segunda-feira, 30 de novembro de 2020

“Tenho dito”


Isso é lá muito atrás, esses tempos da monarquia - de que trata o Dr. Salles, em que os discursos dos reis não tinham grande ênfase, talvez por estarem mais ocupados em agir do que em discursar. Não me sai da memória, mais recentemente, no entanto - mas já lá vão 40 e tal anos - o “Portugueses!” arrogante e despachado do general Eanes, não finalizante mas introdutório dos discursos que aplicou quando libertou o país das garras traiçoeiras do Copcom, embora fosse por pouco tempo, porque a semente - da traição - ficou e parece que vingou bem, na terra adubada com a pecúnia externa.

Vindo dos tempos da primeira república, salvo erro, usou-se o “pela lei e pela grei” que mostrou a afinidade dos instruídos republicanos, com as doutrinas que mandavam proteger o povo, seguindo critérios justiceiros, mas não sei se a expressão é ainda mais antiga, com a sua etimologia alatinada. O que não esqueço são as cantorias da infância, não sei se cantadas cá, na escola primária, se já em África. Era, salvo erro, o Hino da Restauração que me ficou na memória, tarda hoje em expressões mais comuns, mas com o seu cantinho da infância na reserva, como acontecia com a minha mãe, cujas memórias já lembrei. Era o seguinte, o Hino da Restauração:

“Lusitanos, é chegado

O dia da redenção.

Caem do (peito?) pulso as algemas.

Ressurge livre a Nação.

O deus de Afonso em Ourique

Dos livres nos deu a lei -

Nossos braços a sustentem,

Pela pátria, pelo rei …

Às armas, às armas

O ferro a empunhar

A pátria nos chama,

Convida a lidar.

Trá lá lá lá lá lá lá

A - a lidar

Às armas, às armas,

Trá lá lá

A pátria nos chama…

Já agora, também recordo a Maria da Fonte, que cheguei a cantar aos meus alunos, por alturas da querela do Bom Senso e Bom Gosto da evolução para o realismo, para lhes lembrar como o povo é entidade livre e corajosa, já desde a “padeira de Aljubarrota”, D. Brites de Almeida, e a findar na “Catarina Eufêmia”:

Viva a Maria da Fonte

A cavalo, sem cair,

Com a corneta na mão

A tocar a reunir,

Mas essa, encontro-a no Youtube cantada pelo Vitorino e com letra mais adequada.

Tudo isto me acode a propósito da fórmula que o Dr. Salles pretende que devia haver nos tempos monárquicos, de desfecho dos discursos reais, mas provavelmente não havia assim tantos discursos, gente essencialmente de acção, como se lê n’Os Lusíadas, com o D. João I, no Canto IV, a acompanhar os seus homens antes da Batalha de Aljubarrota e onde Nuno Álvares Pereira , esse sim, pronuncia umas falas alterosas contra os que se mancomunavam com os castelhanos, antes da batalha de Aljubarrota:

12
«Joane, a quem do peito o esforço crece,
Como a Sansão Hebreio da guedelha,
Posto que tudo pouco lhe parece,
Cos poucos do seu Reino se aparelha;
E, não porque conselho lhe falece,
Cos principais senhores se aconselha,
Mas só por ver das gentes as sentenças,
Que sempre houve entre muitos diferenças.

13
«Não falta com razões quem desconcerte
Da opinião de todos, na vontade;
Em quem o esforço antigo se converte
Em desusada e má deslealdade,
Podendo o temor mais, gelado, inerte,
Que a própria e natural fidelidade.
Negam o Rei e a Pátria e, se convém,
Negarão (como Pedro) o Deus que têm.

14
«Mas nunca foi que este erro se sentisse
No forte Dom Nuno Álvares; mas antes,
Posto que em seus irmãos tão claro o visse,
Reprovando as vontades inconstantes,
Àquelas duvidosas gentes disse,
Com palavras mais duras que elegantes,
A mão na espada, irado e não facundo,
Ameaçando a terra, o mar e o mundo:

15
– «Como? Da gente ilustre Portuguesa
Há-de haver quem refuse o pátrio Marte?
Como? Desta província, que princesa
Foi das gentes na guerra em toda parte,
Há-de sair quem negue ter defesa?
Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte
De Português, e por nenhum respeito
O próprio Reino queira ver sujeito?

16
«Como? Não sois vós inda os descendentes
Daqueles que, debaixo da bandeira
Do grande Henriques, feros e valentes,
Vencestes esta gente tão guerreira,
Quando tantas bandeiras, tantas gentes
Puseram em fugida, de maneira
Que sete ilustres Condes lhe trouxeram
Presos, afora a presa que tiveram?

17
«Com quem foram contino sopeados
Estes, de quem o estais agora vós,
Por Dinis e seu filho sublimados,
Senão cos vossos fortes pais e avós?
Pois se, com seus descuidos ou pecados,
Fernando em tal fraqueza assim vos pôs,
Torne-vos vossas forças o Rei novo,
Se é certo que co Rei se muda o povo.

18
«Rei tendes tal que, se o valor tiverdes
Igual ao Rei que agora alevantastes,
Desbaratareis tudo o que quiserdes,
Quanto mais a quem já desbaratastes.
E se com isto, enfim, vos não moverdes
Do penetrante medo que tomastes,
Atai as mãos a vosso vão receio,
Que eu só resistirei ao jugo alheio.

19
«Eu só, com meus vassalos e com esta
(E dizendo isto arranca meia espada),
Defenderei da força dura e infesta
A terra nunca de outrem sojugada.
Em virtude do Rei, da pátria mesta,
Da lealdade já por vós negada,
Vencerei não só estes adversários,
Mas quantos a meu Rei forem contrários!» ….

E tudo isto – que não responde à dúvida posta pelo Dr. Salles, por deficiência técnica, mas que nos embala o prazer da memória antiga – serve apenas de recreio, por falta, pois, de alimento para a linfa da sua História, linfa, em todo o caso, sagrada, que nos ajudou por certo a seguir em frente, embora com os volteios e os emaranhamentos de quem talvez não atribua o mesmo valor às palavras, em fórmulas de uma cortesia nem sempre sincera, porque mais ou menos convencional, sobretudo nos tempos de hoje, em que as ideologias abastardam o conceito de pátria, em hiperbólico e falso amor pela humanidade. O “A Bem da Nação”, que é também título do seu blog, é suficientemente limitado mas sagrado, para cobrir todo um percurso histórico, no coração do seu autor, como no de todos os portugueses menos ambiciosos de universalidade.

 

A LINFA DA HISTÓRIA

Henrique Salles da Fonseca

30.11.20

Na actualidade, não me consta que haja uma fórmula obrigatória para as mensagens emitidas pelos diversos Departamentos oficiais mas no tempo do Estado Novo, os ofícios da Administração Pública encerravam com a fórmula «A bem da Nação»;

Durante a 1ª República, a fórmula equivalente era «Saúde e fraternidade».

A questão que aqui deixo aos Leitores monárquicos, aos historiadores e aos curiosos é:

Tendo havido, qual era a fórmula protocolarmente definida para encerramento das comunicações oficiais escritas no tempo da Monarquia constitucional?

Claro está que se trata de um tema menor, literalmente, quase de pé de página mas que dá uma ideia sobre o tom genérico da alma de um Regime. Não é o sangue das grandes proclamações, não, mas é por certo a linfa dos pequenos momentos que ajudam a roda da vida a girar.

Aguardemos pela ajuda de quem saiba…

Novembro de 2020

 

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