Dantes, explorava-se graciosamente o
provérbio dos sete cães a um osso, mas não é esse o caso presente. Não se trata
de osso, mas de boa carne, e tanto mais saborosa quanto não nos custou a
ganhá-la, o que nos dá um sentimento de bem-estar superior, embora eu julgasse
que não. Como os herdeiros de fortunas que não têm de lutar pelo pão nosso de
cada dia e isso é tremendamente instigador dos seus orgulhos tontos. Não, não
se trata de osso, mas de distribuição de nacos da carne que nos é destinada, e
aí vamos nós distribuí-la, cada um assanhado, como os tais animais do provérbio
pelintra, sem o osso, embora. O retrato feito por Manuel Carvalho é suficientemente esclarecedor da nossa avidez de
penúria palavrosa, nem sequer dá vontade de reler, porque nos envergonha, numa
imagem de constância, sem solução nem expectativa de mudança…
EDITORIAL: Uma votação contaminada pelo
ridículo
Na votação do OE há avanços e recuos,
suspensões de agenda, birras, chantagens, adiamentos e negociações de
bastidores. Há excesso de vaidade, de indiferença e de autismo. E, sim, há uma
corrida para ver quem consegue aumentar mais a despesa do Estado num país
exaurido.
PÚBLICO, 24 de
Novembro de 2020
Por muito esforço que se faça para
entender o que se passa por estes dias na Assembleia da República, consegue-se
entender pouco. Esperava-se que a corrida contra o tempo até à votação
final global do Orçamento do Estado acusasse a gravidade do estado de
emergência e a solenidade de um momento ansioso da nossa vida colectiva. Não é
isso que está a acontecer.
Com
1365
propostas de alteração ao Orçamento condensadas num guião de 2700 páginas, as diferentes
bancadas esforçam-se tanto para exibir a sua capacidade de se fazer ouvir que
criaram uma opereta com um libreto ridículo, em que a pressa se impõe à
reflexão e a vaidade ao interesse do país.
Cabe tudo na barafunda. Há dinheiro ou pedidos de dinheiro para
espécies autóctones, para os bombeiros, investimentos no Pinhal de Leiria,
propostas de aumento do IVA nos fertilizantes ou para “proteger as reservas
naturais dos impactos da poluição luminosa no ambiente”. Há exigências para se
instalar a Entidade da Transparência ou o Observatório Independente para a Monitorização
do Discurso de Ódio e Ciberbullying.
Há
um pedido de um plano anual de controlo da qualidade das refeições servidas nos
estabelecimentos da administração pública. Há taxas e taxinhas, como a que vai
penalizar em 30 cêntimos as embalagens
descartáveis de take-away na restauração, um sector que, como
se sabe, transborda de prosperidade. E há até a criação de um provedor do
Animal, mas não um provedor qualquer: um “que seja a voz dos
animais e não do sector económico”, como atestou uma deputada do PAN.
Cada
partido se acha no direito de ir à feira e negociar tudo e mais alguma coisa. A
tenda montada pelo PS favorece claramente os clientes do PCP para levar o
Orçamento a bom porto e deprecia todos os outros, principalmente o cliente que
questionou os preços e a qualidade do produto – o
Bloco, claro está. Há
avanços e recuos, suspensões de agenda, birras, chantagens, adiamentos e
negociações de bastidores. Há excesso de vaidade, de indiferença e de autismo.
E, sim, há uma corrida para ver quem consegue aumentar mais a despesa do Estado
num país exaurido.
Arranca o debate do OE artigo a artigo.
Guiões para votar somam mais de 2700 páginas
Partidos entregam 1365 propostas de
alteração: só o PCP entregou 320
PS aproxima-se do PCP no layoff, mas o desfecho
do OE continua em aberto
Será que os nossos deputados não deram conta de que o país vive em
estado de emergência? Faz
sentido este festival de medidas que desviam as atenções das grandes decisões
para proteger os cidadãos mais vulneráveis, a economia, o emprego, o SNS ou a
educação? Há
rituais em democracia que oscilam entre a comédia e o drama e assim escapam à
nossa compreensão. Mas ver os deputados
perderem-se em questões acessórias para fazer prova de vida não serve
apenas para tornar o Orçamento num mastodonte ingovernável: serve também para o
desacreditar pelo ridículo.
TÓPICOS
POLÍTICA EDITORIAL OPINIÃO GOVERNO ORÇAMENTO DO ESTADO ORÇAMENTO DO ESTADO 2021 ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
COMENTÁRIOS
bernafm INICIANTE: Com toda esta chantagem do negócio orçamental por parte dos
partidos políticos que não olham para o facto de que o país não tem dinheiro
para tanta reivindicação, este orçamento tem os dias contados. Talvez não cheguemos
à primavera sem um orçamento rectificativo. Mas nessa altura talvez tenhamos de
recorrer outra vez à ajuda externa. É a sina do PS desde 1974. Começa por dar
tudo e termina saindo de fininho deixando o país na bancarrota. Gabriela
Cardia INICIANTE: Embora seja por todos constatável, não
posso deixar de o louvar por, pelo menos, ter a coragem de descrever o ultraje
óbvio, que os comprometidos calam. O ponto de decadência a que se chegou é
patente, mas ainda assim difícil de aceitar como real. O dano causado à
democracia, e às suas práticas e instituições, pela ânsia de poder pessoal e de
sobrevivência política de um político derrotado, sem qualidades outras que não
politiqueiras, e falho de qualquer consideração de interesse nacional, muito
dificilmente será reparado. E é já certo que em todo caso teremos que sofrer as
suas consequências por décadas, entregues a um circo de extremistas, da sua
exclusiva criação. Carlos
AF Costa INICIANTE: Concordo muitas vezes consigo. Desta vez
não. Compreendo que há alguns exageros, alguma falta de sensatez na discussão e
votação do OE, mas não vislumbro nenhum ridículo nas propostas ou medidas que
aponta como exemplo. Algumas fazem mesmo todo o sentido. Não meça a
sensibilidade dos outros pela sua. Quanto ao aumento da despesa, felizmente o
Público tem apontado justamente muitos exemplos que, esses sim, são verdadeiras
e profundas causas de despesas totalmente inúteis. Podemos começar pela Banca
até á gestão incompetente e irresponsável dos dinheiros públicos. JorgeQueirós
INICIANTE: Quando penso em políticos capazes, que possam dar a volta ao
país, fica sempre um vazio...
FzD
INFLUENTE: Parabéns, ou melhor, obrigado MC. Pela primeira vez me ri ao ler
um artigo seu. viana
EXPERIENTE: Parece que o Manuel Carvalho vive mal com a Democracia. O que
para si são questões acessórias, para outros são questões fulcrais. Quem
decide? O voto. Gostaria que todos pensassem como você? Felizmente, assim não
é. Nas próximas eleições legislativas os eleitores terão oportunidade de se
fazerem ouvir. E pelo que se percebe das sondagens não estão realmente
descontentes com o que vêem.
MTeixeira
INICIANTE: Este OE é o simples reflexo desta governação, motivada por
aceder ao poder, a troco de reivindicações de grupelhos, sem estratégias e
medidas de longo prazo, que adiam as soluções deste país e na senda de mais
endividamento e mais impostos. José
Teixeira Gomes EXPERIENTE: A esquerda, na qual me filio, devia ler
este artigo, carregado de bom senso cidadania
123 EXPERIENTE: É o que dá fazer depender a sobrevivência
do governo de tantos actores. Tivesse o PM aberto a porta ao PSD, e teria uma
negociação mais fácil com apenas um protagonista, e um orçamento mais certeiro
para o momento que Portugal vive. Assim vamos ter uma aberração orçamental com
prejuízo para o país. Neste momento Tenho vergonha destes deputados e partidos Marcelo
Melo EXPERIENTE: Está muito bem visto! E o pior de tudo é
que isto ocorre fora da esfera de atenção do cidadão comum, o que mostra que
dificilmente estas negociatas de medidas têm alguma coisa que ver com as
prioridades sentidas no terreno. Têm a ver com o xadrez interno em que se
tornou a aprovação de um orçamento. Depois da marcante liderança
autoritária do tempo Sócrates no período de maioria absoluta, temos agora esta
liderança democrática frouxa no período de pandemia. Triste fado o nosso: não
há quem afine a máquina directiva do Estado...
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