Estou lendo “Novas Cartas Portuguesas”, que há 46 anos tentei ler, da
biblioteca da minha irmã, e, por estupefacção, ou por não entender bem, pus de
parte. Trata-se de um livro poderoso, de intenções políticas, de estrutura vária,
de linguagem feita ora de ambiguidade, ora de simplicidade prosaica a tender
para a diversão trocista, sobretudo quando pega na linguagem simples do povo
iletrado, tendo, como ponto de partida as cinco “Cartas” lacrimosas ao
cavaleiro de Chamilly, da desgraçada amante Sóror Mariana Alcoforado, e como
fio condutor, o ódio feroz ao homem dominador da sociedade machista portuguesa,
às mães submissas e castradoras das filhas que condenavam à “fogueira”
conventual, movidas por preferências de outros afectos a outras filhas que
destinavam ao casamento interesseiro, um livro de ódio, um livro de “três Marias”
que jamais se identificam, na complexidade dessa estrutura que contém poesia,
cartas e narrativas várias de figurantes vários, breves acções de violência sexual
e criminal perfeitamente desinibida, um espasmo de ódio por uma sociedade
machista e um regime político que se pretende destruir. Estou a ler e admiro,
conquanto nem sempre perceba os rebuscamentos linguísticos de alguns troços
narrativos, sem uma argumentação directa, mas inegavelmente rica de
intencionalidade perversa que tudo leva de vencida, orquestrada pelos afagos de
mudanças do “Maio de 68” e da orientação “pedagógica” obtida com “Le Deuxième Sexe” e movimentos afins.
E isso me trouxe à memória a história em tempos narrada, história
pessoal escrita em Lourenço Marques, na saudade da família e dum passado que
tinha como figura sempre admirada, o meu pai, e as suas cartas tantas vezes em
verso, que transportei religiosamente quando da família me separei para vir
estudar em Coimbra. Um dia, já morto o meu pai, quis dar seguimento a um
projecto alegre e suave, de gratas recordações e concorri com essa e outras obras
a uma editora on-line que a escolheu, bem como a outros autores. Entretanto, a
editora desapareceu e com ela o livrinho e os dos outros concorrentes.
A leitura das “Novas Cartas Portuguesas”, das escritoras Maria Isabel Barreno,
Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, causando-me admiração, provocou também em mim uma
reacção em defesa de uma família – a minha - que poderia ser exemplo de muitas
famílias portuguesas em que o amor e a compreensão existem deveras, e que não
se revêem nos parâmetros de animosidade sórdida sobre o homem machista e sobre
a mulher submissa ou castrada ou mãe dominadora, espécie de Górgona, que
sobressaem do livro. Daí o motivo da minha publicação em blogue, sem qualquer
espírito de emulação, é certo, que não o permitiria a simplicidade alegre do
seu escrito. Mas o tempo escoando-se, achei que a figura do meu pai e as suas
cartas em verso poderiam servir de estímulo formativo ao espírito de família
que, afinal, nos vem do fundo dos tempos, e que desejo que não se desfaça
nunca, mau grado a estranheza destes novos tempos, de muita tecnologia dominadora
dos espíritos e ofuscadora do espírito legado pelos escritores passados….
Berta Henriques Brás
MELODIAS DO PASSADO
Dedicatória:
Para ti, Mãe, que, agora centenária, manténs a mesma força de alma que sempre te conheci.
Doze anos passaram desde que, por ter ouvido a alguém um elogio sobre meu pai, respondi com estas memórias de um passado jovem, secreta e antiga ânsia de mostrar a um mundo perturbado pela violência e o desvio, a imagem de um homem justo e lutador, anónimo herói de tantas provas de uma elegância moral incompatível com o universo que de repente se erguia à sua volta, em novos mitos, pedradas num charco de águas paradas, segundo o consenso dos seus adeptos, e que, ao afundarem-se as pedras, fariam refluir à superfície tanto da vasa de que, afinal, todos fôramos responsáveis, como geração sem princípios morais norteadores.
Doze anos passaram em que um país,
dilatado em território, fora reduzido ao pequeno espaço onde, como tantos
outros, me vim acolher, espectadora vibrante da evolução política e social
desse país amado dentro dos velhos conceitos patrióticos em que fora educada,
sentindo fundo a sua degradação, vivendo alegre os aparentes momentos de
recuperação, empunhando na sombra a adaga irónica contra os seus desmandos,
sentindo a futilidade de uma determinada perspectivação política, sedenta de
bem-estar, mas criticando rancorosa o bem-estar alheio e daí partindo, tantas
vezes, para uma posição ideológica aparentemente irmanada com os deserdados da
fortuna, incoerente quanto às motivações reais, ambiciosas de ascensão material
ou de um prestígio intelectual em moda, mais do que de efectiva solidariedade,
depressa olvidada assim que atingidos os objectivos de cada um.
Entretanto, corpo gasto pela doença, meu
pai soçobrou um dia, apesar da súplica fervorosa de um milagre que o manteria
para nós, virgens ainda de um contacto tão próximo com a presença física da
morte.
Vão longe os tempos da infância e
mocidade que este livro pretendeu descrever com optimismo e graça, doze anos
atrás, num tempo já então de vivência amarga, mas tonificada ainda pela ternura
e a esperança.
Doze anos depois, já morto meu pai, os
textos em Posfácio sobre a sua figura, extraídos de livros da minha
participação empenhada nos acontecimentos que fomos vivendo, definem melhor, em
homenagem de saudade, um homem – António
Henriques - cuja força moral seria denunciada até ao final da sua carreira
na Terra.
I PARTE
Sucedeu na Missão Suíça de Lourenço Marques o meu primeiro contacto com o mundo da luz solar. Não houve trovoada nem vento, nem oportuno relâmpago a assinalar o dia. Vivi discretamente desde então.
O meu pai era guarda-fiscal, apesar de
anterior oferta para um melhor lugar na Shell, feita por um inglês que lhe
apreciou o carácter. Para o meu pai o Estado representava a segurança,
mesquinha embora, e por isso, após funda reflexão, contrariada pela acumulação
de razões da minha ponderada mãe, recusou definitivamente a Shell, o que
originou uma sobrecarga de argumentos
guardados em reserva pela minha mãe para os momentos
críticos da argumentação.
Vivemos,
a minha irmã e eu, uma primeira infância feliz. Eu era um tanto inclinada a
ferrar o dente nervoso na mão que me contrariava, além de revelar idêntica
inclinação para escangalhar brinquedos, no propósito consciente de analisar o
seu interior. Tendências científicas que perdi depois. A minha irmã, pouco mais
velha mas muito mais sensata, conservou sempre por mim aquela ternura e
autoridade protectoras a cuja sombra para sempre me acolhi.
Um
dia, meu pai teve direito à “graciosa” – excelente regalia, relativamente fácil
de se usufruir então e que nós aproveitámos, com grandes argumentos, desta vez
do meu pai, abonatórios da idoneidade do Estado.
Na
opinião do médico, a minha mãe necessitava de uma mais longa permanência nos
puros ares da pátria e o meu pai regressou só, a Lourenço Marques.
Instalámo-nos
em Pinheiro de Lafões, uma aldeia a uns quilómetros do Carregal – terra da
minha mãe – mas com a vantagem de um nível cultural muito superior, pois tinha
loja – de cima e de baixo - escola, comboio e estrada, não esquecendo a igreja
com o seu adro para as procissões.
Por
seis anos se prolongaram os meses inicialmente previstos para a nossa estada. A
guerra, entretanto, eclodira, e o meu pai preferiu-nos a salvo, na paz dos
campos.
Foi
então que começámos a usufruir das regalias resultantes do nível cultural da
nossa aldeia:
Entrámos
em idade escolar e pudemos frequentar a escola.
Nas
lojas - de cima e de baixo - a minha mãe comprava o açúcar e o café que nos habituou
a tomar pela manhã – o que lhe acarretou problemas graves aquando do
racionamento de produtos imposto pela guerra. Felizmente sempre se deu bem com
os vizinhos, especialmente a srª Palmira, e trocava com ela as senhas da massa
pelas do açúcar, pois não havia processo de nos habituarmos à sopa de cebola
pela manhã, nem ao leite adoçado a rebuçados.
A
estrada, que passava à nossa porta, ampliava-nos extraordinariamente a visão do
mundo: para a esquerda, conduzia a Oliveira de Frades, onde existia o médico, a
feira e a câmara municipal; para a direita conduzia ao Carregal, onde existia a
“Madrinha”, a minha avó materna, a quem uns pruridos de eterna juventude
fizeram odiar o doce nome de avó até aos oitenta e quatro anos da sua vida
terrena.
Também
o combóio, além de apitar na curva para avisar os distraídos, era de
reconhecida utilidade: trazia e levava notícias e passageiros de vez em quando.
A mim levou-me uma vez a Oliveira de Frades com uma perna partida nos raios de
uma bicicleta onde um primo camarada me encavalitara. Também de lá me trouxe,
já com gesso e uma mãe amofinada. Um dia, causou igualmente um acidente
desagradável na nossa pacata aldeia, ao trucidar o corpo de uma mulher
semi-louca que para ele se precipitara, cansada de viver sob os maus tratos do
seu homem. A esse primeiro ajuntamento de pessoas em torno da morta e que tanto
impressionou a minha sensibilidade infantil, outros se iriam suceder com
frequência mais tarde, em torno de carros sinistrados, por isso deixei de
estranhar ajuntamentos.
Havia
perto de nossa casa um pinhal onde nós íamos apanhar pinhas e caruma para o
lume. À beira da estrada florescia uma giesteira que dava excelentes vassouras
para a cozinha. Mas a sala e os quartos eram varridos com vassoura de superior
qualidade, adquirida na loja de cima. Uma fonte fresquíssima fornecia-nos a
água nuns cantarinhos de barro comprados na feira.
Um
dia, um ciclone limpou as telhas do telhado e tivemos a cozinha inundada com a
chuva que entrou pelos buracos. Lembro-me da minha mãe a espalhar vasilhas no
chão, para obstar ao seu alagamento. Mais tarde, na velha biblioteca de
Universidade de Coimbra, pude rever a situação, pois nos dias de invernia a
água caía desconfortavelmente sobre algumas carteiras, com a agravante da falta
de vasilhas a apará-la. Todavia, tudo suportaria com o estoicismo próprio de
uma alma escudada na experiência primeira.
Tivemos
galinhas, um porco e uma cabra, e a minha avó paterna, que passava longas
temporadas connosco, quis também comprar na feira de Oliveira uma vaca para
levar para a sua aldeia, Destriz, sede de freguesia e próxima do Carregal, e
onde cultivava umas terras. Mal vi a vaca, o meu instinto condutor acordou.
Supliquei que ma deixassem guiar, presa pela corda, a Destriz. A minha mãe não
se comoveu, mas a minha avó, inspirada certamente em secretos anseios de me
fazer lavradeira, cedeu-me a corda. Não percorremos muitos metros. A vaca deve
ter sentido a fragilidade do pulso que a sustinha, além das saudades do filho,
de quem a haviam separado na feira. Começou a mugir e a puxar a corda
furiosamente. Eu resisti, mas ia sendo arrastada, e ouvia atrás de mim os
gritos da minha avó para a largar. Acabei por obedecer, humilhada e compungida.
Felizmente apanharam mais tarde a vaca e desistimos – a minha avó e eu – do
cargo de vaqueira, nitidamente superior às minhas forças.
Também
me lembro de um forte nevão que nos isolou largas semanas de inverno,
impedindo-nos a comunicação com o exterior. Para irmos à loja e à horta, onde a
minha mãe cultivava couves e feijão verde, abrimos fundos carreiros na
espessura da neve.
No
verão, colhíamos ramos carregados de uma cerejeira da nossa horta. Tínhamos
ainda uvas e abrunhos, além de outras frutas – verdes, sobretudo – que eu
topava nas minhas explorações pelas generosas árvores da aldeia. Anos depois,
revelava igual propensão para as verduras, atirando pedras às mangas das fartas
mangueiras do velho liceu Salazar de Lourenço Marques, do parque Silva Pereira
e outros recintos privados. Por causa dessas tendências apedrejantes, o sr.
Azevedo, contínuo do liceu, mais ácido que as próprias mangas, quis um dia
levar-me ao reitor, mas umas lágrimas oportunas e as provas de um honesto
arrependimento, conseguiram demovê-lo.
Outras
recordações agradáveis, além dos dias de exame em que íamos de vestido novo,
ligam-se ao tempo que a Celeste passou na nossa casa. Como no Carregal não
havia escola, os meus pais conseguiram convencer os meus tios da importância da
instrução no desenvolvimento harmónico do indivíduo e ela veio para nossa casa
para frequentar a escola, até que foi construída uma em Reigoso, graças ao
empenhamento do Estado Novo na divulgação das nossas escolas primárias. Como
Reigoso ficava perto do Carregal, depressa a Celeste nos deixou, com tanta saudade
nossa. Nessa altura, nem a minha irmã nem eu andávamos ainda na escola, mas
tenho bem presente, pelo respeito e inveja que sentia por não ser dos grandes,
a impressionante fila de uma dezena de alunos colegas da Celeste na eira da
escola que servia de recreio, de braço estendido em respeitosa saudação à
bandeira hasteada na sacada da escola, cantando o hino nacional. Pude
desforrar-me mais tarde, pois também eu estenderia o meu braço à bandeira e
cantaria o hino nacional e o da Mocidade Portuguesa, em marchas desportivas ao
sol lourençomarquino, no pavilhão do Sporting, anterior ao do Desportivo, e
entre cujos jogos eu própria participei numa inglória corrida de sacos. Mas
quando os ministros se deslocavam às colónias – e davam-se então frequentes
deslocações dos ministros às colónias - também íamos no fato branco de
ginástica e com muitas bandeirinhas acolhê-los ao aeroporto com muita simpatia
e patriotismo, não só para firmarmos a nossa instrução política mas para eles
saberem que estava tudo bem connosco. Daí que na questão das cerimónias com
bandeiras pude posteriormente congratular-me em satisfatórias participações que
desvaneceram os meus traumas iniciais de exclusão.
Dormíamos, as três primas, na cama
grande, com a Celeste no meio, e todas as noites eu adormecia embalada com a
sua voz sonolenta contando a história da Branca Flor e dos artifícios de que
ela se serviu para enganar a mãe feiticeira. Aquele cuspo respondendo à chamada
vigilante e desconfiada da mãe – “Minha mãe, durma e descanse” – até secar, no
travesseiro, causava-me uma sensação de encantamento e a seguir de receio,
quando a velha, no seu cavalo mais rápido que o pensamento, procurou os dois
namorados sem contudo lograr apanhá-los, pois as artes da filha superavam
grandemente as da mãe, progresso esse, sem dúvida, resultante de uma maior
instrução.
Eu
adorava ouvir histórias, e a uma irmã da minha mãe pedia, sempre que nos
visitava: “Conta uma história, tia Lisete”. Imediatamente respondia: “Queres
que te conte?” “Sim”. “Se queres que te conte, eu te contarei, se não queres
que te conte, não te contarei. Queres que te conte?” “Quero”, retorquia eu,
esperançada e confiante ainda. “Se queres que te conte, eu te contarei...”
Raramente o seu sentido de humor ou a minha persistência ultrapassavam o
círculo vicioso da sua lengalenga.
Entretanto,
aprendemos a ler, e de longe o meu pai foi acompanhando a nossa instrução
primária com livros maravilhosos que nos chegavam de barco: “A Cigarra e as
Formigas”, “A Arca de Noé”, “O Lobo Feroz e o Capuchinho Vermelho”, inspirados
em filmes de Walt Disney, “Quatro Historiazinhas”, além de recortes de contos,
redacções, poesias, desenhos, que recortava de jornais infantis
lourençomarquinos. Lembro-me bem do dia em que chegou o volume “Quatro
Historiazinhas”. Sentada na cozinha lia, lavada em lágrimas, a história da
Cristininha e o seu cordeiro desobediente e castigado por isso, enquanto na
sala a minha mãe e a minha irmã se comoviam com as notícias do meu pai
distante.
Como os livros não abundavam, lia-os e relia-os
constantemente, numa ânsia de evasão para o mundo encantado da fantasia que me
não favoreceu, de resto, o jeito inventivo criador de enredos.
Raramente a minha mãe tinha tempo de
frequentar a missa dominical, na airosa igreja da nossa aldeia, mas o zelo
apostólico da nossa avó de Destriz resgatava as nossas falhas em missas
diárias. Estas propensões religiosas da nossa avó por vezes originavam despesas
de vulto. Foi o caso da oferta do meu peso em cera à Nossa Senhora para esta
impedir, com um argumento de peso, a continuação das dores de ouvidos a que eu
era muito atreita. Devo admitir a eficácia do remédio, pois as dores passaram.
Mas o que para sempre me tornou grata à minha avó foi a possibilidade que tive
mais tarde de me sentir numa posição equiparável à de Sua Alteza, o Príncipe
Aga Khan pai, a quem a colónia indiana de Lourenço Marques ofereceu o seu peso
em ouro. Embora reconheça a diferença da matéria e do peso, não me senti
desmerecida por isso, pois sempre nos meus contactos mundanos vi atribuir à
cera um extremo valor, jamais sofrendo de quebra como sucede com o nobre metal.
Foi assim que a minha irmã chegou à
idade da comunhão solene. Eu aprendi a doutrina com ela – felizmente não tenho
essa lacuna na minha cultura geral – mas invejei-lhe sobretudo o vestido branco
e o ar compenetrado por ela adoptado na circunstância mística. Mas a doutrina
da relatividade que o Einstein tanto defendeu mostrou-me, anos depois, que para
ela não constituíra senão mísera vivência inesquecível dos seus oito anos o
vestido branco que a metamorfoseara aos meus olhos deslumbrados, e que não
passava de um vestido de aluguer que a forçara a calcorrear, com minha mãe,
longas estradas até Campia e Souto, onde finalmente o obtivera.
Mais tarde, no meu segundo ano do liceu,
também eu faria a minha comunhão colectiva e definitiva. Pus-me a inventar
pecados no confessionário, num tom de voz altissonante devido ao nervoso, o que
fez recuar discretamente as minhas colegas da bicha atrás de mim.
Obedientemente rezei as avemarias da penitência, mas decidi, com as orelhas a
arder, que seriam as últimas por imposição alheia.
Um dos festejos agradáveis da nossa
aldeia era o Domingo de Páscoa. A minha mãe desemalava umas colchas brilhantes
de cetim para cobrir as duas malas da sala, enfeitávamos o portal e a rua com
alecrim, rosmaninho e giesta em flor, e na mesa havia pão-de-ló, amêndoas de
várias cores, vinho do porto, ovos e uma moeda de dez escudos espetada numa
laranja e recolhida piedosamente pelo sacristão, juntamente com os ovos.
Beijávamos o crucifixo com recolhimento, enquanto a água benta descia sobre nós
e eu deitava um olho ansioso sobre o prato das amêndoas, a diminuírem de
espessura, tal como o vinho o Porto tomado devotamente pelo senhor abade, para
não fazer desfeita. Saíamos em seguida, nós os miúdos, vaidosos nas roupas
novas, atrás do padre, ajudando-o no resto das visitas, recompensados na nossa
diligência pelas amêndoas que ele nos distribuía. Entrámos numa das vezes em
casa de uma mulher muito pobre, apenas com a laranja na mesa. Nessa altura, a
minha escassa cultura bíblica não me sugeriu a analogia com a pobre mulher do
óbolo que tanto satisfez a Cristo, e deixei-me impressionar com a citrina, mas
o sacristão conhecia o apólogo, com certeza, e também se satisfez, pois
recolheu-a com o mesmo ar piedoso.
Um acontecimento inesperado trouxe certa
animação à tranquilidade da nossa casa. Fôramos com nossa mãe ao Carregal e aí
uma irmãzita da Celeste – a Amarilis – com uns dez meses apenas, encontrava-se
gravemente doente, com uma infecção resultante do abuso de sardinha salgada e
caldo de feijões com carne de porco, dados à criança a fim de a enrijar. Foi
providencial a ida da nossa mãe ao Carregal, pois pôde conduzi-la
imediatamente, numa canastra à cabeça da srª Joaquina, a Oliveira de Frades,
onde a medicou o Dr. Morgado – o mesmo que me pusera o gesso e dera uma
injecção antitetânica, contra a qual eu reagira a plenos pulmões, por precoce
pavor de injecções. Dia e noite, durante vários dias, a minha mãe passeou pela
casa uma bebé soluçante, mas por fim liberta do perigo, o que para sempre
confirmou a confiança da minha mãe na competência clínica do Dr. Morgado, numa
altura em que nem penicilina nem outros antibióticos reforçavam ainda as
possibilidades de salvamento das vidas humanas.
A minha mãe era muito considerada em
Pinheiro, pois as suas mãos generosas sempre se estendiam para quem a
procurasse em hora aflita. Vinha-lhe o jeito da mãe – a Madrinha do Carregal –
que, aspirando a uma santa perfeição, concedia, às escondidas da família
recalcitrante, nacos de boroa e talhadas de toucinho da sua salgadeira às
sardinheiras que, de terras distantes, lá iam vender-lhe o seu peixe e
explorar-lhe o sentimento e a ingénua vaidade, gabando-lhe as virtudes,
conhecedoras que eram da fábula do La Fontaine e outros.
Ora, na ladeira de um monte, vivia em
Pinheiro, numa cabana de madeira, uma mulher com muitos filhos. Miserável e
pedinte, a justiceira opinião pública mantinha-a à margem, por ter filhos
fedorentos de diversas paternidades. Um dia, a sua cabana ardeu e um sentimento
de solidariedade levou o povo – apesar do desprezo – a quotizar-se para a
ajudar, imagem posteriormente avivada no meu espírito, em frequentes situações
de catástrofe – naturais ou intencionais – a merecerem bonitos actos de
abnegação e zelo benfeitor à escala mundial. Mas, naquela altura, virgem ainda
de experiências sofridas, a quantidade de objectos dados pela minha mãe à pobre
mulher, desde mantas e alimentos a louças e vestuário, provaram-me a relativa
abastança da nossa casa, e isso gerou em mim um forte sentimento de
estabilidade e equilíbrio.
E no entanto, nem sempre a minha mãe
demonstrava tanta generosidade. Numa escura noite, bateu-nos à porta um seu
primo, para lhe darmos guarida, por distar bastante dali a sua aldeia. Ao ouvir
barulho de altercação no portão do quintal, aproximei-me para averiguar, pois
raramente a minha mãe deixava extravasar tanta ira, moçoila de longa data
responsável, como a mais velha das filhas, que de pequenita trabalhara nas
terras e tratara os irmãos mais novos. Fiquei envergonhada, porque recusava
tecto ao primo, incitando-o a ir hospedar-se na loja de baixo, em Pinheiro, ou
então a prosseguir viagem para Paredes, a sua terra. Só mais tarde pude
penetrar nos seus argumentos, expendidos com violência inusitada, mas que,
afinal, a tornavam certamente mais respeitada ao próprio primo, avaro e
oportunista, que seguiu viagem.
Entretanto, a responsabilidade do meu
pendor para a argumentação violenta cabe inteira a esse curto episódio da
infância.
Além de pôr gesso e curar maleitas, o
Dr. Morgado também receitava banhos de mar. Um dia aconselhou umas férias à
beira-mar e partimos para Espinho, para um quarto alugado. Por azar, no dia da
nossa chegada morrera nessa casa um homem, e todo o macabro da situação, aliado
aos mosquitos e à alimentação diferente dos ares e alimentos saudáveis da nossa
aldeia impediram uma influência benéfica sobre o nosso organismo, pouco
habituado aos costumes citadinos. Também o mar se mostrava frio e agressivo, e
mau grado os esforços de um banheiro para nos mergulhar nas ondas, a nossa
agilidade e os nossos berros superaram de longe os seus esforços.
Regressámos mais cedo a Pinheiro, onde
não havia mosquitos e onde só o cheiro dos campos inebriava a alma e os frutos
das árvores ou as plantas das hortas consolavam o corpo, numa sensação pacífica
de fartura e bom sabor.
Tínhamos como vizinha principal a srª
Palmira, uma pessoa extremamente dedicada, que tratou uma pneumonia à minha mãe
com ventosas e uma vigilância constante, apesar do seu árduo trabalho nos
campos e na sua casa. E a imagem dos copitos com algodão a arder sobre as
costas da minha mãe, quando sorrateiramente penetrava no quarto onde ela
penava, ficou-me gravada na retina assustada com as marcas vermelhas e o
estalido dos copos a despegar-se com o puxão rápido da srª Palmira, após o
vácuo feito pela extracção do ar sob o efeito do algodão a arder. Também ela me
ensinou muitos termos menos dignos, pois possuía a língua mais solta da terra,
mas pude esquecer tudo mais tarde, guardando, em todo o caso, alguns de reserva
para os momentos complicados. Foi a maior amiga da minha mãe, juntamente com a
srª Joaquina, mãe do sr. Camilo, nosso futuro primo, pois viria a casar com a
Celeste. Sempre presente e prestável nas ocasiões precisas, tinha, além disso,
três filhos que brincavam connosco, tal como outros garotos da escola.
Na escola fazíamos rodas e dançávamos “Que lindo botão de rosa”, “Eu passei por uma
terra estranha”, “Aquela menina / Que
está no meio / Está na idade de se casar”, e outras cantigas. Mas no
quintal da nossa casa brincávamos às casinhas, cemitérios e às escolas. Das
folhas de castanheiro fabricávamos chinelos cosidos com agulhas de pinheiros e
sentíamo-nos muito felizes com os nossos modelos de calçado que, contudo,
duravam pouco pois os pontos rebentavam. Os cacos serviam de louça, os bugalhos
de panelinhas, as pedras e tijolos de mesas e bancos, e nos regos apanhávamos
flores para enfeitar a casa e erva para cozinhar para as nossas bonecas de
trapos, que vestíamos garridamente com panos sobrados de roupas feitas pela
menina Conceição, costureira na Lomba da Bouça, que, quando casou, passou a
chamar-se senhora Conceição, mudança de estatuto que me causou muita estranheza
então, como primeiro contacto com os escalonamentos sociais correspondentes às
diferentes etapas da vida. Mas surpresa ainda maior me causaria o caso da
menina Francelina, irmã do Américo, nosso companheiro de escola, que, como
casou rica, passou ao estatuto de dona - Dona Francelina, claro indício das
nossas linhagens medievais, com antecedentes romanos, viria a saber mais tarde.
Mais surpreendente, contudo, foi o exemplo da menina Amarilis, rica por
natureza, por ser filha do sr. Celestino, dono da loja de cima, a qual, quando
casou, também abastadamente, duplicou os distintivos, passando a chamar-se
senhora dona Amarilis, duplicado de que eu também viria a usufruir mais tarde,
salvo quando são desconhecidos os meus méritos.
Mas, voltando às diversões, também as
nossas construções se realizavam nos cabeços dos montes, para onde íamos com a
minha mãe guardar a cabrinha branca, parente da Blanquette do Sr. Séguin, mas
que nos dava leite pela manhã e não tinha, como aquela, veleidades de
independência, pois nos vinha comer à mão com o seu ar airoso e meigo.
Por vezes, os meus prazeres
exploratórios redundavam em incompreensões maternas de consequências dolorosas
para mim. Foi o caso de uns coelhos como causadores do drama. Eu brincava junto
da minha mãe que lavava roupa numa represa perto da qual havia um poço.
Convidada pela Maria, filha da srª Palmira, a ir ver a ninhada recente dos seus
coelhos, desapareci sem a avisar. Quando reapareci, com o ar iluminado dos
descobridores, encontrei a minha mãe quase desfalecida, a imaginar-me no fundo
do poço, mas logo reagindo num escrupuloso rol de tabefes e puxões de orelhas
só justificáveis pela descarga de nervos resultantes do terror por que passara.
Outra vez, ao regressar da escola,
encontrei o tio Manuel, pai da Celeste, a rachar lenha no quintal com a
machada. Mal ele se retirou para dentro de casa, eu imediatamente lhe ocupei o
posto, sendo, no entanto, muito mal sucedida, ao receber, de imediato, um
sangrento e traiçoeiro golpe. Supliquei sigilo à minha irmã e fui-me pôr,
encolhida e melancólica, a um canto da varanda. Não me livrei da tareia, apesar
da minha humildade assustada, e ganhei para sempre na mão esquerda a marca dos
meus ensaios de lenhadora e na alma a estranheza pela deslealdade da minha
delatora conquanto ponderada irmã.
Desde os primeiros passos na nossa
escola, de uma sala única para as quatro classes, começámos a escrever para o
nosso pai, a mandar-lhe desenhos de flores, carros, cafeteiras, bolas. Para
acompanhar a minha irmã, que iniciou aos seis anos as suas actividades
culturais, iniciei eu precocemente aos cinco as minhas, e datam dessa altura os
primeiros desenhos e as primeiras cartas, ajudadas a formular pela nossa mãe ou
pela nossa professora. Por vezes o nosso pai respondia-nos em verso, e essas
maravilhosas cartas, cheias de ternura e encanto, acompanharam-me sempre, como
branda melodia, em todos os passos da minha vida posterior.
É nítido o contraste entre a meiguice
mais séria com que o meu pai nelas se dirige à minha irmã, forçada a assumir as
responsabilidades da sua escala etária superior, e o tratamento mais infantil
que a minha escala etária inferior lhe merecia, sem que isso motivasse nunca em
mim, contudo, complexos de inferioridade.
Ressano
Garcia, 7 de Dezembro de 1941
Minha querida Fernanda:
Como passas, filha minha?
A Mamã e a Bertinha?
E a Avozinha como anda?
Recebi a tua carta
E tão contente fiquei,
Tantos beijinhos lhe dei
Que nem tos posso contar.
Chegou-me pelo “Angola”
E, em paga destas notícias,
Vou-te mandar mil carícias,
Mil beijos te vou mandar.
Teu Papá está de saúde
Cada vez mais teu amigo;
Pois se até sonha contigo...
Queres ouvir um lindo sonho?
Sonhei... ou pensei que via
Num jardim entre flores,
Lindas, de todas as cores,
Teu rosto meigo e risonho.
E que brincava contigo
E que ao peito te apertava
Como no tempo antigo,
E contigo assim falava:
- Gostas muito da Mamã?
Gostas de a ver contente?
- Gosto, sim, pois, não sabias?
- Sei que logo de manhã
Vais alegre e sorridente
Beijá-la, dar-lhe os bons dias.
- E depois? – Vou preparar-me
P’ra chegar cedo à escola
Com as lições bem sabidas.
Já sei vestir-me e lavar-me
E arrumar o meu quarto
Como as meninas crescidas.
- Gostas muito de estudar?
- Muito, pois quero aprender
A ler, escrever, contar...
Quero ser uma Mulher!
- E quando voltas da escola
Que fazes? - Os meus deveres.
Não quero meus afazeres
Deixar nunca p’r’amanhã
Quando posso hoje fazê-los.
Depois é que vou brincar.
Também gosto de ajudar
A Avozinha e a Mamã.
- Os teus livros e cadernos
Trata-los bem, não é assim?
- Penso que, quanto a mim,
Não há muito que dizer.
Sempre limpos, sem borrões...
Só às vezes, quando escrevo,
Carrego mais do que devo
Na pena... mas é sem querer.
- Muito bem, gostei de ouvir-te;
Estou contente contigo
E a Mamã pensa comigo;
Mas sempre te digo mais:
O trabalho, minha filha,
Traz consigo a recompensa.
Sê boa, trabalha e pensa
Dar alegria a teus pais.
Aqui tens meu lindo sonho
Que nunca, nunca tem fim.
Se é lindo sonhar assim
Mais lindo assim é viver.
Ele será verdadeiro
Conforme a tua vontade.
Mil beijos, muita saudade
De alguém que muito te quer.
¨
Ressano
Garcia, 7 de Dezembro de 1941
Minha
querida Bertinha
Desejo que estejas bem
A Mamã e a Avozinha
E a Nandita também.
Recebi a tua carta,
Por sinal muito bem escrita;
Eu não esperava tanto
Nem de ti nem da Nandita.
As flores chegaram murchas;
Foi do calor que fazia.
De café a cafeteira
Nem uma gota trazia.
Sabes, Miúda, o que foi?
Eu não sei, mas adivinho:
Como vinha muito cheia
Verteu-se pelo caminho.
Vá lá que não se partiu.
É interessante, não é?
Em chegando o tempo frio
Faço nela o meu café.
Mas depois para o tomar
A chávena onde está?
Não me mandaste nenhuma
E aqui também as não há.
Não há panelas nem pratos;
A terrina está quebrada,
Os copos feitos em cacos.
Não há nada, nada, nada.
Preciso duma assadeira
Para corar as galinhas.
Manda-me uma frigideira
Se queres que eu mande adivinhas.
Desta vez mando só uma
Que a carta já vai comprida.
Não me lembra mais nenhuma
Mais nenhuma desta vida.
O Senhor Adivinhão
Que era muito meu amigo
E mas dizia ao ouvido
Foi passear de avião.
Mas ele é bom. Prometeu
Que me havia de mandar
Muitas e muito bonitas
P’ra eu depois te mandar.
Ora enquanto ele não vem
O Senhor Adivinhão,
Adivinha tu também:
“Pequeninas, pequeninas,
São do mar, são muito finas
E branquinhas como a neve.
Ao almoço, ao jantar,
Tu no prato hás-de encontrar
O sabor que se lhes deve”.
Como vês é muito simples,
É simples e é só uma.
Se não adivinhas esta
Não adivinhas nenhuma.
E agora digo-te adeus,
Filha do meu coração,
Minha querida Miúda.
Com muitos beijinhos meus,
Uma recomendação:
Sê boa, trabalha, estuda.
¨
À
Maria Fernanda
(no
dia dos seus anos)
Já oito
anos, Miúda?!!!
Um anjo
quase mulher!
Voa o tempo,
tudo muda...
Fazes-me
velho a valer.
Mas que
importa? Ao sorriso
Da tua
ditosa idade
Formou Deus
o Paraíso
Da minha
felicidade
Que me
importa se até quando
Da vida é
triste a lembrança,
Vejo um
sorriso brincando
Nos teus
lábios de criança?
Saudando a
risonha aurora
Que teu
futuro anuncia,
Longe de ti,
muito embora,
Vou festejar
o teu dia.
De minh’alma
as flores mais belas
P’ra ti as
tenho guardado;
Cobrir quero
hoje com elas
O teu
retrato adorado.
Lindas
flores quem me dera
Mandar-tas
com estas linhas,
Na brisa da
primavera
No voo das
andorinhas.
Não posso.
Aos meus desejos
Que é dela,
a realidade?
P’ra ti só
tenho mil beijos,
Mil beijos,
muita saudade.
Todo o amor,
todo o carinho
Que te
dedico aqui vai;
Aqui tens,
todo inteirinho
O meu
coração de pai.
Guardando
afectos divinos,
Dentro dele
hás-de encontrar
Dois
corações pequeninos,
Muito
juntinhos, a par.
Lourenço Marques, 6 de Junho de 1942
Nem festas, nem parabéns,
Miúda! Pode lá ser?!
Sete anos!... Que pressa tens!
P’ra onde vais a correr?
Eu sei que novos destinos
Te esperam, mas – que saudade!
Os anjos são pequeninos
Os anjos não têm idade.
Sete anos – dizem os sábios.
Não creio, fico indeciso...
Julgo inda ver nos teus lábios
O teu primeiro sorriso,
Sorriso feito pelas fadas
Há poucos meses ainda
Das pétalas orvalhadas
Duma rosa muito linda.
Só a estrela da alvorada
Tão formosa em Portugal,
Poderia, filha amada,
Produzir sorriso igual.
E Deus e Nossa Senhora
Resolveram de improviso,
Da estrela fazer a aurora
E da rosa o teu sorriso.
A estrela ficou sentindo
A grande diferença e chora.
O teu sorriso é mais lindo
Que o lindo sorrir da aurora.
Sete anos! Será verdade?
Não creio em tais desatinos.
- Os anjos não têm idade,
Os anjos são pequeninos.
Lourenço
Marques, 10 de Agosto de 1942
Pequeninas
amiguinhas!
Filhas do
meu coração!
Respondo às
vossas cartinhas
Que acabo de
receber
Escritas por
vossa mão.
Saberei eu
responder?
- O que
sente o coração
Não o dizem
estas linhas.
Da nossa
alma o sentir
Não há
palavras no mundo
Que o possam
traduzir.
Daí o meu
embaraço.
Leva-me um
sonho bendito
Junto de
vós... Um abraço,
Um beijo, um
meigo sorriso,
E tudo seria
dito.
Que mais
seria preciso?
Minha
pena de escrever,
Não sabes o
dialecto
Do meu
profundo afecto!
Não
escrevas!... palavras minhas,
De sentido
incompleto,
De
incompleta expressão,
Não as
escrevas então!...
Ponto final
nestas linhas.
.............................................
Com os olhos
rasos de água
E o coração
enleado,
Filhas,
ausente, exilado,
Para
escrever aprendi
A rezar
todos os dias
Ao toque de
avé-Marias
Só a palavra
saudade.
Lourenço Marques, 18 de Fevereiro de 1944
Precisamente no final desse ano de 44,
embarcámos para Lourenço Marques, com a nossa avó que, aos setenta e cinco anos,
se atreveu a “arrostar c’o sacrílego
gigante” para ir viver com o filho.
O meu estado de espírito à hora do
embarque era de grande melancolia. Na véspera, no cais de embarque, em Lisboa,
o sr. Camilo, namorado confesso da nossa prima Celeste, conversava
harmoniosamente com a minha mãe que lhe gabava a nossa atracção pelo mar.
Decidi imediatamente demonstrar a minha, indo pôr-me à borda do cais, bastante
afastada, a fitar sonhadoramente, não as ondas do mar, é certo, o que eu então
desconhecia, mas as do rio Tejo que banham o cais de Alcântara. Fui agarrada
passado tempo freneticamente pela minha Mãe, que, em atroz ansiedade, me
imaginara mergulhada para sempre no frio reino do grego Poseidon, Neptuno
latino.
E após trinta e três dias de viagem,
chegámos ao nosso destino no vapor “Lourenço Marques”, ilustre parente das
caravelas que outrora, com tanta glória e dificuldade, “novos mundos ao mundo” foram mostrando.
II PARTE
PÉROLA DO ÍNDICO
Foi fácil e agradável a adaptação à nova
vida. Estávamos na quarta classe, com uns escassos dias de aulas do primeiro
período em Pinheiro, e chegámos em plenas férias de Dezembro que, em África, se
prolonga pelo tórrido mês de Janeiro.
Todo esse mês de férias o meu pai nos
acompanhou, tentando desbravar-nos o espírito que, embora bem comportado nos
exames da aldeia, fracassava inteiramente na cidade culta.
Mesmo assim, as primeiras notas na
caderneta escolar, na Escola Paiva Manso, abundavam em Medíocres, sobretudo as
minhas, e eu fiz parte da fila das alunas medíocres. A insistência do meu pai,
ao fim do dia quando voltava do serviço, o quadro preto por ele construído e
pintado para esse fim, as centenas de significados que tirávamos do dicionário
e as tranças que entretanto cortámos, forneceram-nos uma visão muito mais
apurada e leve dos fenómenos em estudo, e em breve aos Suficientes se seguiram
os Bons e Muito Bons, mudando nós honrosamente para afila das boas alunas.
Estas distinções por filas entre alunos
fracos e bons sempre me pareceram de grande efeito, ao porem os pontos nos ii,
isto é, as crianças nos lugares que lhes competem, preparando-as deste modo
para enfrentarem a vida adulta, onde também se fazem muitas distinções, com ou
sem filas.
Um excelente resultado coroou o nosso
exame da Quarta, mas, na admissão ao liceu, a minha curta idade, segundo o
ponto de vista da minha mãe, sempre confiante nas minhas possibilidades
intelectuais, contestadas pela observação da prova de aritmética, impediu o meu
acesso imediato.
A repetição, na Escola Especial do Sr.
Malveiro, foi de grande utilidade para os anos futuros de estudante liceal
aplicada, mas sabendo também aproveitar convenientemente os doces prazeres da
vida em correrias e jogos constantes: o paulito, o basebol, o caçador, o
ringue, o berlinde, quantos meios para adestrar a minha competência física!
Também aprendi a andar de bicicleta
durante as borlas, (como então se designavam os actuais furos), na bicicleta da
paciente e generosa Graça Lereno. Mal tocava para o intervalo, escapulia-me
porta fora, a correr desenfreada para o campo de jogos. Logo que tivemos acesso
à bola, revelei jeito imediato para o vólei, confundindo-o às vezes com o
futebol, em chutos certeiros, dignos de uma maior atenção dos dirigentes
desportivos, decididamente avessos às proezas femininas, num desporto de
perspectivas actualmente tão rendosas. Mas a minha mãe rematava sempre
perturbada, após o balanço ao vestuário: “Para ti, só roupa de ferro!”
Com o meu pai aprendemos a nadar, embora
sem grande estilo nem fôlego. Tornei-me, porém, exímia nos saltos da prancha de
três metros, jamais ultrapassados por falta de ambição trepadora, tão propícia
a vertigens.
No quarto ano costumávamos, no verão, ir
com outras colegas, antes das aulas, aos Velhos Colonos, de manhãzinha, treinar
crawl numas tábuas. Um dia reparei numa colega a olhar para a água e a rir-se.
Ao seguir-lhe o olhar, avistei a minha irmã aflita na sua tábua, em jeitos
descompassados de braços, a tentar alcançar o rebordo da piscina. Voei em seu
socorro, crente de que seria capaz de a puxar, mas de facto o que me valeu foi
estarmos na parte menos funda da piscina. Pude fazer vários impulsos com os pés
sobre o fundo e assim a impeli para a borda, pois jamais o conseguiria nadando.
O que não pude mais esquecer foi o horror do espectáculo da minha irmã a
debater-se em gestos descontrolados, imediatamente captado pela minha
sensibilidade fraterna e o riso de estranha incompreensão da minha colega a
apontá-lo. O episódio rematou os nossos treinos por meio das tábuas nos Velhos
Colonos, e favoreceu uma secreta aversão pelos banhos frios, vantajosamente
renegados a favor dos de sol, mais repousantes e bronzeadores.
Em casa também se abriam largas
possibilidades de diversão, não só no passeio em frente, como no terreno atrás,
por nós limpo do capim, para mais amplas correrias e jogos, com superior
participação e orientação técnica do sr. Camilo, que vivia em nossa casa e de
cuja vinda para Lourenço Marques, com uma “carta de chamada” - como o nosso
Governo previdente então exigia - fora o meu pai responsável. Sportinguista
ferrenho, sempre desportivamente acudiu pelos verdes, mesmo em casos de nítida
decadência em relação aos encarnados, decadência, em todo o caso, para ele nada
nítida e, pelo contrário, pelo excepcional, só sintomática da confirmação da
regra da excelência leonina.
As bolas amarelas largamente oferecidas
pelo meu tio Afonso, irmão da minha mãe e que vivia também em nossa casa,
desapareciam-me com uma limpeza cheia de mistério que jamais pude penetrar e
tanto me desolava. Creio que rolavam pela avenida 5 de Outubro abaixo, pois
eram das que deslizavam facilmente. Nunca compreendi, de resto, a preferência
do meu tio pelas bolas amarelas, de tamanho médio e pouco prático, pois as
minhas preferências centravam-se nas bolas de ténis, pequenas e felpudas,
excelentes para o basebol e o caçador, sempre jogado com as bolas das colegas,
para minha humilhação nunca esmorecida. Delicadamente, graças à nossa educação
extremosa, agradecia-lhe aquelas e jamais sugeria, ao meu distraído tio, a
hipótese das outras que não se perderiam tão facilmente, não só porque
forneciam atrito sobre o alcatrão da estrada, como porque teriam o seu cantinho
reservado na minha pasta da escola, para os recreios movimentados.
Aprendemos também a andar em cima de
andas, primitivamente esculpidas pelo meu pai dos galhos das árvores podadas no
verão, e mais tarde por ele construídas a preceito com madeira e pregos.
Frequentemente o meu pai se associava às
nossas distracções, construindo jogos, por exemplo o da malha, num largo
tabuleiro de madeira dividido em quadrados numerados, sobre os quais cairiam
malhas de borracha. Quem perfizesse o maior número de pontos sairia vencedor.
Fabricou ainda uma balança para a mercearia onde eu aviava, com superior
eficiência, a areia e as lascas das árvores, por açúcar e bacalhau. Ditosos
tempos esses, em que se permitiam tais irregularidades sem reclamação dos
fregueses! Agora também se permitem muitas, embora com reclamação, aliás
raramente atendida.
Pouco tempo mais durou a minha queda
para o negócio, ou mesmo o gosto pelas casinhas, escolas ou médicos. Com a
idade, as correrias e jogos sobrepuseram-se às brincadeiras de tipo sedentário.
A par dos folguedos, no entanto, bem
cedo se abriu para o meu espírito o gosto pela informação livresca, e tanto
mais apetecida quanto era proibida. O meu pai entendia que as leituras, tal
como os filmes, deviam ser controladas, e o acesso à sua estante não estava
aconselhado. Mas porque, por desconhecimento da minha mãe do conteúdo da
estante, ou por uma sua mais liberal compreensão das fraquezas humanas e também
porque sempre tive jeitos de lhe enfraquecer a resistência por meio de beijos e
graças irresistíveis, esta costumava ceder e, senhora da chave, a pretexto de
limpar a estante, eu penetrava nos seus segredos, quais mulheres do Barba-Azul
abrindo a porta do quarto proibido, sem idêntica consequência justiceira pois,
pouco a pouco fui ambientando o meu pai num sentido de adaptação ao meu próprio
critério selectivo, perfeitamente rigoroso também. Lembro-me de certos livros
que talvez jamais viesse a ler se os não tivesse encontrado na velha estante
paterna. Um deles foi o “D. Jaime”, do romântico Tomás Ribeiro, e o “Mário” de
Silva Gaio, “O Prato de Arroz Doce”, “Camilo Alcoforado” e “Miss Esfinge”, “A
Ceia dos Cardeais” e tantos outros.
Também o “D. Quixote” constituiu para
mim um deslumbramento várias vezes sentido em leituras parciais, assim como “El
Gran Tacaño” do Quevedo, que o meu pai tinha em francês com o título de “Don
Pablo de Ségovie” e me proporcionou os primeiros contactos com o género
picaresco espanhol. O seu conhecimento revelou-se mais tarde extremamente
vantajoso para a minha glória de estudante de literatura em Coimbra.
Muitos mais livros descobri nas prateleiras,
que me habituei a limpar com frequência, interrompendo a limpeza para me sentar
no chão, sobretudo para ler os que encontrava escondidos por trás dos outros, e
por isso averiguados com dobrada ânsia. Foi o caso dos tão impressionantes
“Martírio de Noiva” e “O Convento Desmascarado”. Júlio Dinis, Eça de Queirós,
Guerra Junqueiro, Fialho de Almeida, João de Deus, bem cedo me foram
familiares, a par dos livros da Esposa, da Educadora e quejandos que o meu pai
possuía em quantidade e me ensaiaram para um desempenho futuro não direi
brilhante, mas com a suficiente eficiência.
Nas minhas investigações, descobri
livros por onde o meu pai estudara em Macau, livros que ganhara em prémios,
entre os quais “Don Pablo de Ségovie”, livros por onde estudara o francês e a
Literatura Portuguesa, esta última no Mendes dos Remédios tantas vezes relido,
como primeiro a conduzir-me junto dos autores primitivos e dos clássicos, pois
aliava a teoria literária à complementar exemplificação de textos.
Enquanto estivera na tropa, em Macau, o
meu pai estudara e fizera o segundo ano do liceu – que nessa altura incluía
literatura e noções de latim e agora cada vez mais se limita a simples noções
apoiadas em muita banda desenhada para estimular os raciocínios das crianças.
Interrompeu o curso graças à discrepância de um superior – um sargento – para
quem os versos de Camões “Numa mão sempre a espada e noutra a pena” não faziam
sentido, deslumbrado apenas com o irresistível fulgor da espada, mesmo em tempo
de paz, mas sobretudo avesso a saídas nocturnas para frequência de aulas, de
possíveis competidores futuros nos quadros do exército ou até mesmo em algum
curso superior que meu pai gostaria e talvez pudesse ter seguido, conforme lhe
ouvi contar, não foram as contingências portuguesas dos autoritarismos
opressores específicos da nossa mentalidade de longa data tacanha e mesquinha.
Desistiu do curso, mas não interrompeu o seu jeito para a meditação e o
autodidactismo que sempre lhe conheci, a par dos ombros um pouco curvos de pessoa
modesta, incapaz de singrar na vida por meio de atropelos ou influências
alheias ao seu próprio mérito.
A par dos livros sérios havia os
emprestados, os contos de fadas e princesas da infância, os do amor feliz e
jovem da Max du Veuzit, Magali, etc, que encantavam a minha alma adolescente e
confiante no “ Prince Charmant”. Vibrava sobretudo com os livros das escritoras
espanholas Maria Luísa Linares e Concha Linares Becerra que aliavam à
imaginação e ternura humanas, um real sentido de humor. Igualmente encantadores
foram “A Maravilhosa Viagem de Nils Holgerson através da Suécia”, da Selma
Lagerlof, “Coração” de Edmundo de Amicis, “Topaze” de Marcel Pagnol,
aconselhados pelo professor de Português da minha irmã e que o meu pai se
apressou a comprar para nós. Creio que o “Topaze” constituiu a minha primeira
obra de leitura integral em francês, por altura do meu terceiro – actual sétimo
– ano, e continuo a relê-lo com idêntico agrado, sobretudo em momentos de fuga
às realidades chocantes.
Por alturas do meu sexto ano
intensificou-se o gosto pelas leituras humanísticas. O estudo do Grego
despertou-me o interesse pela literatura e filosofia gregas, tal como o estudo
das literaturas portuguesa e francesa me proporcionaram contactos felizes com
autores clássicos e modernos, por meio de obras obtidas na biblioteca do liceu,
superiormente orientada pelo professor Pires dos Santos, nosso professor de
Literatura Portuguesa. Deixáramos a Secção Feminina, e os nossos colegas
masculinos revelavam incontestavelmente maiores tendências intelectuais que
nós, as raparigas, talvez mais aplicadas no estudo – as que o eram – mas
arredadas por questão atávica, mais escassa de exigências relativamente à
condição feminina, dos interesses culturais que interessavam os nossos companheiros.
Foi talvez por espírito de emulação que timidamente enveredei pela senda do
conhecimento literário, sentindo, todavia, quanto tais estudos literários
requeriam toda uma interpelação e discussão ideológicas que lhes dilatassem o
alcance e desenvolvessem em mim o poder da argumentação oral. Quando hoje leio
as obras de Simone de Beauvoir, sinto o deleite que ela tão bem descreve da sua
marcha pela vida e do contínuo despertar de interesses obtido por mérito
próprio, sem dúvida, mas igualmente pelos estímulos que absorvia através do
convívio com os seus companheiros de percurso.
Entretanto, em nossa casa, as coisas
corriam no melhor dos mundos, porque era de amor o mundo da nossa casa.
Chegávamos tarde do liceu, já que da
paragem do machimbombo a casa havia um longo percurso ainda, mas o meu pai
esperava-nos sentado à mesa, já almoçado. Queria saber como decorrera a manhã
no liceu, os exercícios feitos e tudo o resto. Nunca nos censurava se as notas
não correspondiam às nossas ambições, e nunca ouvimos críticas aos professores.
E depois de expender as suas opiniões, caracterizadas pela moderação e a
lucidez, ia passar pelo sono vinte ou trinta minutos antes de voltar para o
serviço.
Também a minha mãe nos acompanhava, e
era sempre a última a servir-se e a escolher a pior fruta para ela, numa
renúncia voluntária a nosso favor que me chocava profundamente. É certo que
agora também eu faço idênticas renúncias a favor dos meus filhos. As minhas
incidem com particular insistência sobre os ovos estrelados que todos cá em
casa preferimos mal passados. Por azar vem sempre um bem passado que não
proporciona tão amplos eflúvios gustativos, mas escolho-o heroicamente,
sacrificando-me pela comunidade.
Cantávamos muito então, tanto a minha
irmã como eu, e sobretudo quando, aos domingos ou nas férias, ajudávamos a
nossa mãe nas lides caseiras. Mas não éramos só nós que cantávamos. Por vezes
fazíamos coros, alguns à noite quando, depois de flitar bem a casa toda para
eliminar os mosquitos, extremamente sádicos com a minha mãe, íamos, nas noites
de verão, rua fora, autêntico rancho folclórico, cantando a “Laurindinha”,
“Canário, lindo canário”, “Alecrim dourado”, etc. Formavam o rancho a Celeste e
o sr. Camilo, casados de fresco, o tio Afonso, os meus pais e nós as duas.
A minha mãe sempre teve uma bela voz,
que nos tempos de Pinheiro chegou a causar-nos sérias apreensões, pois às vezes
passavam por lá mulheres do Carregal que regressavam da romagem à Santa
Combinha e exigiam o seu acompanhamento a “botar descante” lá na curva da
estrada, sobranceira à igreja, na colina em frente. Ora a minha mãe não usava
lenço nem tamancos como elas, para lhe permitirmos tais veleidades artísticas,
e chorávamos agarradas à sua saia, enquanto ela cantava. Mais tarde, revendo as
nossas posições, contar-me-ia a minha irmã que, contrariamente aos meus
escrúpulos aristocráticos dos então cinco ou seis anos mimados, o motivo das
lágrimas dos seus seis ou sete anos austeros resultava de um sentimento
envergonhado e crítico que condenava o cantar da nossa mãe, estando o nosso pai
ausente.
Não sei se as pessoas que moravam para
os lados da Malanga ficavam bem impressionadas com o nosso coral, nos dias
cálidos do flit nocturno. Era um bonito coral, onde sobressaíam as vozes
suavemente finas da minha mãe, da Celeste e da minha irmã. A dos homens era
naturalmente grossa e a minha, embora bem modulada, manifestou sempre
tendências graves, humilhantes para os meus ideais de feminilidade.
Tivemos uma cadelita – a Bonita – que
veio para nossa casa com uns dias apenas de idade. Embora rafeira, ensinada
pelo meu pai e por nós, fazia proezas como os cães mais amestrados. Apanhar
bolas no ar, lançadas a grande altura, saltar barreiras, ir buscar paus
atirados para longe, beber ciumentamente o leite do gato – o Chirico – e
desprezar as suas sopas de leite com pão pela manhã, salvo quando lhe púnhamos
o pé à frente delas em competição, adorar a minha mãe, estar pendente dos seus
movimentos, mostrar-se, enfim, uma bela companheira de brinquedos – assim foi a
Bonita.
Um dia passou – e nós com ela – uma
terrível odisseia. Por causa das suas prolíficas ninhadas que a minha mãe, com
quanto custo, tinha de eliminar em parte, com o auxílio prestimoso do sr.
Camilo, a minha mãe resolveu desfazer-se dela. Soube da existência de um
indiano que morava muito para além do Jardim Zoológico e que estimava os cães,
e sem nada nos comunicar, enviou-lhe, pelo nosso criado, a nossa cadelita atada
por uma corda. Mas a Bonita tantos puxões deu na sua aflição, que a rebentou, e
o criado apareceu-nos em casa apenas com um pedaço de corda pela mão.
Quando soubemos do caso zangámo-nos a
valer com a nossa mãe, sem querermos ouvir quaisquer justificações abonatórias.
Durante três dias pairou em casa um infeliz ambiente de tensão e mal dormíamos,
a pensar na cadela. Uma manhã, pelas quatro horas, sentimos raspar à porta de
rede. Voámos para lá – era a Bonita, magra, cheia de capim de andar perdida,
mas doida de alegria, intercalando as suas lambedelas às donas e às sopas de
leite imediatamente preparadas.
Perdoámos à nossa mãe arrependida, mas
ainda hoje me pergunto como pôde a Bonita voar para a porta de entrada,
certamente que num salto olímpico, pela varanda alta que contornava a casa do
lado da rua.
Tudo prosseguiu como dantes, afora o
trauma que nos tornou ainda mais unidos, a cadelita ignorante da crueldade da
dona, nós vibrando na alegria de um tesouro reencontrado. Mal a Bonita
pressentia qualquer ida da dona à Baixa, já não parava tranquila. Mas as suas
inquietações eram docemente recompensadas com os rebuçados trazidos e
distribuídos por ela, por nós e pelo criado, o Armando, de quem conservo ainda
uma fotografia que ele quis mandar-me para Coimbra, antes de partir para Goa, a
cumprir o seu serviço militar.
Igualmente se a minha mãe adoecia, a
Bonita não descansava sem o seu acesso à cama, onde reprimia as expansões de
regozijo para a não expulsarem de lá.
Como cadela sem raça definida, ou porque
na nossa casa se compreendia a liberdade num sentido lato, a Bonita não usava
coleira. Um dia foi apanhada pela terrífica carroça dos cães, segundo fomos,
posteriormente informados, mas conseguiu desenvencilhar-se, já treinada pela
anterior experiência da corda.
Costumava, especialmente em presença da
minha mãe, lançar-se para os carros em arreganhos vaidosos bem sonoros, até que
o encontrão dum carro fatal a estendeu na rua. Ficou defeituosa, a coxear, e
nunca mais saltou nem correu atrás dos carros.
E num dia de luto morreu, num cantinho
da varanda interior, donde sempre assistia às nossas refeições. A cambalear,
dirigiu-se do quintal para o seu lugar favorito, acompanhada pelo soluçar das
suas companheiras de folguedos, pela primeira vez em contacto com o sofrimento
assente sobre uma perda irremediável.
É certo que já nos morrera a avozinha,
poucos meses depois de termos chegado a Lourenço Marques, mas a avó era pouco
comunicativa, ou a nossa idade ainda pouco sensível para termos sentido
profunda desolação.
Não se adaptara bem ao ambiente,
estranhara sobretudo a lentidão com que os africanos trabalhavam na construção
das casas ou no, já então muito habitual, calcetamento das ruas, ela que fora
enérgica e cheia de vida, mourejando, orgulhosamente só, nas suas terras, de
sol a sol.
Embora a estimasse, a minha mãe
costumava, mais tarde contar-nos a vida dura do meu pai em pequeno, entre um
professor cruel e exigente com os seus alunos – o professor Nogueira, das
Benfeitas - e uma mãe exigente no tratamento dos campos e dos gados, o que não
permitia grandes disponibilidades de tempo para os estudos, conquanto fosse
lembrado pelas velhas de Destriz, que conheci por alturas de Coimbra, como um
rapazinho sempre agarrado aos livros, enquanto conduzia o seu rebanho pelos
caminhos da aldeia. De tal maneira que o meu pai, após o distinto exame da
quarta classe em Viseu – e foram três os alunos da quarta classe do professor
Nogueira distintos nesse ano em Viseu – resolveu fugir para Lisboa, onde
trabalhou como marçano e dormiu num galinheiro. Informada da falta de
assistência à missa, a minha avó foi lá buscá-lo, mais impressionada com a
ausência de religiosidade do filho que com a de acomodação do filho trânsfuga.
Em Lourenço Marques, a nossa avó todas
as manhãs pelas cinco horas partia para a Catedral, a assistir à missa, e uma
manhã os meus pais foram acordados pelos vizinhos que lha trouxeram de fora de
portas, onde caíra com uma trombose parcial.
Ao acompanhá-la ao Hospital, ao lado da
maca, o meu pai viu a mãe a fitá-lo com as lágrimas escorrendo-lhe pela última
vez na face não inerte.
Na manhã seguinte, muito cedo ainda,
apareceu-nos em casa o senhor da funerária, muito bem-posto e em lágrimas,
comunicando-nos a morte da avozinha.
Fiquei bem impressionada com os
sentimentos assim manifestados tão de manhãzinha, e deixei de sentir pelos
senhores das funerárias o desprazer anterior, pois tão humanos se sabem
revelar, chorando de desolação enquanto preparam os enterros de acordo com os
preços.
Quando à tarde o meu pai partia para o
serviço – de manhã as lides domésticas não permitiam tais pausas – a minha mãe
acompanhava-o sempre à varanda e, se apanhava o machimbombo, logo ela comentava
a falta de jeito para o apanhar, deixando-se ficar para trás de todos,
calmamente ciente de que a sua vez chegaria. Não é sem ternura que recordo esta
faceta discreta do meu pai, referida pela minha mãe, suponho, com secreta
admiração e indulgência.
No quintal o meu pai construíra uma
capoeira das galinhas e outra dos coelhos, além dos inúmeros vasos de flores,
sobretudo sardinheiras, que todas as manhãs regava, nos vasos por ele pintados
de vermelho. Os sábados à tarde e os domingos de manhã eram passados a
carpinteirar ou a jardinar.
Tivemos um lindo galo a quem, mal se
levantava, o nosso pai dizia: “Ó galaró! Canta, galaró!” E o galaró, olhando de
lado e todo impante, soltava imediatamente o mais estridente cocorocó dos galos
da vizinhança. Já não existia então a Bonita, a qual não permitiria dispersão
de afectos ou atenções, e por esse mesmo motivo tratara sempre o Chirico com
altiva descortesia, correspondida, por parte deste, com indolente e superior
indiferença, de quem se contentava com o seu próprio quinhão de afectos,
suficientemente pródigo. Era filho da “Cegueta”, uma gata velha que andava
pelos telhados e no-lo depositou um dia no quintal, como prémio das sopas que
recebia na nossa casa.
Igualmente com as crianças o meu pai
sabia lidar, conversando cheio de graça, correndo atrás delas no seu andar
pesado, ou ensinando-lhes jogos, como o dominó, o ludo, o loto, a bisca...
Quando eu própria era mais nova, costumava brincar com ele, lançando-me nos
seus braços, mas a adolescência criou-me responsabilidades, temperando-me os
excessos com a necessária gravidade. Ensinou-nos as damas, mas foram sempre
desastrosos os nossos resultados com ele, pois ganhava tudo, tanto no perde-ganha
como no ganha-perde, pelo que desistimos, a minha irmã e eu, de nos
aperfeiçoar, num instintivo sentimento de orgulho humilhado.
Às vezes ia ao bazar, o que a minha mãe
raramente consentia, pois gastava num dia o que ela ou o criado gastavam numa
semana. Era também frequente deixar-se embalar cantando e tocando na sua viola,
que aprendera sozinho pelo método francês. Com que encanto o ouvíamos o “P’ r’ apanhar o trevo” ou a canção do
compositor Belo Marques “Na minha aldeia
/ Não há ódio mas estima...” ou
“Se
eu lá também vou
Já
não sou pequena
Sou
da mesma idade
Da
Rita Morena.
Ai,
que estrondo e música,
Arraial
tão lindo,
De
moços e moças
Conversando
e rindo.”
Outras vezes, éramos ainda pequenas,
contava histórias da aldeia, tentando imitar o jargão e o acento provincianos
da Beira Alta, e nós ríamos sempre, e a nossa mãe connosco, da velha história
repetida sempre com o mesmo humor.
Quando mais velhas, contudo, eram outras
as citações do meu pai. Miguel Torga e o seu “Diário” constituíam para ele a
obra-prima do pensamento, e fixava-lhe os versos que nos repetia:
“Senhor,
deito-me na cama
Coberto
de sofrimento,
E
a todo o meu comprimento
Sou
sete palmos de lama.
Sete
palmos de excremento
Da
terra-mãe que me chama...
De Camilo, repetia-nos o soneto “Amigos, cento e dez ou talvez mais / Eu já
contei...”, ou tantos versos enérgicos ou comovidos de Guerra Junqueiro, e
de Camilo Pessanha, que conhecera em Macau, recordava a extraordinária memória
de advogado que lhe permitia citar, só no fim das consultas, ao seu secretário,
os dados de cada consulente, e lembrava o extraordinário soneto “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de
linho...”, em voz vibrante e comovida.
Também quadravam à sua maneira de ser
profunda, os livros de Aquilino, cuja admiração eu não partilhava, por falta de
idêntica profundidade reflexiva, e por preferências, então vincadas, pelos
róseos romances.
Nos dias das festas de família, a sua
alegria um pouco estimulada conduzia-nos a um certo estado de melancolia, pois
se lembrava de nos elogiar, o que nos deprimia, dada a nossa modéstia nunca
esmorecida.
Por alturas do meu segundo ano, deu-se
um incidente importante na sua vida de funcionário. Um desentendimento com o
seu director levou-o a ter de responder em processo, que ganhou, porque
inegavelmente a razão lhe pertencia. Pôde, entretanto, adquirir mais amplos
conhecimentos humanos, através da debandada de alguns colegas previdentes,
postos do lado do partido superior contra ele. Lembro-me da sua indignação e
também do extenso interrogatório a que respondeu no Esquadrão, sem o auxílio de
nenhum advogado, porque a sua probidade advogou, melhor do que ninguém, com
grande espanto do seu cepticismo, a causa que defendia. Julgo, todavia, que as
respostas do meu pai - que chegámos a conhecer porque nos fez ditar-lhas, para
uma cópia pessoal, nas tardes de Sábado, em que (com quanta impaciência
delicadamente contida!) tivemos que suspender as brincadeiras por detrás da
nossa casa - apresentavam a lucidez e clareza que sempre lhe conheci e lhe
valeram a vitória no processo.
Como consequência, porém, da
incompatibilidade surgida, foi transferido para Quelimane, a fim de se
especializar no conceito de que os poderosos possuem sempre na mão a vara
condutora dos seus interesses e respeitabilidade.
O estágio serviu-lhe de grande proveito,
pois se preparou para um concurso de Fiel de Armazém, onde alcançou o primeiro
lugar, sem quaisquer empenhos e apenas com o fruto da sua inteligência e
trabalho. Lembro-me de o ver estudar, ora sentado à secretária, ora em
passeatas pela varanda, memorizando nomes e frases. O concurso, aberto quando
ainda em Quelimane, seria realizado depois do seu regresso a Lourenço Marques,
e os dias de tolerância que então obteve impediram-no, para sua felicidade dado
o asco que sentia por um passado desmotivador de encontros com espaços físicos
ou com colegas, de regressar ao anterior posto na secretaria da guarda-fiscal.
Entretanto, ainda em Quelimane,
concorreu a dois concursos de marcas de cigarros, e nos dois ganhou o primeiro
prémio – dois aparelhos de rádio, os primeiros que houve em nossa casa – além
de inúmeros outros prémios que lhe valeram objectos vários em marfim, pau-preto
ou bronze – estatuetas com figuras africanas, cinzeiros, elefantes...
Eram as seguintes as quadras aos
cigarros “Império”, sujeitas a mote:
À porta do céu, Tibério
Pede
a S. Pedro um lugar.
- Fuma
cigarros Império?
-
diz-lhe o Santo – pode entrar.
Resume-se
a vida assim
Para
quem tem gosto e critério:
Deixar
correr o marfim,
Fumar cigarros Império.
Que
dos cigarros Império
Nenhum
fumador se prive,
Porque
cigarros Império
Quem os não fuma não vive.
Do outro
concurso, anterior, a várias marcas, igualmente sujeitas a mote, apenas recordo
duas quadras. O meu pai todos os seus papéis destruiria mais tarde, e nunca
pude lembrar, dentre as dezenas de quadras, senão as que fixara:
Vês o argueiro inocente
Que a vida aos outros não tolhe
E não vês que toda a gente
Os cigarros
Flora escolhe.
Pode o dinheiro chegar,
Ser o pão suficiente,
Tudo falta se faltar
Macedónia a
toda a gente.
Esta última
quadra recebeu o prémio de “A melhor quadra” e não me espanta o jeito do meu
pai para propagandista de tabacos, porque de facto os apreciava com o
necessário exagero do consumidor inveterado.
Regressou no
meu quarto ano a Lourenço Marques e lembro bem a loucura da Bonita a lançar-se
contra ele em lambedelas ávidas.
E os dias
iam decorrendo na sua placidez, agora um pouco menos parcimoniosa, dado o
ingresso do meu pai no cargo de Fiel da Alfândega. Nunca na nossa casa houve
falhas no capítulo da alimentação, mas a nova profissão traduziu-se, sem
dúvida, num maior requinte em certos alimentos, como frutas sulafricanas, mais
semelhantes às da Metrópole, ou refrigerantes. A minha mãe cozinhava saborosos
guisados ou bifes, e sopas de que extraía sempre uma batata, feijões e um
bocado de carne de porco para o meu pai, que se regalava com o seu petisco,
antes da pratada de sopa e do segundo prato.
Quanto aos
bailes ou matinées a que a maior parte das raparigas assistiam, aos sábados,
não os frequentávamos, nem nos lamentávamos por isso, pois não lhes sentíamos a
falta. A nossa vida era assaz preenchida, e só a presença da nossa mãe à
varanda a dizer-nos adeus quando partíamos para o liceu, até desaparecermos na
esquina, valia, creio, todo o mundo de sensações dos ditos bailes, pois para
sempre a sua ressonância permaneceu no nosso espírito, como símbolo alado da
sua presença bendita. Quando a nossa prima Maria José, um pouco mais velha do
que nós, falava com entusiasmo na Rita Hayworth e no Tyrone Power, os astros
preferidos pelas raparigas naquela época, a nossa cultura cinemática
limitava-se aos filmes portugueses de Leitão de Barros, António Lopes Ribeiro, Arthur
Duarte, sóbrios em manifestações eróticas, e explorando gags humorísticos ou
qualidades artísticas que celebrizaram António Silva, Vasco Santana e tantos
outros. Hoje, sorrio dessa característica paterna um tanto castradora porque
limitada ao moralmente correcto, segundo os ditames da cartilha por que então se
regia a pequena burguesia preconceituosa. A minha irmã costuma lembrar, com
pasmo ainda, o facto de não termos visto o “Camões”
porque o meu pai, que o foi ver antes, o remeteu para o index dos filmes
proibidos para a nossa idade. Mas a minha travessia pelas dificuldades da vida
diz-me que também o custo desde sempre excessivo dos bilhetes de cinema pesou
nesses rigores proibitivos paternos.
Nos nossos
trajectos para a paragem do machimbombo, além da companhia do meigo burro de um
vendedor ambulante, começámos a ser interceptadas por um rapazola trabalhador,
o qual, tão acesas atenções manifestou por mim, que, ingratamente, lhe ganhei
medo, a ponto de nunca querer ir sozinha para o liceu quando tinha aulas à
tarde.
Era isto no
meu sexto ano, e um dia à tarde a minha irmã que, a meu pedido, me acompanhava
à paragem, ao ouvi-lo chamar docemente o meu nome - de dureza, todavia,
comprovada de longa data já nos longos pés da mãe de Carlos Magno, já na
envergadura dos canhões que tantas proezas cometeram na primeira guerra mundial
- voltou-se para trás e perguntou-lhe: “Tu não tens educação?”. Lembro-me de
ter ouvido um perplexo e interrogativo “Eu?” – o último. Nunca mais encontrámos
o nosso sedutor acompanhante, certamente que retirado para meditação, na qual chegara
a uma conclusão negativa sobre a questão. Mas o amor e o orgulho pela minha
serena irmã fixaram-se definitivamente no meu espírito, tanto mais que nunca em
mim se gerou essa possibilidade de me impor aos outros com idêntica placidez e
elegância.
Mais tarde,
em Coimbra, o Rui confirmaria os meus entusiasmos fraternos, gabando a minha
irmã como moça que desde os desafios de voley femininos no liceu o prendera,
com os seus calmos olhos azuis cheios de dignidade e distinção. Por isso,
certamente, ocupou, desde o seu segundo ano, o posto de chefe de turma, lugar
das minhas secretas e sempre goradas ambições.
Eu era mais
arrebatada, com transportes de alegrias ou tristezas ruidosas, embora sinceras,
mas cedo perdia esses estados emotivos, conquanto não perdesse da ideia a causa
deles. A minha irmã era mais discreta, mas os sentimentos nela perduravam mais
longamente, sobretudo a tristeza, adequada ao seu temperamento melancólico.
Era muito
feminina, cosendo, bordando e fazendo croché com perfeição um pouco lenta.
Conscienciosamente aprendemos ambas a coser com a D. Zulmira, e a fazer malha
com a D. Clotilde, tendo mais tarde ainda a minha irmã seguido um esmerado
curso de corte e costura, de que relembro os moldes em papel vegetal que
desenhava a régua e esquadro.
As minhas
costuras caracterizavam-se por uma certa irregularidade na localização dos
pontos, faceta que me acompanharia pela vida fora, e por isso fui forçada a
desistir, abandonando as aulas da D. Zulmira, onde, de resto, pouco mais fazia
do que descoser casacos velhos – com oculta e eficiente lâmina para apressar a
tarefa.
Tirante
essas aulas enfadonhas, julgadas pelos meus pais imprescindíveis na nossa
formação pedagógica, a vida decorria tranquila, grande parte dela passada na
rua com os amigos, a brincar ou a conversar, durante as férias, ou aos sábados
à tarde, ou em casa a estudar e a ler.
A minha alta
e elegante irmã cedo se tornou mais caseira e raramente jogava, embora
manifestasse extremo jeito em todos os jogos, a ponto de todos quererem pertencer
à sua linha.
A minha mãe
é que não aceitava desportivamente as minhas tendências vagabundas e uma vez
disse-lhe, chorando, que ela não me compreendia. Foi por alturas da
adolescência, um tanto quezilenta, e eu achava que, o ajudar a lavar roupa ou a
arrumar a casa em horas de actividade doméstica assinalada, além das notas
meritórias nos estudos, apelavam a uma compreensão mais acentuada das minhas
ânsias de liberdade. Ficou-me, entretanto, a experiência dessa rude fase, para
encarar sem receio idênticas reivindicações actuais do meu filho mais velho.
Acabei o
sétimo ano e as perspectivas do curso superior concretizaram-se
definitivamente. Nunca pagara propinas no liceu, o Estado concedia-me uma parca
bolsa para auxiliar os estudos na Faculdade. Demonstrou-se que o meu pai
ganhava umas dezenas de escudos mais do que o permitido por lei para obtenção
de uma substancial bolsa de mil escudos mensais, e daí o ter sido reduzida a
metade a minha bolsa. Em Coimbra, no entanto, contactei com uma colega dos tempos
do liceu, filha única e bem vestida, e cujo pai, também funcionário do Estado
moçambicano, então airosa província ultramarina, possuía, “además”, largos
prédios e largas posses. A bolsa da minha colega era dos substanciais mil
escudos, substância essa que sempre considerei sintomática da infinita largueza
interpretativa da nossa legislação moçambicana – desconhecia então a legislação
metropolitana, muito parecida – ou da infinita largueza de meios
ultramarino/metropolitanos – de se escapar a ela.
Felizmente
na Faculdade, não tive nunca também, graças a um bom resultado nos exames do
sétimo, o espectro das propinas a tornar mais periclitante a nau mal dirigida
das minhas finanças.
Os mil e
quinhentos escudos recebidos deveriam bastar-me, de facto, pois colegas minhas
nem metade recebiam de casa. Desde a viagem por barco para Lisboa, onde fiquei
em dívida para com a minha colega Fifa, por ter comprado no Lobito uns livros
que me sobrecarregaram a bagagem e deslumbraram as minhas ânsias de cultura e
autonomia administrativa, e por ter pago com generosos cem escudos aos criados
de bordo pelas escassas atenções para com a minha pessoa e já anteriormente
compradas, com desconhecimento meu, pelo meu previdente pai, nunca houve um mês
de absoluta disponibilidade orçamental na minha vida coimbrã.
E no entanto
em pequena eu revelara até certo pendor para encontrar dinheiro, desde quando
achara uma carteira na estrada de Oliveira de Frades, logo perdida por não ir
longe o seu possuidor, e por um excesso de zelo materno de entregar
biblicamente o seu a seu dono. Não calculava, a minha escrupulosa mãe, as
diferentes vulgaríssimas apropriações, sofridas em todos os tempos, pelas
propriedades de cada um, por desconhecimento bíblico, sem dúvida, de cada novo
proprietário.
Doutra vez
foram dez escudos sem dono os encontrados, e como me tornei alvo de fartos
elogios por causa da minha vista aguçada, desejei repetir dias depois a
façanha, para auxiliar a minha mãe nas despesas caseiras, mas, por falta de uma
quantia perdida, com dez escudos surripiados da gaveta. Todavia a minha mãe
desconfiou da abundância de achados monetários numa terra de tão fracos
recursos, apesar das lojas de cima e de baixo, e, envergonhada, renunciei
definitivamente às demonstrações de prospecção argentária pelas ruas de Lafões.
Em Coimbra,
as prestações de livros nas livrarias foram em parte responsáveis pelas minhas
penúrias, mas atribuo o facto antes a um natural “penchant” que sempre me fez
escorregar pelos dedos bem abertos o duro e sedutor metal, tão difícil de
ganhar e tão fácil de perder.
III PARTE
ROUXINOL DE BERNARDIM
A chegada a Lisboa coincidiu com a morte da Madrinha
do Carregal, a minha avó materna, e por isso mal nos detivemos na capital,
partindo de abalada para a velha casa do aido, no Carregal, que tão grande me
parecera na infância e agora achava ridiculamente pequena e desconfortável.
Lá estava a
mesma varanda, onde a Madrinha se costumava sentar com as pernas ao sol,
pisadas de uma ferida incurável, e onde ela diariamente arrastava – única
tarefa que lhe conheci, nos meus tempos de Pinheiro – o balde com lavagens para
os porcos, desde a cozinha até ao orifício na varanda por onde as lançava para
a pia dos porcos, colocada por baixo, no respectivo curral localizado sob a
cozinha e a varanda que dava para o quinteiro.
Na casa
nova, mais clara, de construção posterior e contígua à do edifício antigo de
granito escurecido pelo tempo, havia ainda o lindo calendário de números
soltos, presente do tio Carlos, quando lá fora de África, e parado no tempo, já
que ninguém se lembrava de lhe mudar diariamente o número correspondente a cada
dia do mês, colocado, como os trinta restantes, numa armação sotoposta. Mas não
encontrei a grafonola, também presente seu e utilizada nos tempos recuados do
casamento da tia Lizete. A um canto da sala, o antiquíssimo relógio de pêndulo
dava as mesmas badaladas. E sobre uma mesa enorme, como um catre funerário,
estava depositada a Madrinha, dura e gélida no seu sono de morte.
Senti pena
pela minha mãe que não veria mais a sua, mas foi um sentimento fugaz, e a breve
trecho encontrava-me na cozinha, junto das tias Lisete e Rosinda, esta última
mulher do meu tio Manuel, e da qual recordo uma bondade e doçura ilimitadas.
No aido,
igualmente minúsculo agora, havia a mesma figueira, por sobre um tanque, e a
mesma japoneira, que conheci depois por cameleira, num canto sobranceiro à rua.
O Carregal conservava o seu cheiro perfumado e tranquilo dos campos, e os
caminhos o seu estrume eterno.
Depois de
enterrada a Madrinha, fomos para Paradela, os meus padrinhos e eu, que lhes
vinha cuidadosamente entregue.
Mas era
Coimbra o meu destino e o meu primeiro ano de Faculdade passei-o no Patronato,
onde obtive, entre outros conhecimentos, o da dança de valsas, tangos e “pasos
dobles” com que a Magna, segundanista de Germânicas, nos brindava diariamente
no piano da saleta.
Éramos
várias caloiras então, a Haydée, a Héldera, a Fernanda, a Ilda, eu, e por esse
motivo grave, fomos julgadas em sessão solene para gáudio das doutoras.
Mandaram-nos subir a um banco colocado no meio da sala do piano, defronte da
mesa de julgamento, onde a Ifigénia e as outras, vestidas com a beca de juizes,
davam as suas ordens severas e um tanto disparatadas.
A mim
mandaram-me cantar e eu, supondo suficientes os treinos caseiros, experimentei
maravilhar a assistência com os meus trinados mais suaves na canção “O mar
espreguiçando-se na areia” da Celeste Rodrigues. Fui interrompida por uma
exclamação escarninha que me deixou embatucada, não habituada à troça alheia e
acreditando piamente no ouvido apurado da mesa censória, ignorante ainda de
praxes académicas, que impunham a troça desbragada ao caloiro inepto ou
ingénuo. Disfarcei, contudo, com desportivismo, e quando a açoreana Ambrosina,
no seu sotaque fechado, me chamou “caloira”, declinei elegantemente, em
profunda vénia, a minha identidade. Ofendeu-se com a displicência, pois os
hábitos eram de docilidade caloiral e no dia seguinte mobilizou-me para lhe
arrumar o quarto. Depois de bem ponderada a questão, a minha susceptibilidade
impôs-me a desobediência, e preferi chorar para casa as minhas desditas.
A Ambrosina,
adoptando um ar desprezativamente distanciado, não me perseguiu mais por causa
das suas limpezas e eu passei a fazer apenas as minhas. Entre estas incluía-se
a corporal, sendo grátis as abluções diárias e a dez escudos o banho de
chuveiro num cubículo mal-amanhado, onde não havia lugar para pôr a roupa.
A
exorbitância de preço do duche no cubículo do Patronato, estava certamente relacionada
com o preceito cristão seguido pela irmã dos banhos – a irmã Maria - irmã
conversa, que nunca tomara nenhum, imbuída de uma aterradora ideia de pecado
ligado à contemplação e arejamento do corpo, e cuja limpeza estaria em profunda
oposição com a pureza da alma.
Para remir,
pois, a minha alma do pecado do banho dominical, passei a sair beatificamente
aos domingos, a pretexto da missa que todas as raparigas do Patronato
frequentavam, como exercício espiritual imposto pela educação metropolitana.
Mas avessa a imposições que não fossem as ditadas pela minha consciência,
dirigia-me, à hora da missa, para o Jardim Botânico ou o Penedo da Saudade onde
ora estudava, ora lia os versos dos poetas, inscritos nas lápides do Penedo,
ora contemplava os próprios locais de encanto, ou as paisagens distantes. Bons
momentos esses, apenas perturbados pelo frio ou pela chuva e também pela
consciência da mentira que não me iria favorecer a remissão do pecado do banho.
Por isso, mais tarde, a minha probidade induziu-me a confessar honradamente à
Irmã Consolação que nunca pusera os pés na igreja, a não ser em visita
cultural. Ia tendo um colapso, a querida Irmã, mas apressei-me a erguer-lhe o
moral com a promessa de nunca mais ir apanhar chuva nos domingos cinzentos do Botânico
ou do Penedo, com risco de engripar, e de limitar as minhas actividades aquosas
dominicais ao banho de dez escudos do Patronato.
As saudades
de casa eram grandes nesse primeiro ano, mas consolava-me, escrevendo bastante
para os pais. Entretanto, nas Bibliotecas e sobretudo no Instituto Francês da
Faculdade de Letras, largo campo se abriu à minha ânsia de leituras. O
bibliotecário do Instituto – sr. França Amado, outra “ramalhal figura” – era um
belo conversador e orientador, com a sua filosofia bastante céptica a respeito
dos homens, mas com certo jeito donjuanesco para alisar o seu bigodinho pouco
acentuado, pois nessa altura os fenómenos capilares usavam-se pouco acentuados.
Esse
primeiro ano decorreu lindamente no capítulo das realizações escolares, sem,
contudo me mostrar excepcionalmente brilhante. De facto, perdia tempo demais
com leituras em lugar de o perder estudando, mas as leituras contribuíam para
um enriquecimento adequado, além de satisfazerem as minhas ânsias de
felicidade.
Gostava de
estudar só, e como estava num quarto de mais duas alunas – a Magna, quartanista
de Germânicas e a matemática Clicas, um amor de açoreana, muito inteligente e
preguiçosa, as quais gastavam muito tempo conversando – à noite ia, nas noites
de inverno, com os livros para a sala de piano - já silenciosa – embrulhada num
cobertor, onde a Madre Superiora por vezes me levava bolinhos saborosos, jamais
servidos à nossa sobremesa e que deviam ser utilizados apenas nos regalos
solitários das boas freiras.
Dentre as
raparigas do Patronato, além das caloiras já citadas, todas de Germânicas, com
quem estabeleci laços amigos, em breve distingui a Maria Adelaide Vasconcelos,
segundanista de Germânicas, moça de extraordinária força de carácter, como
nunca encontrara na minha adolescência. Ela gostava de me converter, eu
detestava ser convertida, e as nossas discussões em torno da Fé e da Verdade
deixavam-nos exactamente no mesmo pé de convicções, mas entretanto eu ia-lhe
comendo o seu doce caseiro de chila ou de pêssego que o meu espírito ávido
apetecia mais do que o doce conforto da religião.
Esta me
bastara nos tempos do liceu, pois além da comunhão colectiva precedida de
confissão também colectiva, feitas no segundo ano, sem convicção mas com a
docilidade que as convenções impunham, eu possuía um terço de contas brancas,
por meio do qual tentava angariar a protecção divina, nas minhas rezas
nocturnas dirigidas, antes de adormecer, ferventemente aos céus. Por vezes
distraía-me e invalidava assim honestamente uma dose de ave-marias, que repetia
numa atenção heroicamente forçada. Mas nunca andava em dia com as minhas
contas, isto é, com as do meu terço, que lançava sempre em débito para a noite
seguinte, sempre mais sobrecarregada. Não me lembro se cheguei a saldar as
contas ou se me foram perdoadas pelo meu Deus generoso. Naturalmente crente mas
não praticante, o nosso pai, no seu conceito elástico de não impor normas que
não fossem as de uma moral sã – posta em causa mais tarde pelo conceito da
relatividade e inconsistência desses valores burgueses - entendia que nos
competiria a nós escolhermos o nosso culto segundo os ditames da nossa
consciência e da nossa razão. Faltava-me, pois, o apoio das convicções de raiz,
daí o trabalho insano da Adelaide para me ilustrar.
Tinham-me
dito que, além de ter sangue azul, ela era uma excelente poetisa, mas com a sua
rígida firmeza, nunca me mostrou as suas poesias nem o seu brasão, limitando-se
a deixar-me devassar-lhe os frascos das compotas, que eu, aliás, retribuía com
a compota de cereja sempre que a minha madrinha de Paradela, a quem eu viera
entregue, me levava em frasco.
Para o meu
Livro de Grelados fez-me uma pequena poesia encantadora que não posso deixar de
transcrever, tanto a sua opinião a meu respeito se coaduna com a minha, coisa
rara entre os humanos:
Sonho para ti um mundo diferente
Onde só brilhe o sol e onde toda a gente
Saiba amar e compreender:
Um mundo bom e grande
De acordo com o teu ser.
Também para
o meu Livro de Fitados a Adelaide me faria um poema – remate glorioso das
nossas discussões teológicas:
Sinceramente eu te desejo tanto
Que tudo o que escrevesse
Era banalidade.
Ventura?
Amor?
Felicidade?
Não! Tu és capaz de mais!
A tua vida deve ter Dor
Ter Luta
E ter Ansiedade!
Deixa a Felicidade
Para quem é fraco
Ou tem medo!
A tua vida é onda e é espuma!
Esse bater da onda no rochedo
Tem Ritmo!
Tem Melodia! (Há qualquer coisa no ar!)
O teu viver
É como que uma Saudade
Daquela mesma Verdade
Que está para além do Mar!...
................................................
Mais tarde...
(Em certa noite encantada!)
Que a onda que se perdera
Ao tropeçar de cansada
Num rochedo sonhador
Se levante lentamente
E “de novo volte ao Mar”
Eternamente
O seu Senhor!...
Anos mais
tarde eu juraria que a Adelaide fora responsável por um destino menos brando,
ao achar-me capaz da Luta e da Ansiedade e ao suprimir-me o convívio da sonhada
Felicidade.
Nas férias
grandes desse primeiro ano estive com as minhas colegas caloiras do Patronato
numa colónia de férias da JUC, na Granja, cuja pior recordação seria,
naturalmente, a imposição da missa diária, para a qual uma vez mais fora
apanhada de surpresa, desconhecedora como era das regras religiosas ligadas à
preponderância da Igreja no nosso país, e pelas quais, em África, vivíamos
menos condicionados.
Quanto à
melhor recordação, além dos mergulhos salgados, foi a “canção da despedida”,
numa roda, de braços cruzados e de mãos dadas:
“Chegou a hora do adeus
Nós vamos pois partir,
Chegou a hora do adeus
Nós vamos reunir.
É só até mais ver,
Irmãs,
É só até mais ver...”
De facto,
nos anos seguintes, cada uma seguiria o seu próprio destino, no mesmo ou em
outros lares ou, como eu, numa casa particular.
Passava as
férias em Paradela, na bela casa dos meus padrinhos, também idos de África, e
vivendo numa abastança a que, em geral, aspiram os reformados, de retorno à
pátria o que, para o meu padrinho, fora relativamente fácil, pois a mulher,
filha única, possuía um bom património que os dinheiros de África ajudaram a
refazer.
Havia um
vasto aido em frente à casa, com um poço provido de uma moderna bomba movida a
electricidade para a extracção da água, tangerineiras, laranjeiras, seguido de
um prado para onde eu ia estudar e dormir, e de campos de milho ladeados de
belas videiras, cujos cachos tantas vezes me ofereciam os bagos que começavam a
pintalgar.
Costumava
acordar de manhã com o chilrear dos pássaros, mas uma madrugada despertei com o
grunhir aflitivo de um pobre porco atado a um carro de bois e para o qual soara
a última hora. Fugi horrorizada, mas não deixei de lhe saborear os enchidos e o
sarrabulho e até de participar no êxito dos chouriços, ajudando a encher as
tripas lavadas do porco com a carne partida a marinar nos alguidares, em vinha-d’alhos.
Comia-se na
comprida mesa da cozinha, pois a sala só se utilizava para as visitas, e era
constante o movimento na casa, de gente a ela ligada – família, caseiros,
afilhados, amigos - prova de uma reputação já antiga de abastança favorecedora
da simpatia da vizinhança.
Em sabor e
requinte, os pratos preparados pela minha madrinha em nada desmereciam o arroz
com favas ou o frango corado no forno de Tormes, nem tinham rival o seu
pão-de-ló de vinte ovos, batido violentamente à mão em potente alguidar de
barro, ou os bolinhos de abóbora feitos pelo Natal.
No primeiro
Natal que passei com os tios, lembrei-me de levar de Coimbra brinquedos para as
crianças pobrezinhas de Paradela, brinquedos baratos, nessa altura, e eu
usufruí livremente da possibilidade de utilizar dinheiro a meu prazer. Mas os
meus pais discordaram desses lirismos esbanjadores e só o meu tio apreciou o
gesto e guardou até um caleidoscópio como recordação da minha magnanimidade.
Às vezes
íamos ao Carregal, onde tinha mais tios e primos. Foi essa aldeia que escolhi
para local de um Inquérito Linguístico, ordenado pelo nosso professor de
Filologia, Dr. Paiva Boléo. Nunca este se referiu ao meu Inquérito, mas soube
que o apreciara, porque o mostrara ao Dr. Herculano de Carvalho que me elogiou,
com profunda humilhação para as minhas pretensões filológicas, apenas as
páginas de prosa introdutória, onde punha em destaque a miséria, as pulgas e o
excesso de trabalho dos homens e mais ainda das mulheres, absorvidas pela
terra, pela casa e pelos filhos, num lidar esgotante que as faz esquecerem-se
depressa de haverem sido alguma vez jovens e atraentes. Anos depois, ao
encontrar nos escritores neo-realistas temas idênticos explorados em obras mais
ou menos ficcionais, mas enriquecidas por uma ideologia marxista, sentia quanto
apenas uma pura sinceridade na expressão da revolta presidira àquele texto, o
que não estava, todavia, nos hábitos universitários de uma Coimbra submissa aos
meandros da tradição política. Daí o ter ficado sensibilizada com o elogio do
meu professor, Dr. Herculano de Carvalho, embora o tivesse feito apenas
pessoalmente, sem divulgação à turma do meu texto comprometedor.
No Carregal
estava a Amarilis, irmã da Celeste, onze ou doze anos finos e melancólicos,
consequência, talvez, da difícil experiência dos feijões por que passara quando
bebé, e com ela desbravava os locais que ela tão bem conhecia, onde existiam
morangos ou outras frutas que tanto apeteciam às minhas memórias de infância.
Como nos acompanhavam sempre miúdos, de carinhas espantadas para a desconhecida
que brincava com eles, por vezes revelávamos jeitos maternais verdadeiramente
arrepiantes. Foi o caso de um banho dado a um garotinho, muito sujo e aterrado,
num riacho propício a lavagens. Mas o miúdo, sem experiência destas, ficou
convulso, a gritar pela mãe, e, assustada, por falta de toalha limpei-o com a
minha saia de ramagens rodada e protectora.
O segundo
ano em Coimbra seria pródigo de sensações. Logo no início das aulas o Rui me
procurou para me confessar uma encrenca que não chegou a transmitir-me, a
pretexto da minha pequenez física, pouco em relação, contudo, com o tamanho
moral, apto a compreender todas as encrencas. É certo que, desde os tempos do
liceu usava peúgas, favorecedoras de um certo ar juvenil, mas os sapatos largos
e confortáveis evitavam a formação de calos de que sofri posteriormente,
quando, por imposição do Rui, os larguei, mais às peúgas, por meias de nylon e
sapatos de tacão alto, os quais, além dos calos, devido ao seu tipo então
afiado, me provocavam desequilíbrio, nas ruas empedradas da velha cidade.
O Rui fora
meu colega no sétimo ano em Lourenço Marques, mas tinha fama de boémio – que
fez sempre o possível por preservar com glória – além de uma namorada oficial,
e as nossas relações então circunscreviam-se às traduções de latim que me pedia
com aflição, antes da aula de latim. Descontraidamente usava nas aulas calção e
sandálias, acarretando-lhe tal pormenor frequentes elogios do professor da
disciplina – o Dr. António Gonçalves, por alcunha o Balantas - à sua bela perna
descoberta, daí, certamente, o desejo do Rui de merecer idênticos louvores no
capítulo das traduções latinas. Esse meio irónico do professor de contestar o
uso do calção que os calores africanos pediam mas que os outros colegas do Rui
não usavam, na sua responsabilidade de estudantes já crescidos, demonstra a
simpatia em liberdade que se estabelecia muitas vezes entre professores e
alunos, simpatia que mais tarde seria negada, para confirmação da dureza e
autoritarismo que se pretendia atribuir à escola antiga, em defesa das
liberdades ilimitadas que se desejava impor à escola nova.
Entretanto,
no meu primeiro ano em Coimbra, muitas vezes encontrara o Rui, pois morava na
República dos Galifões, ao lado do Patronato da Rua da Matemática, e com ele
desabafava as mágoas de um viver antagónico, longe do amor e compreensão de
minha casa.
Da República
dos Galifões gravo belas recordações, algumas das quais de uma aprazível
sonoridade musical. Uma noite, por exemplo, despertei altas horas com uma
música celestial, encanto dos meus ouvidos estremunhados. Soube mais tarde que
os cantores eram galifões e estavam bêbedos e além disso a letra da música
nenhumas relacionações angélicas possuía, salvo as tendências fúnebres do seu
final:
“Ai, morena,
Seria o meu maior prazer
Passar o Carnaval contigo,
Beijar a tua boca
E depois morrer”.
Foram
igualmente os galifões que um dia fizeram uma serenata às moças do Patronato,
as quais, escondidas por trás das cortinas, os escutavam gravemente, tendo,
após a cerimónia, acendido e apagado as luzes por três vezes, como é da praxe,
em sinal de acesa gratidão. Todos esses costumes os achava típicos, sobretudo
as luzes finais, com claras sugestões dos pisca-piscas, usados pelos
automobilistas cumpridores nos desvios ou nas chamadas de atenção para outros
automobilistas em prevaricação momentânea. Por todos esses motivos de
demonstração de mútua e comovida troca de galhardetes entre os rapazes e as
raparigas estudantes, eu faria mais tarde, para o seu livro da Queima, uma
inspirada poesia a uma moça “amiga de todos”, a quem voltarei a referir-me:
Um dia, numerosa estudantada
Apoia-se ao portão.
Senta-se, limpa o pó da ... escada
E apresta a voz, de guitarra na mão.
Acorda a Zezita estremunhada
Ao doce som daquele banzé.
Onde há-de escutar, lírica, concentrada?
Eureka! Um sítio ideal! À janela do W.C..
Não sei se
os manes de Tomás Ribeiro me perdoaram alguma vez a paráfrase irreverente do
seu “D. Jaime”.
Nem sempre,
contudo, as relações entre o Patronato e os Galifões se mantinham num pé de
harmonia absoluta, e isso vinha dos tempos em que estes se lembraram de pedir
às colegas colaterais uma bandeira com o emblema bordado da sua república.
Devido aos seus estudos prementes, as moças não corresponderam ao pedido com a
presteza requerida, ingratamente esquecidas das melodias nocturnas com que
aqueles as brindavam, cheios de delicadeza e garbo viril. Por vingança, os
rapazes colocaram então, na haste da sua bandeira, em vez do galo bordado,
peças de roupa interior feminina, responsáveis pelo imediato e digno corte de
relações.
Em todo o
caso, por alturas das festas principescas dos rapazes, as raparigas abrandavam
a sua dureza, dulcificando-a com um ou outro bolo, e o próprio elemento
religioso, constituído pela Madre Superiora e pelas Irmãs do Patronato,
colaborava opiparamente no auxílio aos jovens vizinhos, para se reabilitarem,
sem dúvida, dos meses de penúria digestiva que nos impingiam a nós às
refeições, deixando nos doutores uma boa opinião gastronómica.
Desconhecedora
das hostilidades referidas, que só mais tarde viria a saber pelo Rui, eu
costumava, quando regressava da Faculdade, gracejar às vezes com ele e com
outros rapazes, postados à janela da república, num contemplativo emprego de
estudantes de uma nação sentimental.
Um dia, o
Rui, à janela, deu-me cerejas do Zé Pereira, estudante do último ano de
medicina, as quais comi glutonamente, lançando os caroços para o chão, não
pelas vias directas, mas com a biqueira do sapato, para mais longe, em eficaz
demonstração de pontaria futebolística, adquirida nos tempos do vólei liceal. O
Dr. Zé Pereira mandar-me-ia depois um cestinho de cerejas, que reparti
fraternalmente com a Adelaide, em justo critério de devolução de franquezas.
Mais tarde o Rui diria, no seu orgulhoso costume de não fazer elogios pessoais
limitando-se à transmissão de alheios, que o Zé Pereira, sendo um tanto
misógino, me apreciava bastante, apreço entusiasticamente compartilhado por mim
e nunca desmerecido em nenhuma circunstância da vida, salvo quando, entre as
diversas bichas dos Correios ou doutros estabelecimentos com bichas me coloco
precisamente atrás da que leva mais tempo a ser atendida.
Ora, pelo
Carnaval desse segundo ano, recebi um estranho telefonema masculino, onde me
revelei conversadora brilhante, e no dia seguinte, ao encontrar por acaso o Rui
– tinha notado a frequente repetição desses acasos, tanto mais inesperados
quanto eu vivia então em casa da D. Maria Augusta, na praça da República,
distante do Patronato – contei-lhe das minhas sábias e alegres respostas. Só
mais tarde, por alturas da Queima das fitas, o Rui confessaria ter sido ele o
meu telefonista anónimo do Carnaval.
Foi nas
férias da Páscoa desse ano que descobri e analisei os meus ternos sentimentos.
Encontrei na Baixa o Rui, que logo se propôs acompanhar-me, mas repeli-o, a pretexto
das más línguas, em todos os tempos bastante activas, na minha opinião
desconfiada e severa por educação. Afastou-se imediatamente, e essa reacção
despeitada causou-me aguda pena. Quando regressei a casa telefonei-lhe e
combinei ir estudar com ele para o Botânico, já meu conhecido das minhas
excursões dominicais do ano anterior.
Foi a fase
mais bela dos nossos amores, a fase das manhãs de sol, de ternura e pássaros a
chilrear nas árvores do Jardim. Por aquilo que sentia então, deduzi dos
sentimentos do Rui, o qual, cheio de boa vontade e espírito de colaboração, se
deixava adorar sem pôr dificuldades. Tinha uma linda voz apaixonada, e às vezes
cantávamos juntos os fados de Coimbra ou a Serenata do Toselli.
Fizemos
excursões – uma delas a Vale de Canas, com o Otto, seu irmão, e a Zé, minha
futura cunhada, o Pato, camarada do liceu e da República, e mais duas colegas
suas amigas, as Santos Costa, com a respectiva mãe, senhora muito simpática e
sorridente que dava respeitabilidade ao ambiente. Jogámos à bola, e como o Rui
me afirmara sofrer do coração, eu ia apanhar-lhe as bolas que caíam pelas
ladeiras, num zelo todo feito de preocupação pelo seu excesso de palpitações.
Outra vez, o
piquenique foi para os lados de Santa Clara, à beira do Mondego. Participaram
nele os dois irmãos, as duas futuras cunhadas e mais outra moça, “amiga de
todos” de longa data, dos tempos do liceu. Eu tinha-me esmerado a fazer uma
salada de morangos, e como desconhecia o tratamento destes à base de natas ou
do inebriante licor de Baco – conhecimento que adquiriria em fase muito
posterior - esmaguei-os com açúcar, num creme para mim delicioso, mas que
apenas a sobriedade do Otto afirmou apreciar, por pura delicadeza. Em todo o
caso o Rui desculpou magnanimemente os morangos e mesmo, pela primeira vez,
sentámo-nos com as costas interapoiadas, com certo escândalo dos companheiros,
não adeptos, na sua maioria, de manifestações exteriores, ou pouco habituados a
tais liberdades em mim própria, que consideravam, provavelmente, apenas um rato
de biblioteca. A “amiga de todos”, contudo, aproveitou o meu desencostamento
momentâneo, para se deitar camaradamente com a cabeça sobre a barriga do Rui,
estendido sobre a erva.
Desta vez
fui eu a admirada, e mais ainda quando este a convidou para ir estudar connosco
para o Botânico. O desvendar do nosso local trabalho entristeceu-me, e no dia
seguinte não compareci, deixando o espaço aberto para as diversões do Rui com a
nova companhia. Contudo, à tarde, fui por ele procurada na Biblioteca, óptimo
refúgio de macabras reflexões, dada a sua vetustez, embora sem pingos de chuva
por se estar na primavera. Tudo acabou bem, após a indispensável promessa de um
Botânico só para dois, para maior concentração, imprescindível naquela quadra
próxima dos exames.
Por essa
altura, um rapaz francês, o Michel, vindo à boleia de Paris, encontrara poiso
hospitaleiro na acolhedora república dos Galifões, cuja sala de jantar
continha, numa parede, simbólico desenho de um pintor anónimo, representando um
osso coberto com uma capa de estudante, sobre o qual se lançavam,
gananciosamente, os sete cães do provérbio, nomeadamente o senhorio e o lente.
Com o
Michel, nessas férias da Páscoa, demos bastantes passeios, entre os quais um ao
Buçaco. Eu desenvencilhava-me com desenvoltura no meu francês de futura
professora da língua, e a cada passo nos encontrávamos em identidade de
pareceres a respeito da vida ou dos escritores franceses que eu lia com tão
arreigado fervor por esses tesouros que para sempre tornaram a França credora
espiritual do mundo inteiro.
Um dia,
passávamos por um edifício de pedra circundada por um vasto muro e o Michel
perguntou-me o seu nome. Cheia de conhecimentos toponímicos resultantes dos
esclarecimentos do Rui nas nossas deambulações pela cidade, apressava-me a
informar que se tratava do melhor hotel de Coimbra, quando o Rui se aprestou a
desfazer o equívoco, explicando tratar-se não do melhor hotel mas da Cadeia
Central de Coimbra. O Michel achou muita graça à patranha do Rui, que assim foi
consolidando a sua opinião sobre a facilidade com que me faria engolir sempre
todas as patranhas.
A Queima das
Fitas desse meu ano de Grelada foi muito animada. Radiosamente toldado, o Rui
dirigia piropos a todas as raparigas que assistiam nos passeios à passagem do cortejo,
e eu ria-me da vastidão das suas aptidões sentimentais, demasiado dispersas
para lhes conceder gravidade. Só à noite, no Parque, voltei a esmorecer, pois
mais uma vez a “amiga de todos” o levou consigo, de braço dado pelo parque
fora, deixando-me numa tempestade de sentimentos que só no dia seguinte poria a
claro, chegando nós a um acordo sobre as nossas futuras relações de enamorados
confessos e convictos da sua eternidade.
À tal amiga,
aliás simpática e bonacheirona, costumava mostrar a minha cordialidade,
cumprimentando-a, sempre que a via impecável nos seus fatos e no seu penteado,
com ligeira biqueirada do sapato, o que lhe desmanchava um pouco a linha de
gravidade mas jamais o sorriso envolvente. Hoje, que a indiferença deu lugar a
um sentimento que supunha imorredoiro, arrependo-me de tais saudações em que
uma indiscreta infantilidade escondia, provavelmente, algum perverso despeito.
De toda esta
intensidade emocional ressentir-se-ia o meu “curriculum” de estudante, pois as
notas baixariam desde então, só voltando, no meu quarto ano, graças a uma certa
estabilidade afectiva, a adquirir o nível do primeiro.
Por esse
motivo, ao professor de italiano que me elogiava um dia, à entrada de uma aula,
ao professor de francês, M. Jean Girodon, retorquiu-lhe este, zangado, que eu
não passava d’”une petite farceuse”, epíteto severo, jamais esquecido pelo meu
carácter recto, porque me deu imediata noção de quanto eu andava a perder
qualidade como aluna de uma instituição que, para mais, me não exigia propinas,
como porque, em meio da pena que senti por não corresponder à expectativa
inicial, me deu imediata compreensão da estima e estímulo dos professores,
apesar da apregoada indiferença catedrática
Das nossas
aulas recordo um episódio cómico passado com o professor de italiano, o
professor Montuori, possuidor de uma linda voz e de um belo Fiat, reclames
perfeitos da perfeita linha italiana. Estudávamos então “Il pássero solitario”
de Giácomo Leopardi. O professor já o lera e relera, num entusiasmo sempre crescente
e prometedor de larga continuação. A certa altura, e no meio do pasmo dos
colegas, logo seguido de fungadelas baixas, eu exclamei numa súplica: “Senhor
professor, o pássaro é solitário e nós já lhe fizemos tanta companhia!” Nunca
percebi o motivo por que o professor Montuori, geralmente disposto a rir,
mostrou uma tão extrema severidade crítica.
Outra graça,
desta vez numa aula do Dr. Herculano de Carvalho, foi quando este, ao procurar
o termo mais expressivo que traduzisse o “angiola” com que Dante, na “Vita
Nuova” denomina a sua Beatriz (“questa angiola giovanissima”), eu sugeri
suavemente que se lhe chamasse “anjinha”. O Dr. Herculano era uma pessoa
circunspecta no seu ar nobremente inteligente pairando acima da turba, mas riu
de bom grado então.
Pois apesar
do decréscimo nas notas, nesse segundo ano tive uma bolsa para França, graças,
talvez, mais à boa vontade do professor Jean Girodon do que a um mérito real.
A
permanência em Paris seria de grande utilidade. Aprendi a analisar a
desconfiança xenófoba e o grau de capacidade interesseira de um povo que eu
tanto admirava nos seus livros, através, sobretudo, dos seus irritadiços
“chauffeurs” de táxi, trabalhando por meio de gorjeta e de um ódio estranho.
Mas com o
meu professor da Sorbonne aproveitei bastante, pelo menos ele assim o escreveu
nalgumas composições, numa das quais eu referia a falta de hospitalidade
francesa, contrastando-a com a generosidade portuguesa, sintomática, ai de mim,
de subserviência de um povo pouco evoluído culturalmente.
Eu ficara
muito humilhada quando, na primeira aula, o professor, tendo perguntado a todos
os alunos a respectiva nacionalidade, apesar das variadíssimas nacionalidades
que frequentavam as suas aulas, só com a minha manifestou espanto, como se
Portugal fosse um país dos confins da Ásia ou da América do Sul, dos mais
encravados, geograficamente falando.
É certo que
nessa altura não possuíamos ainda o Eusébio, mas a Amália Rodrigues já tinha
então muita saída, e no hóquei em patins déramos – e continuamos a dar, graças
a Deus – provas contínuas de sabermos escorregar bem. Além destes aspectos
concretos, tínhamos atrás de nós, mais abstractamente, todo um passado de
glória descobridora, e mantínhamos ainda, concretamente também, outras glórias
exportadas, de cortiça, lataria e vinhos do Porto e da Madeira, segundo
ensinavam já então os livros de francês do ensino técnico.
Engoli,
pois, em seco, e como o professor, logo nas primeiras aulas, se prontificou a
vender-nos um livro que escrevera – “Le
Poète et la Machine” - e onde, de bom grado, aporia o seu autógrafo, fui
das primeiras submissamente a comprar-lho, na esperança de lhe parecer um
produto civilizado de um país culturalmente desenvolto e economicamente
abastado. Hoje, que as convulsões políticas se desencadeiam no nosso país,
pondo em causa um largo período considerado opressor, penso que o professor
Paul Gimnestier quis fazer sentir, com o seu espanto pela minha nacionalidade,
na sua altivez de filho de um país livre, o seu repúdio por um espécime inferior
de um país amordaçado.
Entretanto o
Rui Baltazar, excelente estudante de Direito, aparecera em Paris com um amigo,
de passagem para um campo de trabalho em Inglaterra. A ele devo – e à Zé Pinto,
minha colega também – os primeiros contactos com cabarés e streep-tease, pois
arranjou lugar num deles, apenas por cem francos cada um e com direito a uma
garrafa de champanhe num balde de gelo. Creio que de nós quatro, o Rui Baltazar
era o mais envergonhado, mas a ele devo o ter visto o maravilhoso filme do Fellini
“La Strada”, realizado no ano anterior, além dos passeios pela cidade e museus,
e das correrias irresistíveis nas longas galerias dos metros, apenas povoadas,
em certas horas do dia, por mendigos discretos.
Do seu campo
de trabalho em Inglaterra, o Rui levaria gratas recordações para Portugal. Uma
delas reporta-se às reuniões que eles faziam por lá a discutir questões sociais
e outros problemas. Numa das ocasiões, em que se tratava o futuro da Inglaterra
dependente do tratamento dos milhos pelos jovens campistas estrangeiros, um
desses jovens teve um descuido muito sonoro que, escutado reverentemente pelos
campistas cultos, fez rir o preconceituoso companheiro do Rui. Os outros
soltaram um “chut” feroz contra o inculto que se atrevia a rir de um som tão natural
como o ribombar do trovão no céu convulso, ou o arroto entre chineses educados,
generosamente alimentados. O riso alarve era índice evidente de um perfeito
grau de incivilidade e convencionalismo tacanho, donde se segue que, por
excesso de riso, também na exigente Albion ficámos muito mal vistos.
Do ano
seguinte, as mais gratas recordações ligam-se ao dom, então revelado, de
poetar, geralmente em tom faceto. Fui a primeira a maravilhar-me ante tão
ditosa possibilidade, mas em breve esgotei a veia, pródiga de influências e de
sentimento.
Já para o
livro de Grelados, no ano anterior, dedicara umas quadras tímidas a algumas
colegas, especialmente aprovadas pela nossa querida colega, Irmã Gabriela, que
se ria com as minhas brincadeiras, talvez por ser das poucas pessoas felizes e
boas que conheci.
Para a loura
Judite Miranda de Angola, foi esta a quadra:
Quiseste um dia ser sábia
Trocaste o mar por um rio.
A única objecção que ponho
É que isto aqui é mais frio.
Bastante me
fazia sofrer o frio metropolitano, assim como as pulgas dos eléctricos ou dos
cinemas, que, mal me instalava nos assentos, instantaneamente arremetiam contra
mim, num companheirismo todo marcado pela unilateralidade e a incompreensão
aterrada.
À Conceição
Sarmento, a estudiosa-mor da turma, escrevi encomiasticamente:
Concentradamente, meticulosamente,
Consultas as Musas da Ciência...
Que dizer, amiguinha, se tu própria
As superas em sua clara omnipotência?
Para a
Fernanda Pedrosa, sempre atrapalhada e chorosa observei:
Ó Fernandita chorona!
Que aflição! Mas que veneta!
As frequências estão perto:
Um calmante ou uma chupeta?
Também os faria à Fernanda Resende, minha
colega desde o sexto ano do liceu, mas já conhecida anteriormente, quando
apanhávamos o mesmo machimbombo em paragens diferentes, eu no Liceu, ela no
Instituto Portugal, actual escola General Machado.
Era muito
bonita, a Fernanda, e apresentava um majestoso e convincente porte de rainha,
estilo Elysabeth Taylor. Mal ela entrava, na sua paragem, se mais ninguém se
apressava a oferecer-lhe lugar – gesto, nessa altura, corriqueiro, nos pejados
machimbombos lourençomarquinos – logo eu lhe cedia o meu, cheia de rendida
admiração, pois a supunha mais velha. Era isso no tempo em que, nas paragens,
enquanto esperava o machimbombo, eu costumava jogar ao berlinde com os colegas
a isso dispostos, nas três covinhas marcadas no chão do passeio de terra batida
à frente do parque Silva Pereira. Mais tarde, no sexto e sétimo anos, fiz-lhe
pagar com juros os meus enganos anteriores que provocavam a sua constante
alusão e hilaridade.
Em Coimbra,
a Fernanda não se dava muito bem com as colegas, que interpretavam menos
deslumbradamente, por falta de intuição artística, talvez, o seu porte
majestoso. Raramente a encontrava, e quando isso sucedia, cravava-lhe
rebuçados, ainda por conta dos juros passados. Por isso ainda lhe fiz os
seguintes versos desmistificadores:
Saíste um dia lá dos trópicos quentes,
Agora aqui, bárbara e fria, do Mondego ris.
Se voltas a perguntar-me como me corre a vida
Palavra, Fernandinha, que te puxo o nariz.
Mas no
terceiro ano, as minhas aptidões líricas mostravam-se mais torrenciais. A
Fernanda mereceu-me o seguinte discurso:
Tu eras a mesma jovem atrevida,
Bonita, meiga, a estudar sem mão,
Com sobressaltos imprevistos de humor
Que me alteravam o ritmo da pulsação.
Já então tinhas as mesmas manias,
Já então a tua inteligência esclarecida
Em cada simples frase que proferias
Com um “percebes?” aniquilava a pessoa mais lida.
Eu desisto, Fernandinha, dos esforços vãos
Para te demonstrar o valor da nossa percepção.
E desejo que as ninfas do Mondego, finalmente,
Possuam o teu frígido e inquebrantável coração.
Assim
sucederia temporariamente, ao deixar-se prender nas malhas feiticeiras do Amor
maiúsculo.
Entre o trio
do Porto Haydée-Héldera-Fernanda, que habitara, como eu, as celas do Patronato,
encontrei na Haydée a minha alma gémea no gracejo e boa harmonia. Chamávamos
aos croquetes “mastigados”, mas tínhamos ambas bom apetite e uma alegre
filosofia para os engolir, desdenhando da falta de higiene, perfeitamente
supérflua, das louças. Foram estes os versos para ela, com nítidas sugestões
dos nossos poetas medievais:
Bailemos nós, bailemos,
Ai, Haydée!
Sob aqueste viver lento e... compacto...
Bailemos. Bailemos e recordemos
Os bons tempos de Patronato.
Ai, Deus, i u é?
Onde estão, Haydée, onde estão
Os tempos que já lá vão?
Eram doces, doces, doces
Os dias; embora sem grandes pitéus...
E nós, bem comportadinhas,
Sempre merecemos os céus.
Ai Deus, i u é?
Onde estão, Haydée, onde estão
Os tempos que já lá vão?
Partem tristes nossos olhos.
Tão tristes, tão saudosos,
Tão doentes da partida,
Que vão depor, lacrimosos,
Num último olhar derradeiro
Um adeus de despedida.
Também em breve outro adeus,
Mais triste, mais saudoso,
Virá lembrar, implacável,
O fim... e outro começo.
I u é? Qual será nosso destino?
Incógnita. Não queiras saber, Haydée.
Não importa. Em nós subsiste
Risonha recordação
De tempos que já lá vão.
Também à
Héldera, sempre aprumada e reservada, faria os versos seguintes, em paráfrase
de Augusto Gil:
Batem leve, levemente...
Com tão suave leveza
Quem poderia bater?
Não é chuva mas é gente,
É a Héldera, certamente,
Que bate assim de mansinho.
Traz um rosto radiante,
A Héldera vem feliz.
Que será? Que terá ela?
Mas a Héldera não nos diz.
E em passos leves, leves,
Vai formosa e bem segura
A Héldera, pela Peneira.
Nunca
percebi bem o motivo de se chamar “Peneira” à Faculdade de Letras. Seria,
talvez, porque os cursos eram ali bem joeirados, o que constituiria meritória
honra, ou então porque rara era a rapariga que escapava ao crivo dos olhares
masculinos, eternamente postados à saída, em perfeita demonstração da nossa
mentalidade contemplativa e observadora...
Para a
Conceição Sarmento escrevi uns versos adequados às circunstâncias dramáticas do
nosso intenso estudo filológico:
O sol vai alto. E a santa Terra,
Esquecendo por momentos a dor e a guerra,
Amolece em suave pasmaceira.
Está um calor danado. Perto, numa ribeira,
Umas rãs coaxam
Um hino de louvor ao sol doirado.
Tudo é paz e moscas,
Tudo é preguiça e sossego
Entorpecedor.
Mas, circunspecta e vigilante,
Uma miúda desdenha altivamente o calor,
No rosto tendo gravada satisfação triunfante
Ao pensar que ao mundo é necessária a sua
Sabedoria.
Sofisticada por oportuno pensamento
Interesseiro,
Tenta descobrir activamente no ficheiro
A pedra filosofal da... Filologia,
A almejada fórmula que reduzisse tanta bibliografia
E nos tirasse a nós tão grandes preocupações.
Vê se a descobres, Conceição, despacha-te,
Faz-nos esse jeito, tira-nos de aflições,
E para ti irá sempre, efusiva,
Toda a gratidão dos nossos corações.
À Adozinda
Providência e Costa, pequena e com ar de quem não está para tormentas, mas, de
facto, uma gentil figurinha, insatisfeita e refractária às opressões e
injustiças sociais, dediquei as seguintes quadras:
Querias crescer, crescer,
Subir, subir, alongar-te...
Não sei, não sei que fazer-te,
Eu nada posso ofertar-te.
Mas não queiras esticanços,
Nem coisas assim maduras.
Prefere sólidas andas,
Subirás a mores alturas.
Um remédio ainda melhor:
Ó Adozinda,
desperta!
Deixa essa calma imponente!
“Surge et ambula!” Alerta!
A Elvira,
moça desembaraçada e sem travões na língua, viera do Porto para as Letras de
Coimbra, frequentar o curso de especialização em cabulice e despreocupação de
maneiras, e habitava a mesma casa particular que eu, num terceiro andar da
Praça da República, para o qual subia a cantar, mal punha o pé na escada, a
canção brasileira
“Ninguém me ama
Ninguém me quer
Ninguém me chama
De meu amor.
A vida passa
E eu sem ninguém
Ninguém me abraça
Nem me quer bem”.
Creio que
com ela não se verificou tal tragédia de desamor, pois parece que casou,
abandonando o curso. Mas nas nossas discussões sorridentes, punha sempre o
materialismo acima de quaisquer preceitos de espiritualidade amorosa, daí os
versos:
Elvira, é perigoso contestar-te,
Quando discutes, severa, impressionante,
O tema banal do Amor impotente
Ante o Interesse que o esmaga, fulminante.
Mas não perco as esperanças de ver-te
Um dia, ó dura Elvira, convencida
De que – com “scudi” - o Amor somente,
Somente! – faz o encanto desta vida.
Também
faria, para a plaquete da Zé, minha futura cunhada, primorosos versos,
adequados à sua loira figura, elegante e plácida:
Estavas, ó Zezita, sossegada,
À espera de uns versos meus, jeitosos,
Roendo as unhas calma, desalmada,
Confiando nos teus dotes formosos
Que inspirarão qualquer feliz Alceu.
E enquanto olhas liricamente o Céu,
Espremo com angústia o cerebelo,
Para que me dite uns versos adequados
Ao desalinho do teu loiro cabelo,
E aos teus gestos leves, ordenados,
De deusa altiva, de olhar distante...
Agora que isto acabou, fico radiante,
Pois pela tormenta já passada,
Receava que do meu cérebro ficasse
Apenas pó, cinza, pesadelo, ou nada...
O irmão do
Rui, apesar de bastante alto, adoptava, sobretudo comigo que sempre demonstrei
tendências maternais, um certo ar desolado, de criança perdida no deserto
hostil da vida. Quando caloiro, raparam-lhe o cabelo, tal como o haviam feito
ao irmão, no ano anterior. Mas enquanto o Rui enfiou o barrete alegremente,
para se proteger do frio e das indiscrições, o mesmo não sucedeu com o Otto,
infeliz e complexado. Eu também sempre detestei praxes e nunca usei capa nem o
fato preto, a não ser nas festas e para as fotografias, com uma capa
emprestada, mas dei-lhe excelentes conselhos sobre as inúmeras possibilidades
de adaptação do ser humano ao meio ambiente, induzindo-o a enfiar o barrete só
enquanto os cabelos lhe cresciam, pois poderia sempre mais tarde fazê-lo enfiar
aos outros.
Para o seu
Livro de Grelados, escrevi o seguinte, parafraseando António Nobre:
O João dorme e a Maria,
Indo-lhe o sono velar,
Ordena à cotovia
Que fale mais devagar
Para o João poder dormir,
Pois para sofrer e chorar
Os olhos nem deve abrir.
Este menino tão grande
Ficou tal o Joãozinho,
Pois por mais que a gente mande
Que abra os olhos para a vida,
Como um pobre passarinho
Que procura a luz dos céus,
Ele procura guarida
E o amparo junto aos seus.
E com maternal ternura
Por este grande menino
Que apesar da sua altura
Ficou sempre pequenino,
Tudo diz à cotovia
Da história do Joãozinho
Que cante um pouco baixinho,
Porque melhor valeria
-
Mas enfim não é certeza –
Deixar
dormir o menino
Enquanto
brilhar acesa
A
vela do seu destino.
Mas para o seu Livro de Fitados, já brilhante estudante de Medicina, o Otto mereceria os seguintes versos:
E o João, lentamente,
Despertou.
Então,
Reparou
No mundo que aos seus pés se abria.
Era um mundo sofredor,
Que apelava a abnegação
E sacudia
Toda a incúria ou desamor.
Conscienciosamente
O João
Trabalhou.
Para aliviar a dor do mundo
Considerou
Um curso insuficiente.
Era preciso alcançar
Lugar cimeiro.
E afincadamente
O João
Estudou
Conseguindo ser
Primeiro.
Já não vem longe a aura
Que coroará o esforço
Despendido.
Em breve o fim
Pretendido
Surgirá.
E a vida plena
Que seguirá
Dirá então
Se tal esforço
Valeu a pena.
Finalmente,
Aquele Joãozinho ensonado
Que não devia
Ser acordado pela cotovia,
Fora enterrado
Com cuidado
Por um Otto sapiente
Que em atitude sentida
Não mais queria
Os olhos
Fechados
Na vida...
O Rui tinha
um colega – o Quim – com quem estudava na época dos exaustivos exames de
Direito. Eram várias as correspondentes do Quim, segundo dizia, para treino
linguístico variado, pois muitas delas eram estrangeiras. Donde, a seu pedido,
o poema seguinte:
Em onze ou doze versos e não mais
É difícil encaixar altos conceitos,
Pois para as virtudes o espaço é sempre a mais
E não cabem em cem linhas os defeitos.
Mas os defeitos do Quim são ideais
Para os que lhe têm os corações sujeitos:
O escrever constantemente – para os pais,
Para X, para Z, e outros tais,
Em línguas várias com todos os preceitos,
À Formosura erguendo catedrais.
E se não fosse por perder tempo demais
Os defeitos do Quim eram perfeitos.
Mas foi o
Rui o maior inspirador das minhas ternuras líricas, aliadas, por vezes, a umas
sábias previsões do futuro. Eis os versos para o seu Livro de Grelados:
Uns versos bonitos que falem do mar,
Das palmeiras, de pretinhos, do luar,
Uns versos heróicos – ou quase – a bramar
Contra injustiças e dores e... o diabo!
Tudo isso é preciso misturar
Mar com dores, injustiças com luar,
As flores com as hortaliças, uma rosa com um nabo...
Tanta coisa para, Rui, te desejar,
Felicidade infinita, sem barreiras,
Em terras d’além do mar
Onde há praias e palmeiras
E é mais lindo o luar...
Para o seu
Livro de Fitados, já havíamos, então, casado, e experimentávamos, pois, os
primeiros efeitos devastadores do facto:
E quando formos velhinhos..
- Se o formos algum dia -
Lembraremos alegrias
E os espinhos
Dos caminhos percorridos.
Que impressão causam agora
Esses espinhos,
Que mais tarde, em melhor hora,
Possivelmente serão
Ligeira recordação
De uma dor já diluída.
E tudo é estranho na vida,
Mas há beleza também.
Procuremos a beleza
Que sem ela,
Tudo é escuridão e tristeza.
E a nossa grande amizade
Dar-nos-á, em toda a vida,
Constante felicidade.
E aos netinhos, um dia,
Contaremos uma história,
Uma história de encantar
Onde não haverá fadas,
Nem princesas deserdadas,
Nem castelos sobre o mar.
Haverá a eterna canção
De amor e de altivez,
De idílio, de comunhão,
Na história que começou
Como todas “Era uma vez”...
Ainda para a
plaquete da sua Queima:
Que a vida te sorria
Como o néctar às abelhas.
Que sejam, como eu queria,
Mensagem de alegria,
As tuas fitas vermelhas.
Que longos anos volvidos
Sejamos assim, unidos.
Que os caminhos do Direito
Os sigas sempre a preceito
E nunca em nada torcidos.
E para
terminar a revelação dos meus lirismos prosaicos, transcrevo um singelo soneto,
feito mais tarde em Aveiro, ao meu primeiro filho. As analogias com a Rua do
Capelão justificam-se pelas preferências que por essa altura comecei a sentir
pelos fados plangentes das tertúlias lisboetas:
Ao meu bebé pequenino
Sentado numa manta sobre o chão
Tu brincas e sorris e vais palrando,
E as tuas mãozinhas lindas vagueando
São borboletas buscando a amplidão.
Com elas vais captando sensações,
Vais conhecendo o mundo a pouco e pouco.
Meu pequenino! Que desejo louco
Que nunca ele te desse decepções.
Que sempre houvesse luz no teu caminho,
Que a tua vida fosse abençoada
E os teus pés só pisassem rosmaninho.
E nos teus olhos brilhasse a confiança,
E eu visse sempre na boquita amada
O teu sorriso lindo de criança.
A minha
irmã, entretanto, casaria também, um casamento feliz de um noivado eterno.
E é com meu
pai que termino estas evocações do passado, ao transcrever os versos que me
fez, sempre exacto e impecável, para o meu livro da Queima:
“Musa, basta
de rimar”
- Grita bem
alto o Poeta.
E baixinho,
a murmurar,
É da Musa a
voz discreta:
- “Vai a
lira pendurar!”
Mas o
Mondego, a brincar,
Insiste e
torna a insistir.
Quer versos
– vou-lhos mandar.
Ai o Mondego
a pedir
Aquilo que
pode dar!
Ó Berta,
p’ra que insistir?
Eu a pensar
nas tricanas
E a inspiração
a fugir...
Se eu te
pedisse bananas
Não te
fartavas de rir?
Produz o
africano clima
Esses frutos
saborosos
Mas não
favorece a rima.
Os rouxinóis
maviosos
Só o Choupal
os anima.
Aqui a Musa
é ronceira,
Nunca dá o
que promete
E os versos
pedem joeira.
Não os
ponhas na plaquete
Põe-nos
antes na “peneira”.
Na
Peneira...
Que sonho
ver-te passar
Fita ao
vento, esperançosa,
Que sonho!
Continuar!
Entre
espinhos cresce a rosa,
Vivemos para
lutar.
“Vivemos para lutar”! Tinha
razão o meu pai. Seria, com efeito, de luta, parte da minha vida posterior,
caracterizada pela instabilidade afectiva no capítulo das relações conjugais.
Mas os filhos constituiriam uma razão dessa luta e do apego à vida, um elo da
ponte entre esse passado de melodia e um futuro que vai igualmente marcando o
seu doce encantamento na estrada breve e sinuosa do destino.
1973
TEXTOS EM POSFÁCIO
“NOBRE POVO, NAÇÃO VALENTE”,
in “Pedras de
Sal”, 1ª Edição, 1974
Extracto de uma
carta de meu Pai, datada de 30/6/ 1974:
“E
perigoso nestes tempos de Liberdade e Democracia ser-se honesto e sincero e tu
não sabes ser outra coisa. Os verdadeiros Democratas são sinceros e leais e
respeitam a liberdade dos outros, mas não o são estes oportunistas arruaceiros
que andam aí aos berros empunhando cartazes e escrevendo frases indecentes nas
paredes. Estes que tanto apregoam a Liberdade e a Democracia não são mais do
que uma escória miserável do povo português que tudo é capaz de sacrificar às
suas ambições e interesses pessoais. São asquerosos, mas nem por isso deixam de
arrastar consigo multidões enormes de inconscientes que nunca souberam nem
sabem o que querem. Ainda na Sexta-feira à tarde quando vinha do escritório
estive mais de meia hora dentro dum autocarro com o trânsito interrompido à
espera que passasse uma macacada dessas, que é o que mais se vê agora quase
todos os dias em Lisboa. Julgo que se está a preparar o caminho para um regime
de violência pior do que o Fascismo deposto”.
Palavras claras e lúcidas de um homem de
honra, que não sofre levemente a leviandade e a vileza desencadeadas
actualmente, em detrimento dos mais nobres ideais humanos: o respeito por si
próprio e pelos outros, o respeito pela bandeira do seu país.
“EXPERIÊNCIA”
in “Cravos Roxos- Croniquetas
verde-rubras”, 1980
Domingo
de sol em Lourenço Marques, 28 de Abril de 1974, três dias já do regime
democrático implantado em 25. Em Portugal gritava-se com euforia, nas colónias
vivia-se com o pavor do amanhã que chegou rapidamente. Também se gritava muito,
é certo, e escrevia-se. E faziam-se discursos inflamados. E punha-se a nu
anteriores fraquezas, como por exemplo a do sujeito que anteriormente explorava
pretos e posteriormente, cheio de solicitude, alardeou ter estado num congresso
como representante de Moçambique perante a bandeira da Frelimo hasteada.
Logo
o facto provocou indignado movimento de protesto contra a traição e desse
movimento nasceu a FICO (Frente Independente da Civilização Ocidental), que
organizou uma manifestação em frente da Câmara Municipal, nesse Domingo de sol
de 28 de Abril de 1974.
Eu
também fui à manifestação – a essa e à do Rádio Clube, em Setembro – para
garantir a minha firme decisão de continuar a defender a civilização ocidental
na África, coisa que já fazia há muitos anos. Tinham-me dito que aquilo era
Portugal, o que eu sempre cri, tratando de colaborar na manutenção de um
Portugal dilatado e rico.
Por
isso concordei com a designação de “traidor” atribuída ao tal sujeito
anteriormente explorador e posteriormente desejando redimir-se. De facto o 25
de Abril fora todo ele um movimento de traição aos princípios que aprendíamos
todos dantes – alunos, soldados, funcionários, burgueses e parasitas – e que
passámos a ignorar depois, até mesmo os parasitas.
Entretanto,
na manifestação da FICO, falou-se muito, falou-se bem, ainda dentro do velhos
esquemas que se provou mais tarde serem abjectos e despidos de valor
significativo. Também se cantou a Portuguesa, que largamente se demonstraria
ser despida do mesmo valor. Mas eu não cantei. Chorei, pela primeira vez, ao
ouvir o hino nacional, sentindo a desagregação em processo na pátria dos
navegadores ousados que Camões glorificara.
Voltei
para casa mais firme, mais crente de que as forças ordeiras conseguiriam
segurar ainda o império em vias de dissolução. O general Costa Gomes falara, de
resto, em Angola, pouco antes, e prometera um processo elegante de
autodeterminação antes da independência a longo prazo. O general Costa Gomes
também aprendera como eu os vastos limites antigos da sua pátria, não vinha a
Angola gastar tanto dinheiro na viagem para fazer promessas vãs. Por isso eu
estava alegre e confiante e disposta a continuar a colaborar na construção do
país.
Além
disso sabia por ouvir dizer – que a exploração por mim exercida sobre os pretos
não chegou para vir cá verificar isso – que desde a guerra das colónias
Portugal enriquecera muito, fizera muitos prédios e desenvolvera muitas
indústrias. Não me passava pela cabeça que o exército não quisesse mais fazer
casas aqui. Nós lá é que vivíamos com muitas falhas, por falta dos boletins de
importação. Mas quando se está em guerra – sobretudo se essa guerra é ajudada a
manter pelos povos defensores da paz – vive-se com sacrifícios na esperança
dessa paz oferecida pelos povos seus defensores.
Grande
foi, pois, a minha surpresa quando, ao chegar a casa com a família, cheios de
contentamento por colaborarmos num movimento generoso – e que se provou mais
tarde ser traidor e de bandoleiros – recebi um telefonema da família em Lisboa.
Nós tínhamos que vir e já, não havia tempo a perder, fala a irmã e o cunhado,
chora a mãe, suplica o pai. Eles previam a desagregação, conheciam da política
e dos seus fautores, não iam em poesias nem em credulidades ingénuas.
-
Oh papá! Mas não ouviste o general Costa Gomes?
E
o meu experiente pai, com o seu jeito repentista tão característico:
“-
Pois ouvi, minha filha, pois ouvi! Se eu até já ouvi o general Gomes da Costa!”
“MÉDITONS
LÀ-DESSUS”
in “Cravos Roxos- Croniquetas
verde-rubras”, 1981
Setenta e quatro anos. De curta reforma,
após longos anos de trabalho no Estado, emprega-se num escritório, sem o que
lhe restaria o recurso da esmola alheia.
No
escritório, de maioria silenciosa e inerte, três ou quatro indivíduos
sobressaem ultimamente, fazendo propostas e insinuações, difundindo as luzes de
um saber recente e oportunista.
Mas
o velho de setenta e quatro anos nada tem de inerte. Contra a passividade
geral, eleva o seu tom de voz perante o indivíduo que o quer catequizar:
-
Eu sei, senhor X, que muitos dos comunistas actuais recebem bom dinheiro para
politizar os outros. Mas a mim ninguém me paga para ouvir. Não estou
interessado em ouvir, senhor X.
Doutra
vez enervou-se mais. Era um comunista jovem e indeciso, vogando ao sabor da
onda, arrogante se o partido comunista cometia desacatos, sintoma de uma
influência crescente, timorato se o partido comunista era aparentemente
derrotado por um movimento contra-revolucionário. Os desordeiros chamavam
novamente ao poder o despedido Vasco Gonçalves. E o jovem indeciso falava com
entusiasmo provocante no seu Vasco.
-
Homem, se quer o Vasco, vá ter com ele, deixe-me em paz, preciso de trabalhar.
E
já fora de portas, ante o espanto mudo dos colegas, gritava exaltado:
-
Vá p’r’ó Vasco! Vá p’r’ó Vasco!
Um
velho de setenta e quatro anos com a coragem precisa para dizer não. Um país
inteiro sem coragem para isso. “Méditons là-dessus”!
REQUIEM POR UM HOMEM - 1979
In “Anuário -
Memórias Soltas”, 1999
Na
véspera da tua morte tinhas apresentado uma disposição feliz que nos encheu de
esperança.
Estavas
rodeado pela família – a tua família mais chegada que vivera com aflição toda a
tua doença, e a família distante que viera e admirava em ti o homem probo que
sempre foras.
Contaste
uma anedota pouco convencional, para minimizares assim o teu passamento e nos
fazeres rir, e rimos para te mostrarmos a nossa alegria porque continuavas vivo
e aparentemente a melhorar.
Mas
quando disseste a canção do festival de então
- “Sobe, sobe, balão sobe, vai dizer àquela estrela que me deixe cá
ficar” – eu voltei as costas à cama e solucei silenciosamente e
desamparadamente o irreparável que pressentia.
Não
ignoravas a gravidade do teu mal, mas nunca o confessaste, porque sabias do
nosso terror de te perdermos e porque quiseste deixar-nos a imagem de uma
aceitação serena desse inevitável absurdo que preside à vida humana.
Mesmo
quando te levámos directamente do Hospital ao Instituto de Oncologia e te
trouxemos para casa para o teu último almoço connosco – almoço de lágrimas disfarçadas
em arremedos de ânimo a que a nossa Mãe ajudou, cantando para nos fazer sorrir,
a canção açoreana
“Eu
fui de Lisboa a Sintra
A casa da ti’Jacinta
Para
fazer uns calções
A
pobre da criatura
Esqueceu-se
da abertura
Para
as minhas precisões” -
tu, cheio de
dores e fraquinho, deras-nos a bênção da tua presença delicada de reserva e
pudor na expansão do teu sofrer e do receio do fim.
Todos
os dias te íamos ver ao Hospital, e admirávamos a forma como reagias ao
tratamento aí concedido, vibrando contigo na indignação impotente contra a
desumanidade velhaca e lorpa das empregadas da limpeza.
Para
elas eras o “avozinho”, o que me causava um asco intolerável contra a
despersonalização grosseira a que a doença te prostrara, dentro de um meio
feito, tantas vezes, de prepotência alvar, ou de uma familiaridade pouco
esclarecida.
Como
não te levavam a comida à cama, tinhas que te deslocar à sala de jantar, onde
as criadas, pressurosas de se libertar do esfregão, iniciavam a arrumação da
sala, sem atenderem à lentidão com que comias. E no dia em que colocaram as
cadeiras em cima da mesa em que almoçavas, levantaste-te indignado, e saíste
sem comer, provavelmente seguido da hilaridade astuta das matronas.
E
nós, revoltadas, nada podíamos contra a carência total de respeito humano, numa
instituição hospitalar manipulada por uma escória ignara que, ante a
indiferença de médicos, enfermeiras e dirigentes, zelava pelo seu prestígio,
superlativando o brilho espelhante dos corredores, em detrimento de um proceder
mais atento para com os seres diminuídos pelo sofrimento ou pela velhice inerte
e que dessa instituição dependiam.
Mas
tu, velho e doente, meu pai, não te calaste. E um dia em que a empregada te fez
erguer da cama para maior eficácia e comodidade de limpeza, depois de um
protesto inútil, ergueste, no corredor, um alarido que chamou outros doentes
para junto de ti: eram inadmissíveis tão toscos processos de manejo,
inaceitável a total ausência de atenção e respeito perante a doença.
Um
dos doentes, que receava pelo teu coração gasto, acudiu apaziguador,
lembrando-te de que essas operárias não teriam, provavelmente, outra
alternativa de colocação.
Mas
a tua resposta lúcida e ainda vibrante pela revolta, de um homem que fora
sempre atencioso e competente no seu trabalho e toda a vida se orientara pelos
princípios da rectidão sem conivência, ressoou pelos corredores do Hospital,
até junto das enfermeiras, cobardemente encolhidas no seu canto, sem ousar
interferir, cientes da justeza da tua indignação:
“-
Não têm outra colocação? Que vão para o Alentejo, para a reforma agrária,
tratar dos porcos!...”
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