É o que sugere este Donald Trump, figura de filme de ficção, que Jaime Nogueira Pinto desconstrói,
desmistificando e desmitificando, segundo a aversão que aquele soube produzir
junto de uma sociedade de bom tom, de boas maneiras, que despreza o bobo com
aparência de lobo, e tenta escorraçá-lo, embora reconhecendo-lhe valores reais
que, matreiramente, escamoteia…
O grande ogre /premium
A América está dividida e a culpa não
é exclusivamente de Trump. Trump é uma reacção a um processo de mundialização
da economia, de crise de valores da civilização, cujas vítimas estão a
resistir.
JAIME NOGUEIRA
PINTO
OBSERVADOR, 06 nov 2020,
Durante
meses, os institutos de sondagens norte-americanos, incluindo o Five
ThirtyEight e o RealClear
Politics, prepararam-nos para uma estrondosa
derrota de Donald Trump e do Partido
Republicano. Um
deles, o Consensus Electoral Map,
dava, à partida, 277 votos para os Democratas e 163 para os Republicanos, e em quase todos Biden vencia por 7, 8, 10, 12 ou mais pontos, a
nível nacional. E vencia mesmo em território republicano – na Flórida,
por 5 pontos, e até no
Texas –, enquanto
uma hecatombe varria os Republicanos do Senado e entregava aos Democratas uma
maioria reforçada nos Representantes.
Os
comentadores, os professores, os especialistas e os jornalistas do mainstream americano – e do nosso,
acolitados até à caricatura por opiniosos pivots – não
pararam de demonstrar de como, por maioria de razão, o Arcanjo Biden ia esmagar
num duelo épico final a Besta do Apocalipse Donald J. 666 Trump, que assim
arrastava para as profundas do Inferno um Partido Republicano que tomara à má
fila e do qual fizera um aglomerado de “deplorables”.
Dizer mal – muito mal – de Donald
Trump tornou-se, também por cá, um exercício de virtude, um atestado de boa
consciência liberal, democrática e socialmente correcta e até de superior
inteligência e cultura. Uns de
modo soft, queirosiano, outros com
verdadeiro tremendismo camiliano, todos exorcizaram o playboy da hotelaria que se
atrevera, não tanto a vir para a política, mas a vir “assim” para a política e
logo a pegar numa agenda proibida –
nacionalista, identitária, realista, proteccionista.
Mas
foi “assim” que Donald Trump furou o grande consenso. Foi “assim”, começando
por irromper como um pirata, sem regras nem modos, no Partido Republicano, que
foi desconstruindo os outros candidatos – Jebb Bush, Marco
Rubio, Ted Cruz. E eles fizeram por isso: eram uma dúzia e estavam
divididos contra o perturbador que, em termos relativos de minoria qualificada,
os foi batendo nas primárias.
Havia
coisas nele que então me chocavam muito e que me chocam ainda: o snobismo de ricaço de Queens, de milionário
do real estate, de personagem
excêntrica e pós-moderna de reality show, a
desenvoltura arrogante de quem se acha capaz de chegar, ver e vencer
facilmente. E, sobretudo, o ter começado por insultar alguém que sempre
admirei, John McCain, aviador e prisioneiro de guerra nas celas dos
comunistas de Hanoi; McCain, um “herói americano”, um herói tout court, que se recusara a ser
libertado, por privilégio, antes dos seus camaradas.
Quando
Trump ganhou a nomeação republicana e vi que alguns dos meus amigos
republicanos, reaganistas de sempre, até católicos, o apoiavam, não pude deixar
de lhes perguntar: “Mas como é que se apoia este tipo?” “É ele ou Hillary”, foi
a resposta. “E Hillary é bem pior.” O argumento era realista, encerrando uma verdade
filosófica e política: temos sempre de definir um Amigo e um Inimigo; e entre
os inimigos, o inimigo principal. E nesse ano, e nessa eleição de 2016,
Hillary Clinton era o inimigo principal. Hillary encarnava e simbolizava aquele
arrivismo liberal chique, aquela esquerda dos interesses que empunha a bíblia
globalista e internacionalista, o catecismo progressista e inquisitorial,
contra os “deploráveis” que “ainda” insistem em guiar-se pelos “retrógrados”
valores da religião, da nação, do enraizamento, da vida.
Era esse o tema, o catecismo, dominante; e Trump convertera-se na
antítese. Donald Trump, o milionário e playboy do show business, pegava na agenda
nacional conservadora e transformava-se no defensor da América profunda, da
América do Aço e do Automóvel, da América de Norman Rockwell e dos Westerns de John Ford, da
América de Eisenhower e de Reagan – e, sobretudo, da América real e presente,
branca, mas também negra ou hispânica, rústica, mas também letrada; uma América
farta de ser depauperada, manipulada, e silenciada e corrigida no pensamento e
na expressão.
Esta
América, metade da América, partilhava valores com a “outra Europa” que
despontava e se levantava.
Uma Europa que não queria ficar entre o neoliberalismo e a correcção política,
que via com pena a desindustrialização, que estava farta do Centrão e da
narrativa optimista dos Cândidos do século XXI.
Foi por aí que, apesar de tudo aquilo que na personalidade de Donald
Trump me chocava e irritava, o passei a defender politicamente. Primeiro porque, com algumas respeitáveis excepções,
o núcleo duro dos meus amigos e correligionários republicanos (que lá estavam,
no meio de uma realidade que, apesar de tudo, nos será sempre estranha), assim
o fizeram. Depois, porque a alternativa, não sendo diabólica, era bastante
pior. E nessa condição, de defensor do detestado candidato republicano, estive
em vários canais de televisão na noite da sua vitória, em Novembro de 2016. Tal
como agora.
Trump venceu então e foi
eleito presidente dos Estados Unidos, talvez o lugar mais importante deste
mundo. E desde o primeiro dia
que a coterie bem pensante, revoltada
contra o que ele significava, tratou de o deslegitimar: a democracia, a maioria democrática era boa, era
esclarecida, era soberana, não se enganava, por isso, se escolhia alguém como Trump, era porque fora enganada; era
porque houvera uma desvirtuação da salubridade, da substância ou da forma, ou
da substância e da forma, do processo democrático. E vieram as teses da Russian Connection, pôs-se o FBI a
investigar tenebrosos agentes de Putin, que estariam infiltrados para
influenciar e manipular os bons americanos e levá-los a eleger aquela marioneta
da Santa Rússia. Uma das
histórias, que citava um ex-spook inglês
e que circulou muito pela imprensa responsável, era uma chantagem ao libertino
Trump com filmagens num quarto de hotel em Moscovo, em cenas que surpreenderiam
e envergonhariam Messalina, Calígula e até o próprio Marquês de Sade. Meses de
investigação, milhões de dólares gastos, e nada.
E foi
também desde o primeiro dia e ao longo de todo o mandato que os vencidos
das eleições de 2016 alimentaram
as mais fabulosas histórias sobre o novo Presidente, ele próprio já pródigo em
histórias: histórias de mulheres e ditos sobre mulheres,
histórias de dinheiros, de impostos ou da sua ausência, histórias de devassidão.
Depois passaram a um impeachment, que
sabiam de antemão que não passaria no Senado.
Este
live show tomou conta do mainstream mediático
norte-americano, até de jornais “de referência”, como o New York Times e o Washington Post. Daí passou, rapidamente, para a Europa, onde
dizer mal de Trump se tornou uma espécie de tiro ao alvo fácil, um
“desbloqueador de conversa” tanto para os profissionais do bem-pensante como
para os amadores da trivialidade. O presidente americano passara a ser o
“bei de Túnis” dos pequenos e médios intelectuais e jornalistas do Euromundo.
Mas
como o esforço de deslegitimação via interferência externa acabou por não
funcionar, passou-se para a ideia de que Trump era claramente incompetente
para o cargo, por não ter cultura nem experiência política, por
ser emocionalmente instável, mudando de colaboradores a toda a hora e twittando
febrilmente sobre tudo e mais alguma coisa. Ou seja, da deslegitimação pela
origem passou-se para a deslegitimação pelo exercício.
É mais que evidente que Trump sai radicalmente do estilo do político
tradicional, da sua respeitabilidade, dos seus modos, dos seus discursos. Fala
para toda a gente, usa superlativos, é impiedosamente irónico, não poupa os
inimigos, não resiste a responder aos ataques e fá-lo normalmente em escalada. Foi, de resto, essa verbosidade excessiva – a seguir
à pandemia – o principal obstáculo à sua reeleição tranquila. As
suas permanentes declarações sobre a Covid-19,
sobre a maior ou menor gravidade da epidemia, sobre a sua natureza e possíveis
processos de terapia, tiveram efeitos muito negativos sobre a sua imagem e
Administração, também porque permanentemente explorados por uma extensa e
plural comunidade mediática, que ia dos panfletários esquerdistas a arautos da
respeitável burguesia internacionalista, como o Economist ou o Finantial
Times, incomodados com o nacionalismo e o proteccionismo de Trump.
E, no entanto, o Presidente cumpriu
parte substancial das suas promessas e, em termos de resultados (pré-Covid) foi
eficaz: a
economia americana viu uma grande valorização nos valores da Bolsa e o
desemprego atingiu mínimos históricos; muitos capitais regressaram aos Estados
Unidos, atraídos pela nova fiscalização; no plano internacional, não houve
guerras, assistiu-se a algum apaziguamento no Médio Oriente e Donald Trump fez
frente às pretensões da China e renegociou tratados de comércio na área
americana e asiática, acautelando os interesses dos Estados Unidos. Quanto à relação atlântica, explicou aos
europeus que teriam que pensar a defesa própria e custeá-la, pelo menos
naqueles mínimos impostos pela aliança NATO dos 2% do PNB.
Não
fora a pandemia e teria sido reeleito triunfalmente. Mas a pandemia chegou,
atingiu a América, e alguma leviandade do Presidente a falar do
assunto (à semelhança da de muitos políticos europeus) foi usada para o atacar. E este clima de
ataque mediático e de divórcio da realidade, ou de metade da realidade,
reflectiu-se nos institutos de sondagens, com excepção do Rasmussen e do Trafalgar que,
mais uma vez, como em 2016, foram os únicos a aproximar-se do real.
Por
exemplo, na véspera da eleição, o prestigiado RealClear Politics, dava Biden à
frente de Trump por 7, 2 pontos percentuais, em termos nacionais. A vantagem
foi de menos de 3%. Também o mesmo instituto dava Biden a bater Trump no
Wisconsin por 6,7% e no Michigan por 4,2%. E punha o vice-presidente de Obama à
frente de Trump na Flórida e na Pensilvânia. É bom olhar para os resultados e
pensar se estas conclusões têm que ver com incompetência, ou com uma agenda que
quis intencionalmente introduzir um factor de pessimismo e derrotismo e no
campo de Trump. Sem
contar com a “vergonha” ou o “receio” de se dizerem partidários do “Grande
Ogre” de alguns dos sondados.
Trump, entretanto, não cedeu e fez uma campanha com grande
dinâmica, assegurando para os republicanos vitórias no Senado e a recuperação
de lugares na Câmara dos Representantes.
Quanto
ao processo eleitoral em alguns swing states, já
se fala em eleições terceiro-mundistas, dada a quantidade de fraudes e
confusões já detectadas. É possível que haja recontagens e até processos legais
de contestação de resultados.
Mas a América está dividida e a culpa não é exclusivamente de Trump.
Trump é uma reacção a um processo de mundialização da economia, de crise de
valores da civilização e de domínio de um sistema, cujas vítimas – as classes
trabalhadoras e médias do Euromundo e talvez mais uma maioria silenciosa do
chamado Terceiro Mundo – estão, por uma vez, a resistir.
Tal como outros líderes e movimentos nas Américas e na Europa,
Trump, o Grande Ogre, é uma antítese. As sínteses vêm depois.
A SEXTA COLUNA ELEIÇÕES
EUA ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO DONALD
TRUMP
COMENTÁRIOS:
Carlos Quartel: Trump
parece-me um somatório de defeitos, arrogante, mentiroso, caluniador,
intratável, troca-tintas e mais uma série de adjectivos, à vontade do freguês.
Mas
algo tem que cativa os americanos. A fanfarronice, o julgar-se o herói, o
maior, o dono do mundo, o farol é muito americano, milhões de americanos são
como ele. O americano matacão, sem cultura, que nunca leu um livro, que
despreza universidades e professores (quem sabe, faz, quem não sabe, ensina) é
muito parecido com Trump. É vê-los, aos milhares, a gritarem para suspender a
contagem dos votos, sem se aperceberem da barbaridade que estão a dizer. Terá
também muitos votos de gente moderada, assustada com a radicalismo desses
movimentos que desejam romper com o que consideramos os valores da convivência
e da decência. Talvez isso explique como é que uma aberração destas teve tantos
votos .....
António Francisco: Brilhante síntese!
josé maria: Dizer que
Trump é uma reacção a uma crise de valores civilizacionais, ele que acaba de
produzir na televisão uma intervenção "digna " de um qualquer
Aleksandr Lukashenko, só me faz sorrir e comentar com profunda ironia e
sarcasmo...
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