Curioso texto, sobre a importância da
fundação das cidades antigas, em locais prósperos ou segundo leis disciplinadoras,
ou mesmo apenas para glorificação dos fundadores.
Enviado por João Sena, a quem agradeço. De “A
Bigorna”, em tradução de Frederico
Martelo:
De quais têm sido, universalmente, os princípios de qualquer
cidade e de quais foram os de Roma - Nicolau Maquiavel
Quem tiver lido sobre o princípio da
cidade de Roma, os seus fundamentos legais e a forma como foi ordenada não se
surpreenderá que tanta virtude se tenha, por muitos séculos, mantido naquela
cidade e que, depois, dali tenha nascido o império que àquela república se
seguiu. E, querendo, primeiramente, discorrer sobre o seu nascimento, digo
que todas as cidades são erguidas ou pelos habitantes do lugar onde surgem ou
por forasteiros. O primeiro caso ocorria quando os habitantes dispersos
em muitas e pequenas partes não se sentiam seguros, não podendo, cada uma por
si, considerando o local e o pequeno número, resistir ao ímpeto de quem os
assaltasse; e, para se unirem para a sua defesa, perante a aproximação de um
inimigo, lhes escasseava o tempo, ou, tendo-o, implicava o abandono de muitos
dos seus redutos. Deste modo, tornavam-se presa fácil dos seus inimigos, pelo
que, para obviar a este perigo, movidos por eles próprios ou por algum de entre
eles com maior autoridade, se sujeitaram a viver juntos, num local por eles
escolhido, mais vantajoso para habitar e mais fácil de defender. Desta
forma, entre muitas outras, foram constituídas Atenas e Veneza. A primeira, sob a autoridade de Teseu
(1)
,
foi por idêntica razão edificada pelos habitantes dispersos; na outra, tendo-se instalado muitos
povos em certas ilhas situadas na extremidade do Mar Adriático para fugir
das guerras que constantemente deflagravam em Itália após a queda do Império
romano, devido à chegada de novos bárbaros, começaram, sozinhos – sem que
houvesse um príncipe por eles reconhecido que os ordenasse –, a viver sob o domínio das leis que lhes
pareciam mais apropriadas à sua conservação. O que conseguiram com muita
felicidade e por muito tempo, dado o longo período de paz que se
seguiu, resultado da
não-existência de uma saída naquele mar e do facto dos povos que afligiam a
Itália não disporem de navios para poder abordá-los. De tal
modo que, pese embora o pequeno princípio, isso não os impediu de alcançar a sua actual grandeza. No
segundo caso, quando uma cidade é edificada por gente forasteira, pode
acontecer ou com homens livres ou com homens que dependem de outros, como é o
caso das colónias destacadas por uma república ou por um príncipe para aliviar
os seus países de um excesso populacional ou para defesa de um território,
recentemente conquistado, cuja conservação se pretende garantir com segurança e
a baixo custo. Deste tipo, foram diversas as cidades edificadas pelo Povo romano e em todo o
seu império, mas também têm sido erguidas por alguns príncipes, não para as
habitarem, mas tão-só para sua própria glória, como foi o caso de Alexandria
relativamente
a Alexandre. E, por essas
cidades não terem uma origem livre, raramente experimentam grandes progressos e
chegam a capitais de reinos. Em situação semelhante se deu a edificação
de Florença, porque (ou erguida pelos soldados de Sila ou,
porventura, pelos habitantes do monte de Fiesole, os quais, confiantes naquela
longa paz que, sob Octaviano, o mundo conheceu, se decidiram a habitar a
planura às margens do Arno) nasceu
sob o Império romano, não podendo, nos seus primeiros tempos, fazer outros
progressos senão os que, por favor do estado soberano, lhe eram consentidos.
Os edificadores das cidades consideram-se livres quando alguns povos,
sob a autoridade de um príncipe ou por iniciativa própria, são obrigados,
devido a enfermidade, fome ou guerra, a abandonar o seu território pátrio e a
criar uma nova sede. Em
tal caso, ou vão habitar as cidades que encontram nos países conquistados, como
fez Moisés, ou constroem-nas de
novo, como fez Eneias. Neste
caso, é onde se pode comprovar a virtude do edificador e a fortuna do
edificado, as quais são mais ou menos admiráveis consoante é mais ou menos
virtuoso o responsável pelo seu início. Virtude que se pode avaliar
de duas maneiras: a
primeira é a que respeita à escolha do local; a segunda é a relativa à
ordenação das leis. E, como os homens agem ou por necessidade ou por
sua própria iniciativa, e, dado que se vê ser maior a virtude onde a iniciativa
é acompanhada de mais restrições, é de considerar se não seria melhor escolher,
para erguer uma cidade, locais estéreis, de modo a que os homens,
(1) Rei de Atenas (séc. XIII a.C.).
obrigados a dar o seu melhor e menos
atraídos pelo ócio, vivessem mais unidos, tendo, pela pobreza do local, menos
razões para discórdias. Foi o que sucedeu em Ragusa e em
muitas outras cidades edificadas em semelhantes locais. Uma tal escolha seria, sem dúvida, mais sábia e mais útil, contanto que
os homens se satisfizessem em viver com o que tivessem e não se deixassem
tentar pela dominação de outros. No entanto, não podendo os
homens garantir a sua sobrevivência senão através da força, é necessário evitar
a esterilidade dos países e preferir lugares muito férteis, onde, podendo
crescer graças à uberdade da terra, aí se possam defender de quem os atacar e
rechaçar quem quer que à sua grandeza se opuser. E,
quanto àquele langor que o lugar pudesse proporcionar, deve
providenciar-se no sentido de que as leis o constrinjam e imitar aqueles que
foram sábios e habitaram países muitíssimo amenos e férteis, propícios a
produzir homens ociosos e renitentes a qualquer esforço físico, os quais, para
obviarem aos danos que a amenidade do país, propiciando o lazer, podia causar,
impuseram o exercício àqueles que teriam de ser soldados. De tal
modo que, através dessa obrigatoriedade, se tornaram melhores soldados do que
os dos países que a natureza criou ásperos e estéreis. Nos quais se
inclui o reino dos
Egípcios, o qual, não obstante o facto de o país ser
ameníssimo, pela força da necessidade, enquadrada legalmente, produziu excelentes combatentes. E, se os seus nomes não tivessem sido apagados
pelo tempo, ver-se-ia como mereceriam maior louvor do que Alexandre Magno
e muitos outros, dos quais a memória fresca ainda perdura. E, quem tivesse considerado o reino do Sultão e a organização dos Mamelucos e do seu exército, antes da sua destruição por Selim,
o Grã Turco, poderia
apreciar a quantidade de exercícios com que adestravam os soldados e perceberia
como eles temiam a ociosidade a que a benignidade do clima podia
conduzir, se não se lhe tivessem oposto com severíssimas leis. Digo,
portanto, que é mais prudente que a escolha recaia num lugar fértil quando
os efeitos dessa fertilidade sejam devidamente contrabalançados pelas leis. Alexandre
Magno, desejando edificar uma cidade que perpetuasse a sua glória, recebeu o
arquitecto Dinócrates, o qual lhe
demonstrou como a poderia edificar no Monte Atos, local que,
além de ser um ponto-forte natural, podia acomodar-se de tal modo que a cidade
tivesse uma forma humana, o que seria coisa maravilhosa e rara e digna da sua
grandeza. E, tendo-lhe perguntado
Alexandre de que é que os seus habitantes viveriam, respondeu que nisso não
tinha sequer pensado, do que aquele, naturalmente, se riu. Rejeitando a ideia
do monte, edificou Alexandria, onde os habitantes haveriam de estar de bom grado,
dada a abastança da região e a proximidade do mar e do Nilo. Quem, por conseguinte, estudar a edificação
de Roma, se considerar Eneias como
seu primeiro progenitor, terá de incluí-la nas cidades erguidas por forasteiros;
se considerar que foi Rómulo,
deverá incluí-la no grupo das que foram edificadas por homens nascidos no
local. De qualquer modo, vê-la-á ter um princípio livre, sem
dependência de ninguém. Verá, igualmente, como se dirá mais adiante, a quantos
condicionamentos foi submetida pelas leis aprovadas por Rómulo, Numa e por outros, de tal
sorte que a fertilidade do lugar, a
proximidade do mar, as frequentes vitórias e a grandeza do Império não foram
bastantes, por muitos séculos, para a corromper, e a mantiveram plena de muita
virtude – maior do que em qualquer outra cidade ou república.
O presente texto constitui o capítulo I
do Livro Primeiro de Tradução e notas de David Martelo
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