sábado, 14 de novembro de 2020

Maquiavel por email

 

Curioso texto, sobre a importância da fundação das cidades antigas, em locais prósperos ou segundo leis disciplinadoras, ou mesmo apenas para glorificação dos fundadores.

Enviado por João Sena, a quem agradeço. De “A Bigorna”, em tradução de Frederico Martelo:

 

De quais têm sido, universalmente, os princípios de qualquer cidade e de quais foram os de Roma  - Nicolau Maquiavel

Quem tiver lido sobre o princípio da cidade de Roma, os seus fundamentos legais e a forma como foi ordenada não se surpreenderá que tanta virtude se tenha, por muitos séculos, mantido naquela cidade e que, depois, dali tenha nascido o império que àquela república se seguiu. E, querendo, primeiramente, discorrer sobre o seu nascimento, digo que todas as cidades são erguidas ou pelos habitantes do lugar onde surgem ou por forasteiros. O primeiro caso ocorria quando os habitantes dispersos em muitas e pequenas partes não se sentiam seguros, não podendo, cada uma por si, considerando o local e o pequeno número, resistir ao ímpeto de quem os assaltasse; e, para se unirem para a sua defesa, perante a aproximação de um inimigo, lhes escasseava o tempo, ou, tendo-o, implicava o abandono de muitos dos seus redutos. Deste modo, tornavam-se presa fácil dos seus inimigos, pelo que, para obviar a este perigo, movidos por eles próprios ou por algum de entre eles com maior autoridade, se sujeitaram a viver juntos, num local por eles escolhido, mais vantajoso para habitar e mais fácil de defender. Desta forma, entre muitas outras, foram constituídas Atenas e Veneza. A primeira, sob a autoridade de Teseu (1) , foi por idêntica razão edificada pelos habitantes dispersos; na outra, tendo-se instalado muitos povos em certas ilhas situadas na extremidade do Mar Adriático para fugir das guerras que constantemente deflagravam em Itália após a queda do Império romano, devido à chegada de novos bárbaros, começaram, sozinhos – sem que houvesse um príncipe por eles reconhecido que os ordenasse –, a viver sob o domínio das leis que lhes pareciam mais apropriadas à sua conservação. O que conseguiram com muita felicidade e por muito tempo, dado o longo período de paz que se seguiu, resultado da não-existência de uma saída naquele mar e do facto dos povos que afligiam a Itália não disporem de navios para poder abordá-los. De tal modo que, pese embora o pequeno princípio, isso não os impediu de alcançar a sua actual grandeza. No segundo caso, quando uma cidade é edificada por gente forasteira, pode acontecer ou com homens livres ou com homens que dependem de outros, como é o caso das colónias destacadas por uma república ou por um príncipe para aliviar os seus países de um excesso populacional ou para defesa de um território, recentemente conquistado, cuja conservação se pretende garantir com segurança e a baixo custo. Deste tipo, foram diversas as cidades edificadas pelo Povo romano e em todo o seu império, mas também têm sido erguidas por alguns príncipes, não para as habitarem, mas tão-só para sua própria glória, como foi o caso de Alexandria relativamente a Alexandre. E, por essas cidades não terem uma origem livre, raramente experimentam grandes progressos e chegam a capitais de reinos. Em situação semelhante se deu a edificação de Florença, porque (ou erguida pelos soldados de Sila ou, porventura, pelos habitantes do monte de Fiesole, os quais, confiantes naquela longa paz que, sob Octaviano, o mundo conheceu, se decidiram a habitar a planura às margens do Arno) nasceu sob o Império romano, não podendo, nos seus primeiros tempos, fazer outros progressos senão os que, por favor do estado soberano, lhe eram consentidos. Os edificadores das cidades consideram-se livres quando alguns povos, sob a autoridade de um príncipe ou por iniciativa própria, são obrigados, devido a enfermidade, fome ou guerra, a abandonar o seu território pátrio e a criar uma nova sede. Em tal caso, ou vão habitar as cidades que encontram nos países conquistados, como fez Moisés, ou constroem-nas de novo, como fez Eneias. Neste caso, é onde se pode comprovar a virtude do edificador e a fortuna do edificado, as quais são mais ou menos admiráveis consoante é mais ou menos virtuoso o responsável pelo seu início. Virtude que se pode avaliar de duas maneiras: a primeira é a que respeita à escolha do local; a segunda é a relativa à ordenação das leis. E, como os homens agem ou por necessidade ou por sua própria iniciativa, e, dado que se vê ser maior a virtude onde a iniciativa é acompanhada de mais restrições, é de considerar se não seria melhor escolher, para erguer uma cidade, locais estéreis, de modo a que os homens,

(1) Rei de Atenas (séc. XIII a.C.).

obrigados a dar o seu melhor e menos atraídos pelo ócio, vivessem mais unidos, tendo, pela pobreza do local, menos razões para discórdias. Foi o que sucedeu em Ragusa e em muitas outras cidades edificadas em semelhantes locais. Uma tal escolha seria, sem dúvida, mais sábia e mais útil, contanto que os homens se satisfizessem em viver com o que tivessem e não se deixassem tentar pela dominação de outros. No entanto, não podendo os homens garantir a sua sobrevivência senão através da força, é necessário evitar a esterilidade dos países e preferir lugares muito férteis, onde, podendo crescer graças à uberdade da terra, aí se possam defender de quem os atacar e rechaçar quem quer que à sua grandeza se opuser. E, quanto àquele langor que o lugar pudesse proporcionar, deve providenciar-se no sentido de que as leis o constrinjam e imitar aqueles que foram sábios e habitaram países muitíssimo amenos e férteis, propícios a produzir homens ociosos e renitentes a qualquer esforço físico, os quais, para obviarem aos danos que a amenidade do país, propiciando o lazer, podia causar, impuseram o exercício àqueles que teriam de ser soldados. De tal modo que, através dessa obrigatoriedade, se tornaram melhores soldados do que os dos países que a natureza criou ásperos e estéreis. Nos quais se inclui o reino dos Egípcios, o qual, não obstante o facto de o país ser ameníssimo, pela força da necessidade, enquadrada legalmente, produziu excelentes combatentes. E, se os seus nomes não tivessem sido apagados pelo tempo, ver-se-ia como mereceriam maior louvor do que Alexandre Magno e muitos outros, dos quais a memória fresca ainda perdura. E, quem tivesse considerado o reino do Sultão e a organização dos Mamelucos e do seu exército, antes da sua destruição por Selim, o Grã Turco, poderia apreciar a quantidade de exercícios com que adestravam os soldados e perceberia como eles temiam a ociosidade a que a benignidade do clima podia conduzir, se não se lhe tivessem oposto com severíssimas leis. Digo, portanto, que é mais prudente que a escolha recaia num lugar fértil quando os efeitos dessa fertilidade sejam devidamente contrabalançados pelas leis. Alexandre Magno, desejando edificar uma cidade que perpetuasse a sua glória, recebeu o arquitecto Dinócrates, o qual lhe demonstrou como a poderia edificar no Monte Atos, local que, além de ser um ponto-forte natural, podia acomodar-se de tal modo que a cidade tivesse uma forma humana, o que seria coisa maravilhosa e rara e digna da sua grandeza. E, tendo-lhe perguntado Alexandre de que é que os seus habitantes viveriam, respondeu que nisso não tinha sequer pensado, do que aquele, naturalmente, se riu. Rejeitando a ideia do monte, edificou Alexandria, onde os habitantes haveriam de estar de bom grado, dada a abastança da região e a proximidade do mar e do Nilo. Quem, por conseguinte, estudar a edificação de Roma, se considerar Eneias como seu primeiro progenitor, terá de incluí-la nas cidades erguidas por forasteiros; se considerar que foi Rómulo, deverá incluí-la no grupo das que foram edificadas por homens nascidos no local. De qualquer modo, vê-la-á ter um princípio livre, sem dependência de ninguém. Verá, igualmente, como se dirá mais adiante, a quantos condicionamentos foi submetida pelas leis aprovadas por Rómulo, Numa e por outros, de tal sorte que a fertilidade do lugar, a proximidade do mar, as frequentes vitórias e a grandeza do Império não foram bastantes, por muitos séculos, para a corromper, e a mantiveram plena de muita virtude – maior do que em qualquer outra cidade ou república.

O presente texto constitui o capítulo I do Livro Primeiro de Tradução e notas de David Martelo

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