quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Não se trata do osso

 

Dantes, explorava-se graciosamente o provérbio dos sete cães a um osso, mas não é esse o caso presente. Não se trata de osso, mas de boa carne, e tanto mais saborosa quanto não nos custou a ganhá-la, o que nos dá um sentimento de bem-estar superior, embora eu julgasse que não. Como os herdeiros de fortunas que não têm de lutar pelo pão nosso de cada dia e isso é tremendamente instigador dos seus orgulhos tontos. Não, não se trata de osso, mas de distribuição de nacos da carne que nos é destinada, e aí vamos nós distribuí-la, cada um assanhado, como os tais animais do provérbio pelintra, sem o osso, embora. O retrato feito por Manuel Carvalho é suficientemente esclarecedor da nossa avidez de penúria palavrosa, nem sequer dá vontade de reler, porque nos envergonha, numa imagem de constância, sem solução nem expectativa de mudança…

 

EDITORIAL: Uma votação contaminada pelo ridículo

Na votação do OE há avanços e recuos, suspensões de agenda, birras, chantagens, adiamentos e negociações de bastidores. Há excesso de vaidade, de indiferença e de autismo. E, sim, há uma corrida para ver quem consegue aumentar mais a despesa do Estado num país exaurido.

PÚBLICO, 24 de Novembro de 2020

Por muito esforço que se faça para entender o que se passa por estes dias na Assembleia da República, consegue-se entender pouco. Esperava-se que a corrida contra o tempo até à votação final global do Orçamento do Estado acusasse a gravidade do estado de emergência e a solenidade de um momento ansioso da nossa vida colectiva. Não é isso que está a acontecer.

Com 1365 propostas de alteração ao Orçamento condensadas num guião de 2700 páginas, as diferentes bancadas esforçam-se tanto para exibir a sua capacidade de se fazer ouvir que criaram uma opereta com um libreto ridículo, em que a pressa se impõe à reflexão e a vaidade ao interesse do país.

Cabe tudo na barafunda. Há dinheiro ou pedidos de dinheiro para espécies autóctones, para os bombeiros, investimentos no Pinhal de Leiria, propostas de aumento do IVA nos fertilizantes ou para “proteger as reservas naturais dos impactos da poluição luminosa no ambiente”. Há exigências para se instalar a Entidade da Transparência ou o Observatório Independente para a Monitorização do Discurso de Ódio e Ciberbullying.

Há um pedido de um plano anual de controlo da qualidade das refeições servidas nos estabelecimentos da administração pública. Há taxas e taxinhas, como a que vai penalizar em 30 cêntimos as embalagens descartáveis de take-away na restauração, um sector que, como se sabe, transborda de prosperidade. E há até a criação de um provedor do Animal, mas não um provedor qualquer: um “que seja a voz dos animais e não do sector económico”, como atestou uma deputada do PAN.

Cada partido se acha no direito de ir à feira e negociar tudo e mais alguma coisa. A tenda montada pelo PS favorece claramente os clientes do PCP para levar o Orçamento a bom porto e deprecia todos os outros, principalmente o cliente que questionou os preços e a qualidade do produto – o Bloco, claro está. Há avanços e recuos, suspensões de agenda, birras, chantagens, adiamentos e negociações de bastidores. Há excesso de vaidade, de indiferença e de autismo. E, sim, há uma corrida para ver quem consegue aumentar mais a despesa do Estado num país exaurido.

Arranca o debate do OE artigo a artigo. Guiões para votar somam mais de 2700 páginas

Partidos entregam 1365 propostas de alteração: só o PCP entregou 320

PS aproxima-se do PCP no layoff, mas o desfecho do OE continua em aberto

Será que os nossos deputados não deram conta de que o país vive em estado de emergência? Faz sentido este festival de medidas que desviam as atenções das grandes decisões para proteger os cidadãos mais vulneráveis, a economia, o emprego, o SNS ou a educação? Há rituais em democracia que oscilam entre a comédia e o drama e assim escapam à nossa compreensão. Mas ver os deputados perderem-se em questões acessórias para fazer prova de vida não serve apenas para tornar o Orçamento num mastodonte ingovernável: serve também para o desacreditar pelo ridículo.

tp.ocilbup@ohlavrac.leunam

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COMENTÁRIOS

bernafm INICIANTE: Com toda esta chantagem do negócio orçamental por parte dos partidos políticos que não olham para o facto de que o país não tem dinheiro para tanta reivindicação, este orçamento tem os dias contados. Talvez não cheguemos à primavera sem um orçamento rectificativo. Mas nessa altura talvez tenhamos de recorrer outra vez à ajuda externa. É a sina do PS desde 1974. Começa por dar tudo e termina saindo de fininho deixando o país na bancarrota.         Gabriela Cardia INICIANTE: Embora seja por todos constatável, não posso deixar de o louvar por, pelo menos, ter a coragem de descrever o ultraje óbvio, que os comprometidos calam. O ponto de decadência a que se chegou é patente, mas ainda assim difícil de aceitar como real. O dano causado à democracia, e às suas práticas e instituições, pela ânsia de poder pessoal e de sobrevivência política de um político derrotado, sem qualidades outras que não politiqueiras, e falho de qualquer consideração de interesse nacional, muito dificilmente será reparado. E é já certo que em todo caso teremos que sofrer as suas consequências por décadas, entregues a um circo de extremistas, da sua exclusiva criação.    Carlos AF Costa INICIANTE: Concordo muitas vezes consigo. Desta vez não. Compreendo que há alguns exageros, alguma falta de sensatez na discussão e votação do OE, mas não vislumbro nenhum ridículo nas propostas ou medidas que aponta como exemplo. Algumas fazem mesmo todo o sentido. Não meça a sensibilidade dos outros pela sua. Quanto ao aumento da despesa, felizmente o Público tem apontado justamente muitos exemplos que, esses sim, são verdadeiras e profundas causas de despesas totalmente inúteis. Podemos começar pela Banca até á gestão incompetente e irresponsável dos dinheiros públicos.      JorgeQueirós INICIANTE: Quando penso em políticos capazes, que possam dar a volta ao país, fica sempre um vazio...        FzD INFLUENTE: Parabéns, ou melhor, obrigado MC. Pela primeira vez me ri ao ler um artigo seu.       viana EXPERIENTE: Parece que o Manuel Carvalho vive mal com a Democracia. O que para si são questões acessórias, para outros são questões fulcrais. Quem decide? O voto. Gostaria que todos pensassem como você? Felizmente, assim não é. Nas próximas eleições legislativas os eleitores terão oportunidade de se fazerem ouvir. E pelo que se percebe das sondagens não estão realmente descontentes com o que vêem.     MTeixeira INICIANTE: Este OE é o simples reflexo desta governação, motivada por aceder ao poder, a troco de reivindicações de grupelhos, sem estratégias e medidas de longo prazo, que adiam as soluções deste país e na senda de mais endividamento e mais impostos. José Teixeira Gomes EXPERIENTE: A esquerda, na qual me filio, devia ler este artigo, carregado de bom senso          cidadania 123 EXPERIENTE: É o que dá fazer depender a sobrevivência do governo de tantos actores. Tivesse o PM aberto a porta ao PSD, e teria uma negociação mais fácil com apenas um protagonista, e um orçamento mais certeiro para o momento que Portugal vive. Assim vamos ter uma aberração orçamental com prejuízo para o país. Neste momento Tenho vergonha destes deputados e partidos        Marcelo Melo EXPERIENTE: Está muito bem visto! E o pior de tudo é que isto ocorre fora da esfera de atenção do cidadão comum, o que mostra que dificilmente estas negociatas de medidas têm alguma coisa que ver com as prioridades sentidas no terreno. Têm a ver com o xadrez interno em que se tornou a aprovação de um orçamento. Depois da marcante liderança autoritária do tempo Sócrates no período de maioria absoluta, temos agora esta liderança democrática frouxa no período de pandemia. Triste fado o nosso: não há quem afine a máquina directiva do Estado...

 

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