É também a língua, e daí, o legado
cultural de cada um. Eu julgava que esse “problema ibérico” estava
ultrapassado, e desconhecia os textos de Fernando Pessoa que o Dr. Salles trouxe à baila, e outros que a
Internet nos desvenda - se desejarmos abarcar princípios e razões que o
sentimento pátrio, comum aos povos, nos impele a contestar, e que o próprio Pessoa soube bem traduzir na sua Mensagem. Só desejo que esta necessidade de uma “côdea”
que, pelos vistos, cada vez temos mais dificuldade em obter, por esforço
próprio, nos não faça novamente impelir para a questão do iberismo, “a pedir batatinhas”…
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 10.11.20
Segundo Fernando Pessoa
«Fortemente
aristocrática na sua constituição espiritual, ferrenhamente católica no seu
habitus moral, absurdamente tradicionalista no conjunto quotidiano dos seus
usos e costumes, Castela apresenta-se como um elemento anteprejudicador de uma
confederação, e como um elemento (e é isto que aqui importa) violador da nossa
grande tradição árabe — de tolerância e de livre civilização. E é na proporção em que formos os
mantenedores do espírito árabe na Europa que teremos uma individualidade à
parte.
Assim o espírito castelhano é fundamentalmente inimigo, no seu
espírito, da Ibéria. Mas estes
característicos, que tornam Castela magnificamente incompetente para hegemonizar
na Ibéria admiravelmente a dispõem para equilibrar as tendências (em outros
sentidos excessivas) dos dois outros povos ibéricos. Por onde se vê que tudo
se acha harmonizado pelo Destino para a futura confederação.
O segundo grande inimigo da
Ibéria é a França. O
espírito francês é o grande inimigo do espírito comum às populações
ibéricas. Grande inimigo não só na sua constituição espiritual, senão também
nos efeitos que tem tido para a degradação e decadência do autêntico espírito
ibérico. A
França herdeira directa da tradição romana,
no que ela tem de estreitamente grega, a França representa na Europa não um
país criador (como a Itália de onde vem a arte, ou a Inglaterra, de onde nasce
a política), mas um país distribuidor e aperfeiçoador dos elementos que os
outros povos fornecem. Tão pouco criador é o espírito francês que, para obter a
única ideia que dentro dele se realizou, teve de chamar um suíço, Jean-Jacques
Rousseau, e para pôr fim magnificamente à anarquia que daí adveio, teve de
descobrir um italiano, Bonaparte.
Lúcidos,
completos no seu nível inferior, os franceses têm sido os corruptores da nossa
civilização ibérica. O seu espírito romano, sem a força romana, é
fundamentalmente inimigo do nosso espírito romano-árabe, ao mesmo tempo
complexo e intenso, e disciplinado e rude.
O terceiro inimigo da Ibéria é a Alemanha.
Mas
aqui temos mais a temer o espírito alemão que a Alemanha propriamente dita.
Estes herdaram o espírito romano na sua parte superior (ao contrário dos
franceses que lhe herdaram a parte que já neles era secundária, porque
basilarmente grega). Mas casaram-no com aquele curioso elemento de
incompletidão que é distintivo dos bárbaros do Norte, que não sabem equilibrar
duas coisas [...]
Nós, ibéricos, somos o cruzamento de duas civilizações — a romana e
a árabe. Na França e na Alemanha a
civilização romana existe sobreposta ao fundo original, sem outro influxo
civilizacional. Somos, por isso, mais complexos e fecundos, de natureza,
que a França ou Alemanha, que, quando tomarmos consciência da nossa ibericidade
devem existir aproveitadamente no horizonte do nosso desprezo.»
Fonte:
texto de Fernando Pessoa
MÉRTOLA
NO ALENTEJO: LEGADOS ROMANO, ÁRABE E CRISTÃO
Tags:
COMENTÁRIOS:
Anónimo 11.11.2020: Sabes,
Henrique, quando no ano lectivo de 1960/61 me deparei na disciplina de
Literatura com António Sardinha,
com o “seu” Integralismo Lusitano e
com a polémica inerente ao Iberismo,
esqueci-me da sua obra e, por não os perfilhar, também me “desliguei” dos dois
“movimentos”. Nada me ficou, pelo que tenho muita dificuldade em comentar este
texto iberista de Pessoa. Aliás, sempre que leio textos de Pessoa, recordo-me
do alerta do meu Professor: “Estão pesquisadores a ir ao “baú” (sic, foi
rigorosamente a expressão que ele empregou há 60 anos) do Poeta onde estão
obras acabadas, outras por acabar, simples rascunhos, bem como outros textos
que não foram revistas pelo autor e nem se sabe se ele quereria que fossem
divulgados naquelas condições, e estão a publicar tudo, sem critério”. Quarenta
anos após esse alerta, os livros que comprei em S. Paulo com a
chancela da “Companhia das Letras” vinham com um separador com os seguintes
dizeres “Enquanto viveu, Fernando Pessoa lançou um único livro em português. O
que veio depois esteve sujeito a desfigurações. Esta é a edição definitiva da
sua obra. Uma edição que respeita as escolhas do poeta. Texto estabelecido a
partir dos originais do autor conservados na Biblioteca Nacional Portuguesa”.
Depois
desta introdução, vou ver se consigo acrescentar algo, a título de comentário,
pedindo a tua benevolência, pois estou como o sapateiro a tentar tocar rabecão.
Se é verdade o que vejo na internet que Fernando Pessoa considerava que os
problemas ibéricos eram 3: (i) absorção de Gibraltar pelo
Estado Espanhol; (ii) Integração
de Olivença e anexação de Galiza por Portugal;
e (iii) aliança ibérica, como defesa do solo espiritual,
invadido culturalmente pela França e dividido territorialmente pela política da
Inglaterra, não estranho (nem entranho) que ele
considere Castela incompetente para hegemonizar. Sobre França, e apesar do aparente elogio a Rousseau,
Pessoa é menos entusiasta em relação a ele, em Livro do
Desassossego, quando afirma que “a sensibilidade
social, que tinha, envenenou as suas teorias, que a inteligência apenas dispôs
claramente. A inteligência que tinha só serviu para gemer a miséria de
coexistir com tal sensibilidade”. Admite, porém, que Jean-Jacques
Rousseau “é o homem moderno, mas mais
completo que qualquer homem moderno. Das fraquezas que o fizeram falir tirou –
ai dele e de nós! – as forças que o fizeram triunfar”. Quanto à Alemanha, é preciso ter presente o período 1914-18 e, quase
de certeza, o texto em causa é posterior ao início da Grande Guerra. Aliás,
Pessoa, perdão Álvaro de Campos, é
verrinoso (e justamente) com Guilherme Segundo, em Ultimatum (1917), inserido
no livro “Prosa publicada em Vida”: “Aí! Que fazes tu na celebridade,
Guilherme Segundo da Alemanha, canhoto maneta do braço esquerdo, Bismark sem tampa
a estorvar o lume?” (…) “… todos os estadistas pão-de-guerra que datam de
muito antes da guerra! Todos! todos! todos! Lixo, cisco, choldra provinciana,
safardanagem intelectual! E todos os chefes de Estado, incompetentes ao léu,
barris de lixo virados p´ra baixo à porta da Insuficiência da Época! Tirem isso
tudo da minha frente!”. Para
terminar, se Pessoa protagonizou o Iberismo, não esteve só, foi acompanhado por
vultos importantes portugueses e espanhóis.
Dentro destes últimos, destaco uma figura credora de todo o respeito e
admiração, responsável máximo do Templo do Saber, que é (ou foi) a Universidade
de Salamanca - Miguel
Unamuno. (Consta
que quando o escritor Adolfo Correia da Rocha seleccionou o pseudónimo Miguel
Torga, o primeiro nome foi em homenagem a Miguel Unamuno e a Miguel de
Cervantes). Terminei de tocar rabecão. Para a próxima vê se fazes posts
mais fáceis de comentar.
Grande abraço. Carlos Traguelho
NOTAS
DA INTERNET:
Arquivo Pessoa
http://arquivopessoa.net/textos/3500 Fernando Pessoa PROBLEMA IBÉRICO [ b] 1. Qual é o
fim que se pretende com a “aproximação“ ibérica de que se fez agora campeão o
Sr. Felix Lorenzo, director de “O Imparcial”? De três coisas, uma deve ser
verdade. Ou se pretende apenas estabelecer uma amizade firme
entre os dois povos que a história tem até aqui apartado espiritualmente (e
mais ainda apartado depois do período em que os juntou); ou se pretende tentear
terreno para a velha e conhecida táctica da absorção de Portugal por Espanha;
ou se busca, deveras, preparar as coisas sociais para um futuro acordo que, sem
ser uma mera amizade, também não represente uma absorção, mas seja, em todo o
caso, qualquer coisa que estadualmente aproxime a Espanha e Portugal. 2. Sem curar de
ver qual das hipóteses é que verdadeiramente a campanha espanhola tem em mente,
procuramos ver qual a base que há para qualquer delas. Critique of the first elsewhere. 3. Que viabilidade tem a tentativa de uma
aproximação dos dois países? Problema a
estudar sociologicamente; (a) a unidade da Ibéria — a sua peninsularidade, (b) o
local histórico de fusão do elemento romano com o árabe, (c) os
dois países presos à mesma nota do passado, pela sua comum acção na abertura do
Novo Mundo à civilização. Nestes
três pontos assenta a unidade da civilização ibérica, porque, por mais
separados que os dois povos estejam ou se sintam, são rodas no mesmo eixo, que,
por longe que estejam uma da outra, são parte do mesmo movimento e têm o mesmo
sentido de direcção. 4. Se a
Ibéria é assim, transcendendo os povos que a compõem, uma unidade civilizacional,
é evidente que está na lógica natural das coisas que um apartamento verdadeiro
prejudica cada elemento componente — ou, antes, que devia ser componente —
dessa unidade. 5. Esta unidade essencial é, porém,
acompanhada de diferenças enormes nos pontos secundários. Escusamos de lhes
buscar as causas, como buscámos as da unidade essencial. Porque é escusado
buscar as causas àquilo que é patente: 1/3
Obra Aberta · 2015-06-08 01:55 Arquivo Pessoa
http://arquivopessoa.net/textos/3500 Portugal
não quer ser espanhol, nem de uma forma, nem de outra. Dos ódios que a história semeia, o
ódio do português ao espanhol imperialista é o único que ficou, porque o contra
os franceses que nos invadiram sob Napoleão, e o contra os ingleses que nos
lançaram o Ultimatum célebre, já passaram ambos e se desradicaram de nós. Ora esta existência de divergências
muito grandes, longe de
ser coisa que prejudique a ideia implícita (para o estadista) na íntima unidade
civilizacional ibérica, antes a reforça e a torna mais aceitável. Porque todo
o organismo é superior na proporção em que a sua unidade essencial é
interpretada e realizada por funções diferenciadas. Quanto
mais elevado é um organismo na escala dos seres vivos, mais diferenciados são
os órgãos que o compõem, e maior a interdependência das suas funções. Por isso, dada a unidade fundamental
que a natureza (pelo território e pela história) deu à Ibéria, e dada a paralela diferença entre povo e
povo que a compõem, somos
levados, não à conclusão que essa unidade é impossível, mas, ao contrário, que,
sendo possível, será produtora de resultados sociais (civilizacionais)
notabilíssimos, por isso que, conseguida a unidade orgânica, a divergência
grande das partes componentes tenderá a fazer essa unidade altamente produtora
de civilização. Esplêndida
coisa foi que a história, que nos fez nascer unos, tanto tempo nos separasse,
para que, unindo-nos, constituíssemos uma unidade civilizacional como a unidade
vital de um organismo superior, e não uma unidade inferior, como a França, ou
como a Alemanha. (E, ainda
assim, o longo tempo que a Alemanha esteve em estados separados, muito a
separou, e lhe condicionou a superioridade que atingiu. Mas ali houve o pecado
da hegemonia prussiana. . .) Posto, pois, que deve
tender-se para uma qualquer unidade ibérica, no mesmo momento fica posto que
essa unidade deve ser constituída por povos o mais divergentes possíveis dentro
dessa unidade. Desaparece
logo, como absurda, como ibericamente criminal, toda a tentativa que se queira
esboçar de absorção de um país por outro, como criminal resulta, também logo, a
absorção (fictícia, aliás) da nação catalã por Castela. Por que chegamos
finalmente à visão integral da confederação
ibérica. s. d. 2/3 Arquivo Pessoa http://arquivopessoa.net/textos/3500
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos
de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel
Serrão.) Lisboa: Ática,
2 - «O que
supremamente convém é criar, desde já, a ibericidade. Fazer tender todas as
energias das nossas almas para um fim, por detrás de todos os fins imediatos
que tenham. Esse fim é a Ibéria, a Ibéria como dona espiritual das Américas
ibéricas (e não latinas), a Ibéria como senhora da África Setentrional, a
Ibéria como destruidora do prestígio e predomínio francês. Vinguemos a derrota
que os do Norte infligiram aos árabes nossos maiores. Expiemos o crime que
cometemos, expulsando da península os árabes que a civilizaram.
A
Rep. Port. vale não pelo que vale, mas pela direcção que envolve, que
inconscientemente tem.» s.d.
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando
Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão.
Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
Nenhum comentário:
Postar um comentário