Este lúcido artigo de Paulo Tunhas, que
encontrou maioria de adeptos entre os comentadores. Como alguns escrevem, ainda
bem que existem destes “Paulo
Tunhas” com alicerces culturais fortes, pese embora a generalização actual de
uma cultura de alarido, vazio de conhecimento, artificial de sentimento, na
realidade, ávido de projecção e domínio sobre as “massas”, todas elas …
Aquilo em que Trump teve razão/premium
A mim interessa-me aqui mais aquilo
que, tanto quanto consigo perceber, Trump pensa sobre a tomada do poder,
primeiro universitário e depois mediático e político, pela actual esquerda
americana
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 05 nov 2020
Há
uma coisa que é igualzinha nos motivos atribuídos aos votantes em Donald Trump
e naqueles que transparecem nos escritos dos seus críticos mais extremos (isto
é, quase todos): a convicção de que Trump se define única e
exclusivamente pela sua personalidade e que as suas posições políticas não são
senão uma projecção, volátil e sem espessura própria, dessa mesma
personalidade, admirável para os primeiros e desprezível para os segundos. Daí que os artigos de jornal e a florescente
indústria americana de livros sobre Trump entrem, na sua generalidade, na
categoria da psicologia ou da psiquiatria, segundo o gosto ou inclinação do
autor. Não é por acaso que a palavra “pesadelo” é tantas vezes usada.
Para os críticos radicais, Trump encontra-se na directa descendência de
Freddy Krueger, destruindo o “sonho americano” que nunca tiveram, nem
adolescentes nem adultos.
Sou o primeiro a reconhecer que o próprio Trump sempre se prestou a
alimentar essa percepção, quanto mais não seja por um instinto que lhe permitiu
sobreviver num universo político e mediático que lhe era inteiramente adverso,
mesmo perdendo, como previsivelmente acontecerá, estas últimas eleições. Se bem que – é preciso repeti-lo – com
uma votação excepcional, sem nada a ver com aquilo que as sondagens, uma vez
mais, diziam. É, no entanto, permitido discordar
desta doutrina psicologizante ou psiquiatrizante, que pessoalmente nunca
comprei, e levar a sério um núcleo de convicções que lhe são próprias e que não
se reduzem à sua personalidade nem sequer ao modo como exprimem a forma de
sentir as coisas de sensivelmente metade dos americanos. Infelizmente,
apenas um número limitado de jornais – o Wall
Street Journal, o Figaro ou o Daily Telegraph, por exemplo – prestou atenção a essas
convicções, o que, de resto, mostra como a maioria, ignorando voluntariamente
este aspecto, organizou meticulosamente a substância do seu pesadelo, com
todos os adereços cinematográficos possíveis.
Outros
poderão falar de economia ou de política internacional. A mim interessa-me aqui
mais aquilo que, tanto quanto consigo perceber, Trump pensa sobre a tomada
do poder, primeiro universitário e depois mediático e político, pela actual
esquerda americana (com
poucas relações com a velha esquerda, mesmo a dos anos sessenta e setenta, com
a qual, para o bem e para o mal, à distância cresci), uma esquerda
que, como é natural, tende a tornar-se na nova esquerda mundial. Como de costume, é mais fácil definir as coisas
negativamente, dando a ver oposições — e é o que vou fazer. Mais: vou fazê-lo
indicando por alíneas alguns aspectos da oposição, sem particular preocupação
de ordem.
Eis
aquilo que mereceu, durante estes anos, a oposição de Trump:
Uma cultura que fomenta o medo de dizer
o que se pensa. Não se
trata apenas de um código destinado a impedir a expressão daquilo que é
ofensivo e difamatório na nossa linguagem ou no nosso comportamento, mesmo à
custa de uma certa hipocrisia destinada a preservar as aparências. A
hipocrisia – como modo de ocultarmos aos outros, com o auxílio de uma máscara,
alguns dos nossos pensamentos mais íntimos – tem um valor civilizacional e
diminui os riscos da violência. Aristóteles,
La Rochefoucauld, Kant, e até
Shakespeare (Assume a virtue if you have it not,
diz Hamlet à sua mãe) o
mostraram de uma maneira ou de outra. Aqui,
agora, a coisa tem uma dimensão mais funda. Não se
trata apenas de interditar a expressão de certos pensamentos: trata-se de interditar
os próprios pensamentos, algo que não era permitido sequer ao Soberano de
Hobbes. É
o totalitarismo possível na cultura contemporânea.
A tese do chamado racismo sistémico ou
estrutural. Um manto
de culpa é lançado sobre todo e qualquer indivíduo pertencente ao grupo
maioritário (branco) da sociedade. Por mais
notória que seja a não emissão de propósitos racistas por parte de quem quer
que seja, o racismo é suposto, por definição, estar sempre lá, e a não admissão
do racismo é a mais eloquente das suas expressões. Uma senhora socióloga, Robin DiAngelo, construiu a sua reputação (e produziu um bestseller)
com a sustentação desta tese, que tem o efeito paradoxal de absolver os
verdadeiros racistas de qualquer pecado que lhes seja próprio, dissolvendo-os
na necessidade do todo social.
A presentificação do passado, por via de
uma identificação do presente com este. O
passado (esclavagista, por exemplo) é vivido integralmente, de corpo e alma, no
interior do nosso próprio ser, como uma mancha nunca eliminável que nos é
consubstancial. É esta abolição de toda a distância entre o presente e
o passado que permite a destruição de estátuas por esse mundo fora e a
concomitante cultura de cancelamento que na universidade, na rua e nos museus,
promove a maldição a que são votadas figuras como David Hume, Darwin ou Churchill, entre muitas outras.
A
defesa da violência exercida por grupos que têm a sorte de estar “do lado certo
da história”, se é que ainda existe história neste mundo em que toda a
distância entre o passado e o presente foi obliterada. Black Lives
Matter, Antifas e Extinction
Rebellion aparecem, como por magia,
inocentados de qualquer violência que pratiquem ou de qualquer intimidação que
lhes apeteça levar a cabo, como, por exemplo, aquela que membros do Extinction
Rebellion tentaram sobre o meu velho amigo Sir David Attenborough. Em contrapartida, a polícia é maciçamente encarada como uma entidade não
só opressiva como criminosa, que, nas
vozes mais radicais, deve ser desmantelada.
A censura em nome do Bem. Com efeito, do Facebook e do Twitter aos tradicionais
órgãos de comunicação, a censura adquiriu recentemente um prestígio que em tudo
contraria o opróbrio em que saudavelmente foi tida desde há muito. Não é
exagero dizer que há algo em tudo isto que faz lembrar a atitude face às
blasfémias do fundamentalismo islâmico. Por razões
civilizacionais, a radicalidade do ódio à blasfémia (paradoxalmente
metamorfoseada em crítica do “discurso de ódio”) não
encontra aqui os prolongamentos práticos que encontra no islamismo, mas, dada a
dimensão que as coisas tomam, não excluo a possibilidade de um tal
desenvolvimento, por mais remoto que possa parecer.
Poderia,
como é bom de ver, continuar com muitos outros exemplos. A configuração das
nossas sociedades actuais oferece-os em grande número. Mas não vale a pena, num
artigo de jornal, continuar, até porque uma enumeração mais extensa
implicaria uma investigação sobre a génese desta atitude mental contemporânea,
para a qual obviamente não tenho aqui espaço. A única coisa que queria
sublinhar é que, por relação a esta matéria (como em relação a muitos aspectos
da economia e da política internacional), Trump conta com muitos pontos
a seu favor. É verosímil que
estivesse destinado a ser derrotado neste capítulo, tal a aparente
inexorabilidade do movimento que conduz as nossas sociedades numa direcção
oposta àquela que defendeu, do mesmo modo que a sua verosímil derrota
eleitoral, a sua morte política, se encontrava possivelmente prevista já no
instinto que lhe permitiu sobreviver na mais hostil das atmosferas. Não é a primeira vez que tal contradição se
manifesta e não será de certeza a última. Resta que, no ponto que toquei, ele
teve razão. E receio bem que a extrema-esquerda dos democratas, por tudo aquilo
que é ubiquamente palpável, tudo faça para seguir e radicalizar o ar do tempo.
Notar-se-á que não falo de pesadelos. Os pesadelos são privados.
ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO DONALD TRUMP JORGE PINTO
COMENTÁRIOS:
Lourenço de Almeida: Excelente artigo. obrigado! JORGE
PINTO: Excelente! Muito obrigado! Peço-lhe
o enorme favor de me ajudar a compreender “a génese desta atitude mental
contemporânea“. Mapril
Oliveira: A sabedoria deste
senhor deixa-me de queixos caídos. Um intelectual de tão alto calibre que cita
Aristóteles, La Rochefoucauld, Kant, e até Shakespeare, está mesmo a ser
desperdiçado neste canto da Europa! Oiça lá já pensou em ir pra américa
oferecer os seu serviços ao trump? ANTONIO MADUREIRA Artigo muito lúcido e
verdadeiro. Parabéns! José
Afonso: Concordo. Falta
agora analisar como se chegou a esta situação. As causas estruturais. Leonardo d'Avintes: A coarctação da liberdade e da
dignidade do indivíduo, da sua natureza e história, que a agenda da nova
esquerda impôs, geraram a resposta possível com o fenómeno Trump. A esta
mordaça social e política opor-se-á uma crescente radicalização. O fenómeno
Trump está a começar. António Sennfelt: Estimado prof. Paulo Tunhas;
Seja-me, por uma
vez, permitido manifestar a minha não concordância com um artigo seu!
É evidente que a ideologia
distópica representada pelo pensamento politicamente correcto - ideologia esta
congeminada nos corredores da Sorbonne em meados da década de sessenta pelos
inconformados com o percepcionado próximo colapso do comunismo soviético -
encontrou efectivamente no mundo académico dos EUA um inusitado acolhimento e
um inultrapassável veículo de propagação. Ora, no mundo das ideias, tal
como no âmbito da biologia, o aparecimento de um corpo estranho provoca sempre
o reactivo surgimento de anti-corpos. Assim, como na Europa, após a Grande
Guerra, ocorreram movimentos reactivos à revolução bolchevique, também hoje em
dia, um pouco por todo o mundo ocidental, se assiste ao propagar de movimentos
de defesa reactiva face aos avanços do politicamente correcto! A questão é
saber-se se a apropriação dessa legítima postura de auto-preservação por
algumas figuras, tais como a do senhor Donald Trump, será, ou não, a mais
indicada para se fazer face aos desafios com que o mundo ocidental se
confronta. E, na minha humilde opinião, a resposta é francamente negativa!
Com os melhores
cumprimentos deste seu admirador e fiel leitor. AS Joaquim Almeida > António Sennfelt: Meu caro Sennfelt, antes de Foucault, Deleuze e Derrida, e depois de Marx , Lukacs e Gramsci, vieram, como sabe, Marcuse e Adorno, fugidos de Hitler para a
América ainda na década de 30, que ali logo semearam os grão do marxismo
cultural que há décadas ali medra entre os universitários e que hoje alimenta a
esquerda não só americana mas também "Urbi et orbi", com ideias e, sobretudo,
com a desenvolta dialéctica material (da mentira, digamos). É uma boa resposta
conservadora? Também penso que não, caro colega ,mas é aquela que os americanos
têm à mão .E nós ,os lusos, no meio político temos alguma ? Valha-nos algum raro pensador, como o autor do texto.
António Sennfelt > Joaquim Almeida: Caro Joaquim Almeida; fico
muito gratificado ao constatar que o meu pequeno comentário lhe tenha merecido
uma tão certeira chamada de atenção. Sim, claro, os pioneiros da sementeira
neo-marxista no meio universitário norte-americano foram evidentemente Marcuse
e Adorno. Mas, se me permite, é a sua interrogação final que mais se me afigura
oportuna! Será que nós portugueses, neste extremo atlântico da Europa, teremos
engenho e arte para encontrar a boa
resposta aos desafios que se nos colocam? Com a amizade do seu AS Ricardo Nuno: É verdade aquilo que Paulo
Tunhas diz, sobretudo em matéria de liberdade de expressão e censura em nome do
bem, a acção de Trump tem sido importante. A cancel culture está aí em força, ainda ontem
tomei conhecimento de mais uma vítima, o jornalista brasileiro Rodrigo
Constantino, afastado da rádio Jovem Pan devido a um tweet intencionalmente mal
interpretado por feministas em fúria. Só é pena que Trump se pareça mais com um desenho
animado do que com uma pessoa, assim é difícil levar a sério qualquer coisa que
ele diga. advoga
diabo: Não deixa de ser
refrescante, até motivo de esperança, indefectíveis de Trump começarem a abrir
frechas na antiga confiança cega. josé maria: Trump, um homem mesquinho e
sumamente egocêntrico, que não hesita em instigar implicitamente os seus
apoiantes à não aceitação dos resultados eleitorais, se vier a perder a
eleição. Pois, caso ganhasse, já tudo estaria bem, já não haveria nenhuma
fraude eleitoral. Trump, um indivíduo que, por via do sistema eleitoral americano,
foi eleito em 2016 com quase menos 3 milhões de votos do que a sua antagonista,
logo contra a maioria clara do povo americano. Trump, um indivíduo eticamente
deplorável, nos antípodas do que se pode esperar de um político com elevação de
carácter. Trump, um fanfarrão ridículo, que está em vias de conhecer uma
derrota humilhante, por via da possível eleição de Biden, um político fraco e
cinzento, sem grandes ideias para a governação dos EUA, mas que, por isso
mesmo, embora paradoxalmente, pode levar Trump a sair da Casa Branca como o
derrotado mais humilhado da História americana. João Diogo > josé maria: Lê o fim do "homem soviético". Pereira Santos: Tem toda a razão.
O socialismo
tomou conta de todas as instituições ocidentais (ensino, cultura, imprensa,
etc) criando um polvo ideológico em que quem pensa diferente é automaticamente
apelidado de fascista, racista, homofóbico, etc, etc. Hoje estamos a assistir a um
novo fascismo de caris socialista que está fazendo tudo para a destruição da
civilização ocidental tal qual a conhecemos. Quem pensa pela própria cabeça
é ostracizado pela corrente do "politicamente correcto" A forma como a campanha
presidencial americana foi acompanhada pela imprensa portuguesa deveria encher
de vergonha os nossos jornalistas, pois consideraram 50% dos americanos burros
(os que votaram em Trump) e os outros 50% uns iluminados só porque votaram em
Biden. ricardo gomes: Concordo com tudo o que
escreve, mas achar que alguma vez essas preocupações fizeram parte da
estratégia ou linha de actuação de Trump é para brincar. Para ele conta apenas
o que recebe como resposta ao olhar-se ao espelho de manhã e o facto de ter
sido Presidente porque apostou que seria. Pensar que usar uma figura
egocêntrica e charlatona, tal como na vida profissional, como bandeira das
lutas que temos de empreender para combater as questões que tão bem levanta só
pode jogar contra a justiça da luta. Esta ideia de responder ao tribalismo de esquerda com
tribalismo de direita não resolve, um aldrabão antes de ser de esquerda ou de direita
é isso mesmo um aldrabão. Carlos
Quartel: Penso que o que
se passa nos USA é uma reacção a esses movimentos "libertadores",
cada vez mais fortes e com mais estrutura ideológica. Da homossexualidade , do
feminismo e do racismo já vão na destruição da família, na abolição de
fronteiras, rumo ao mundo novo e ao homem novo, comedor de nabiças, proibido de
caçar e que acabará como ruminante. Que tenhamos caninos é um erro da natureza.
Por isso temos Chega, Vox, Marie de Pen ou Trump, há que nos agarrarmos ao que
há, para combater essa barbaridade, que já conseguiu que, nas escolas, não
se coma carne. Por enquanto, um dia por semana, mas com tendência a
generalizar-se. Aqui ao lado, o objectivo declarado é uma república feminista, seja lá o
que isso for. Por isso, os tais 4 milhões votos a mais de Trump, penso .....José
Neto > Carlos Quartel: Deixe-me destacar: "homem novo, comedor de
nabiças", gostei! Ainda é permitido dar uma gargalhada? Corremos o risco
de mostrar os caninos...
Apagado100vezes Idiotas > Carlos Quartel: Enquanto isso, abrem caminho a uma ditadura do Islão
e da China. Curiosamente ambos sociedades que são o oposto do politicamente
correcto e dos direitos alargado das minorias a começar pelas mulheres. Carlos Quartel > Apagado100vezes Idiotas: Isto tende para uma
caldeirada de paradoxos. Tempo do sofá, do cordial e do desfrute ..... ou da
luta contra o caminho do abismo. Questão
de idade e motivação ....: bento guerra: O Partido Democrata é um caos.
Vá lá que conseguiu escolher o caquéctico Biden, em vez do velho delirante
Sanders. Trump dominou a vontade dos Republicanos, agora organizem-se Adelino Lopes: Consegui / Consigo percepcionar
tudo aquilo que descreve. E faltam alguns exemplos, claro. Mas não consigo
descrevê-lo de uma forma pedagógica como o Paulo Tunhas o faz. Obrigado pela
parte que me toca. Trump? Porque eu gostava que o Trump ganhasse? Porque
acredito que esses progressistas (cancel culture, Black Lives Matter, Antifas,
Extinction Rebellion, etc, etc) ficam com as armas (dinheiro do orçamento federal) para
continuarem a influenciar no mundo. Não, não são democratas. Tratam as
pessoas como se fossem carneiros, que não se podem expressar, nem podem sequer
pensar em surdina. Para percepcionarmos este resultado, basta tentarmos
responder à seguinte questão: qual o programa na televisão portuguesa que
tivesse origem no canal de televisão americana que tradicionalmente apoia os
republicanos? É deste tipo de controlo das mentes que refiro! João Soares > Adelino Lopes: Nem mais... Autêntica sociedade de zombies, com
valores e estilo de vida abjectos. Temo que, tal como a esquizofrenia, doença
do foro psíquico, seja necessário empregar medicamentos de metais pesados. Se
no caso da esquizofrenia o tratamento é com lítio, neste caso só mesmo com chumbo.
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