Literatura com António Sardinha, com o “seu” Integralismo Lusitano e com a polémica inerente ao Iberismo, esqueci-me da sua obra e, por não os perfilhar, também me “desliguei” dos dois “movimentos”. Nada me ficou, pelo que tenho muita dificuldade em comentar este texto iberista de Pessoa. Aliás, sempre que leio textos de Pessoa, recordo-me do alerta do meu Professor: “Estão pesquisadores a ir ao “baú” (sic, foi rigorosamente a expressão que ele empregou há 60 anos) do Poeta onde estão obras acabadas, outras por acabar, simples rascunhos, bem como outros textos que não foram revistas pelo autor e nem se sabe se ele quereria que fossem divulgados naquelas condições, e estão a publicar tudo, sem critério”. Quarenta anos após esse alerta, os livros que comprei em S. Paulo com a chancela da “Companhia das Letras” vinham com um separador com os seguintes dizeres “Enquanto viveu, Fernando Pessoa lançou um único livro em português. O que veio depois esteve sujeito a desfigurações. Esta é a edição definitiva da sua obra. Uma edição que respeita as escolhas do poeta. Texto estabelecido a partir dos originais do autor conservados na Biblioteca Nacional Portuguesa”.

Depois desta introdução, vou ver se consigo acrescentar algo, a título de comentário, pedindo a tua benevolência, pois estou como o sapateiro a tentar tocar rabecão. Se é verdade o que vejo na internet que Fernando Pessoa considerava que os problemas ibéricos eram 3: (i) absorção de Gibraltar pelo Estado Espanhol; (ii) Integração de Olivença e anexação de Galiza por Portugal; e (iii) aliança ibérica, como defesa do solo espiritual, invadido culturalmente pela França e dividido territorialmente pela política da Inglaterra, não estranho (nem entranho) que ele considere Castela incompetente para hegemonizar. Sobre França, e apesar do aparente elogio a Rousseau, Pessoa é menos entusiasta em relação a ele, em Livro do Desassossego, quando afirma que “a sensibilidade social, que tinha, envenenou as suas teorias, que a inteligência apenas dispôs claramente. A inteligência que tinha só serviu para gemer a miséria de coexistir com tal sensibilidade”. Admite, porém, que Jean-Jacques Rousseaué o homem moderno, mas mais completo que qualquer homem moderno. Das fraquezas que o fizeram falir tirou – ai dele e de nós! – as forças que o fizeram triunfar”. Quanto à Alemanha, é preciso ter presente o período 1914-18 e, quase de certeza, o texto em causa é posterior ao início da Grande Guerra. Aliás, Pessoa, perdão Álvaro de Campos, é verrinoso (e justamente) com Guilherme Segundo, em Ultimatum (1917), inserido no livro “Prosa publicada em Vida”: “Aí! Que fazes tu na celebridade, Guilherme Segundo da Alemanha, canhoto maneta do braço esquerdo, Bismark sem tampa a estorvar o lume?” (…) “… todos os estadistas pão-de-guerra que datam de muito antes da guerra! Todos! todos! todos! Lixo, cisco, choldra provinciana, safardanagem intelectual! E todos os chefes de Estado, incompetentes ao léu, barris de lixo virados p´ra baixo à porta da Insuficiência da Época! Tirem isso tudo da minha frente!”. Para terminar, se Pessoa protagonizou o Iberismo, não esteve só, foi acompanhado por vultos importantes portugueses e espanhóis. Dentro destes últimos, destaco uma figura credora de todo o respeito e admiração, responsável máximo do Templo do Saber, que é (ou foi) a Universidade de Salamanca - Miguel Unamuno. (Consta que quando o escritor Adolfo Correia da Rocha seleccionou o pseudónimo Miguel Torga, o primeiro nome foi em homenagem a Miguel Unamuno e a Miguel de Cervantes). Terminei de tocar rabecão. Para a próxima vê se fazes posts mais fáceis de comentar.
Grande abraço
. Carlos Traguelho

NOTAS DA INTERNET:

Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/3500 Fernando Pessoa PROBLEMA IBÉRICO [ b] 1. Qual é o fim que se pretende com a “aproximação“ ibérica de que se fez agora campeão o Sr. Felix Lorenzo, director de “O Imparcial”? De três coisas, uma deve ser verdade. Ou se pretende apenas estabelecer uma amizade firme entre os dois povos que a história tem até aqui apartado espiritualmente (e mais ainda apartado depois do período em que os juntou); ou se pretende tentear terreno para a velha e conhecida táctica da absorção de Portugal por Espanha; ou se busca, deveras, preparar as coisas sociais para um futuro acordo que, sem ser uma mera amizade, também não represente uma absorção, mas seja, em todo o caso, qualquer coisa que estadualmente aproxime a Espanha e Portugal. 2. Sem curar de ver qual das hipóteses é que verdadeiramente a campanha espanhola tem em mente, procuramos ver qual a base que há para qualquer delas. Critique of the first elsewhere. 3. Que viabilidade tem a tentativa de uma aproximação dos dois países? Problema a estudar sociologicamente; (a) a unidade da Ibériaa sua peninsularidade, (b) o local histórico de fusão do elemento romano com o árabe, (c) os dois países presos à mesma nota do passado, pela sua comum acção na abertura do Novo Mundo à civilização. Nestes três pontos assenta a unidade da civilização ibérica, porque, por mais separados que os dois povos estejam ou se sintam, são rodas no mesmo eixo, que, por longe que estejam uma da outra, são parte do mesmo movimento e têm o mesmo sentido de direcção. 4. Se a Ibéria é assim, transcendendo os povos que a compõem, uma unidade civilizacional, é evidente que está na lógica natural das coisas que um apartamento verdadeiro prejudica cada elemento componente — ou, antes, que devia ser componente — dessa unidade. 5. Esta unidade essencial é, porém, acompanhada de diferenças enormes nos pontos secundários. Escusamos de lhes buscar as causas, como buscámos as da unidade essencial. Porque é escusado buscar as causas àquilo que é patente: 1/3 Obra Aberta · 2015-06-08 01:55 Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/3500 Portugal não quer ser espanhol, nem de uma forma, nem de outra. Dos ódios que a história semeia, o ódio do português ao espanhol imperialista é o único que ficou, porque o contra os franceses que nos invadiram sob Napoleão, e o contra os ingleses que nos lançaram o Ultimatum célebre, já passaram ambos e se desradicaram de nós. Ora esta existência de divergências muito grandes, longe de ser coisa que prejudique a ideia implícita (para o estadista) na íntima unidade civilizacional ibérica, antes a reforça e a torna mais aceitável. Porque todo o organismo é superior na proporção em que a sua unidade essencial é interpretada e realizada por funções diferenciadas. Quanto mais elevado é um organismo na escala dos seres vivos, mais diferenciados são os órgãos que o compõem, e maior a interdependência das suas funções. Por isso, dada a unidade fundamental que a natureza (pelo território e pela história) deu à Ibéria, e dada a paralela diferença entre povo e povo que a compõem, somos levados, não à conclusão que essa unidade é impossível, mas, ao contrário, que, sendo possível, será produtora de resultados sociais (civilizacionais) notabilíssimos, por isso que, conseguida a unidade orgânica, a divergência grande das partes componentes tenderá a fazer essa unidade altamente produtora de civilização. Esplêndida coisa foi que a história, que nos fez nascer unos, tanto tempo nos separasse, para que, unindo-nos, constituíssemos uma unidade civilizacional como a unidade vital de um organismo superior, e não uma unidade inferior, como a França, ou como a Alemanha. (E, ainda assim, o longo tempo que a Alemanha esteve em estados separados, muito a separou, e lhe condicionou a superioridade que atingiu. Mas ali houve o pecado da hegemonia prussiana. . .) Posto, pois, que deve tender-se para uma qualquer unidade ibérica, no mesmo momento fica posto que essa unidade deve ser constituída por povos o mais divergentes possíveis dentro dessa unidade. Desaparece logo, como absurda, como ibericamente criminal, toda a tentativa que se queira esboçar de absorção de um país por outro, como criminal resulta, também logo, a absorção (fictícia, aliás) da nação catalã por Castela. Por que chegamos finalmente à visão integral da confederação ibérica. s. d. 2/3 Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/3500 Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática,

2 - «O que supremamente convém é criar, desde já, a ibericidade. Fazer tender todas as energias das nossas almas para um fim, por detrás de todos os fins imediatos que tenham. Esse fim é a Ibéria, a Ibéria como dona espiritual das Américas ibéricas (e não latinas), a Ibéria como senhora da África Setentrional, a Ibéria como destruidora do prestígio e predomínio francês. Vinguemos a derrota que os do Norte infligiram aos árabes nossos maiores. Expiemos o crime que cometemos, expulsando da península os árabes que a civilizaram.

A Rep. Port. vale não pelo que vale, mas pela direcção que envolve, que inconscientemente tem.» s.d.  

 

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

 

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