De Fradique Mendes…
A indignação de MEC a respeito da pronúncia abandalhada ou pretensiosa da língua americana trouxe-me à lembrança a conhecida “Carta de Fradique Mendes a Madame S”, em “A Correspondência de Fradique Mendes, IV” (que felizmente a Internet me permite transcrever sem custo, no que lhe fico grata pelas páginas memoráveis queirosianas a que nos dá acesso). Coloco-a, pois, no fim, no prazer de uma escrita que alia sensatez, saber e elegância expressiva, pese embora uma certa afectação maneirista, de altivez patriótica ou de bom senso apenas, repito, já que dificilmente um estrageiro consegue reproduzir a fonética dos naturais de um país, a menos que ali esteja enraizado de longa data. Não quero, com essas magníficas páginas de Eça, contestar os considerando de MEC, a respeito dessa deturpação que a sua sensibilidade de expert na língua inglesa captou, deturpação que em nós é fruto apenas de pedantismo e de saloiice ignara, de quem igualmente deturpa constantemente a sua própria língua, indiferente ao respeito que ela nos merece a todos. Mas, sim, leiamos também Eça, e sempre Eça, “falemos nobremente mal, patrioticamente mal, as línguas dos outros!”, como escreveu “Fradique”. Aqui apenas acrescentaria – mas aprendamos a falar e a escrever patrioticamente bem a nossa língua, Senhores. Quanto a agacharmo-nos, apenas o façamos para pedir ovos no estrangeiro, como o fazia a tia de Fradique, em superior destaque representativo, à falta de expressão linguística adequada...
OPINIÃO
Lil’
monkeys lusos
Em 2020 a pronúncia portuguesa da
língua inglesa parece uma declaração de ódio à pronúncia americana.
MIGUEL ESTEVES
CARDOSO
PÚBLICO, 20 de Novembro de 2020
Sendo
admirável que tantos jovens falem fluentemente inglês é pena que a pronúncia
seja tão americana. Nos Estados
Unidos da América são tantas as pronúncias encantadoras que é impossível
preferir só uma. O horror é quando chega às nossas bocas onde a língua se
arrasta e enrola como se estivéssemos a fazer pouco dos americanos.
Em
2020 a pronúncia portuguesa da língua inglesa parece uma declaração de ódio à
pronúncia americana. É um ódio acústico que não deve corresponder a qualquer
inimizade - e por isso mesmo é mais aberrante.
Quem
diria que seria a Internet a ensinar os portugueses a falar inglês? E, para
mais, em curtos vídeo-cliques, que tanto contribuem para o aprofundamento
cultural que se quer.
Noto
também, nas versões portuguesas, as inflexões trocistas e sarcásticas em que os
americanos são especialistas. Só que os portugueses obviamente não
conseguem copiar as subtilezas, as modulações e os distanciamentos sociais do
grande multiverso dos EUA e o resultado é uma apropriação grosseira que parece
reduzir-se, mais uma vez, a grunhidos armados em bons - quase um macaquear
expedito.
É
pena que os franceses, italianos e restantes europeus estejam tão fracamente
representados na Internet. É altura de tornar obrigatória a aprendizagem do
francês e do italiano nas escolas (e posteriormente do castelhano e alemão),
para ver se os jovens portugueses ganham mais mundo, mais referências, mais
escolhas, mais alegria de viver.
Os franceses, italianos, gregos e
espanhóis sabem viver. Os portugueses ainda vão sabendo mas essa graça e esse
jeito perdem-se com facilidade e levam gerações inteiras a recuperar.
Não
é macaqueando o à-vontade passivo-agressivo e conscientemente fake dos
americanos que vamos lá
TÓPICOS OPINIÃO
INGLÊS LÍNGUAS INTERNET
COMENTÁRIOS
ATV
INICIANTE: Estou
a sorrir. A sorrir porque na realidade já não sei que inglês é que falo. O
certo é que aprendi British, passei mais de 11 anos nos EUA e depois dois em
Inglaterra... Nas conferências, com o nervoso de fazer a coisa bem feita, sei
que deslizo para o British (já ouvi bocas sobre não saberem que era inglesa),
mas no dia-a-dia, não faço ideia... dou por mim a usar as duas pronúncias, os
diversos jargões e expressões. Escrevo em British ou American English consoante
a revista a publicar... valham-nos os correctores automáticos que nos permitem
não cometer honorable/honourable mistakes! Mas também sou culpada de não
conseguir ter um jargão profissional em português para poder usar com os
alunos, pelo que são aulas em versão erasmiana de cidadã do mundo... mas o meu
tema é lixado, confesso.
Ceu
Mateus INICIANTE: Sim, porque o domínio do português pelos ingleses é
admirável. Quer ao nível do domínio da pronúncia quer das próprias expressões
idiomáticas. Os americanos tb não estão mal. Mas, claro, não ao nível dos
ingleses...
Fugo
EXPERIENTE: Pois,
é no que dá não termos uma cultura activa e visível. Procuramos identidades
noutros lugares. A internet vem a jeito para a aculturação. Como por cá a
maioria de tudo é norte-americano, é esse modus vivendi de pacotilha que
absorvemos sem qualquer tipo de filtro. Nos anos setenta e oitenta ainda tínhamos
filmes italianos e franceses nos cinemas. Agora aprendemos pela net e apenas o
que queremos ver e ouvir, imitando sem "tutorial". Os governos têm-nos
dado miséria ao nível do Ministério da Cultura. Assim, esquecemo-nos que existe
vida para além do "fast and furious".
martins.ruijorge
MODERADOR: Brilhante,
caro MEC. Só acrescentava o hábito absolutamente irritante de entremear
expressões americanas no meio das conversas e designações inglesas para coisas
que, até há meia dúzia de anos tinham equivalente português. Já não vou beber
um copo ao bar da praia, vou a um sunset. Já me torno religioso nos enrolanços
com um sonoro oh, my god e até a praguejar já uso a F word. Desabafos. Estou a
ficar velho.
Sandra.
MODERADOR: Estás
é a ficar burguês. :-)
martins.ruijorge
MODERADOR: Se
calhar é isso, Sandra :-))
nunos INICIANTE: Em cheio. Este
texto devia ser dado nas escolas.
In “A Correspondência de Fradique
Mendes” (< Internet)
A
MADAME S. Paris, Fevereiro. Minha Cara Amiga. — O espanhol chama-se Dom Ramon Covarubia, mora na
Passage Saulnier, 12, e como é aragonês, e portanto sóbrio, creio que com dez
francos por lição se contentará amplamente. Mas se seu filho já sabe o castelhano
necessário para entender os Romanceros, o D. Quixote, alguns dos
«Picarescos», vinte páginas de Quevedo, duas comédias de Lope de Vega, um ou
outro romance de Galdós, que é tudo quanto basta ler na literatura de Espanha,
— para que deseja a minha sensata amiga que ele pronuncie esse
castelhano que sabe com o acento, o sabor, e o sal dum madrileno nascido nas
veras pedras da Calle-Mayor? Vai assim o
doce Raul desperdiçar o tempo, que a Sociedade lhe marcou para adquirir
ideias e noções (e a Sociedade a um rapaz da sua fortuna, do seu nome e da
sua beleza, apenas concede, para esse abastecimento intelectual, sete anos, dos
onze aos dezoito) — em quê? No luxo de apurar até a um requinte
superfino, e supérfluo, o mero instrumento de adquirir noções e ideias. Porque as línguas, minha boa amiga,
são apenas instrumentos do saber — como
instrumentos de lavoura. Consumir energia e vida na aprendizagem de as
pronunciar tão genuína e puramente, que pareça que se nasceu dentro de cada uma
delas, e que, por meio de cada uma, se pediu o primeiro pão e água da vida — é
fazer como o lavrador, que em vez de se contentar, para cavar a terra, com um
ferro simples encabado num pau simples, se aplicasse, durante os meses em que a
horta tem de ser trabalhada, a embutir emblemas no ferro e esculpir flores e
folhagens ao comprido do Pau. Com um hortelão assim, tão miudamente ocupado
em alindar e requintar a enxada, como estariam agora, minha senhora, os seus
pomares da Touraine? Um homem só
deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua da sua terra: — todas as
outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento chato e falso
que denuncia logo o estrangeiro. Na
língua verdadeiramente reside a nacionalidade; —
e quem for possuindo com crescente perfeição os idiomas da Europa, vai
gradualmente sofrendo uma desnacionalização. Não há já para ele o
especial e exclusivo encanto da fala materna, com as suas influências
afectivas, que o envolvem, o isolam das outras raças; e o cosmopolitismo do
Verbo irremediavelmente lhe dá o cosmopolitismo do carácter. Por isso o
poliglota nunca é patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe
no organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir. O seu
patriotismo desaparece, diluído em estrangeirismo. Rue de Rivoli, Calle
d’Alcalá, Regent Street, Willelm Strasse — que lhe importa? Todas são ruas,
de pedra ou de macadame. Em todas a fala ambiente lhe oferece um elemento
natural e congénere, onde o seu espírito se move livremente, espontaneamente,
sem hesitações, sem atritos. E como pelo Verbo, que é o instrumento
essencial da fusão humana, se pode fundir com todas — em todas sente e aceita
uma Pátria. Por outro lado, o esforço contínuo de um homem para
se exprimir, com genuína e exacta propriedade de construção e de acento, em
idiomas estranhos — isto é, o esforço para se confundir com gentes estranhas no
que elas têm de essencialmente característico, o Verbo — apaga nele toda a
individualidade nativa. Ao fim
de anos esse habilidoso, que chegou a falar absolutamente bem outras línguas
além da sua, perdeu toda a originalidade de espírito — porque as suas ideias,
forçosamente, devem ter a natureza, incaracterística e neutra, que lhes permita
serem indiferentemente adaptadas às línguas mais opostas em carácter e génio.
Devem, de facto, ser como aqueles «corpos de pobre» de que tão tristemente
fala o povo — «que cabem bem na roupa de toda a gente». Além
disso, o propósito de pronunciar com perfeição línguas estrangeiras, constitui
uma lamentável sabujice para com o estrangeiro.
Há aí, diante dele, como o desejo servil de não sermos nós mesmos, de nos
fundirmos nele, no que ele tem de mais seu, de mais próprio, o Vocábulo. Ora
isto é uma abdicação de dignidade nacional. Não, minha senhora! Falemos
nobremente mal, patrioticamente mal, as línguas dos outros! Mesmo porque aos estrangeiros o poliglota só inspira
desconfiança, como ser que não tem raízes, nem lar estável — ser que rola
através das nacionalidades alheias, sucessivamente se disfarça nelas, e tenta
uma instalação de vida em todas, porque não é tolerado por nenhuma. Com efeito, se a minha amiga percorrer a Gazeta dos
Tribunais, verá que o perfeito poliglotismo é um instrumento de alta
escroquerie. E aqui está
como, levado pelo diletantismo das ideias, em vez dum endereço eu lhe
forneço um tratado!... Que a
minha garrulice ao menos a faça sorrir, pensar, e poupar ao nosso Raul o
trabalho medonho de pronunciar Viva la Gracia! e Benditos sean tus ojos!
exactissimamente como se vivesse a uma esquina da Puerta del Sol, corn uma capa
de bandas de veludo, chupando o cigarro de Lazarillo. Isto todavia não impede que se utilizem os serviços
de D. Ramon. Ele, além de Zorrilista, é guitarrista; e pode substituir as
lições na língua de Quevedo, por lições na guitarra de Alma viva. O seu lindo
Raul ganhará ainda assim uma nova faculdade de exprimir — a faculdade de
exprimir emoções por meio de cordas de arame. E este dom é excelente! Convém
mais na mocidade, e mesmo na velhice, saber, por meio das quatro cordas duma
viola, desafogar a alma das coisas confusas e sem nome que nela tumultuam, do
que poder, através das estalagens do Alundo, reclamar com perfeição o pão e o
queijo — em sueco, holandês, grego, búlgaro e polaco. E será realmente
indispensável mesmo para prover, através do Mundo , estas necessidades vitais
de estômago e alma — o trilhar, durante anos, pela mão dura dos mestres, «os
descampados e atoleiros das gramáticas e pronúncias», como dizia o velho Milton?
Eu tive uma admirável tia que falava
unicamente o português (ou antes o minhoto) e que percorreu toda a Europa com
desafogo e conforto. Essa senhora, risonha mas dispéptica, comia simplesmente
ovos — que só conhecia e só compreendia sob o seu nome nacional e vernáculo de ovos. Para ela huevos, oeufs, eggs, das ei, eram sons da
Natureza bruta, pouco diferençáveis do coaxar das rãs, ou dum estalar de
madeira. Pois quando em Londres, em Berlim, em Paris, em Moscovo, desejava os
seus ovos — esta expedita senhora reclamava o fâmulo do Hotel, cravava nele os
olhos agudos e bem explicados, agachava-se gravemente sobre o tapete,
imitava com o rebolar lento das saias tufadas uma galinha no choco, e gritava
qui-qui-ri-qui! có-có-ri-qui! có-ró-có-có. Nunca, em cidade ou religião
inteligente do Universo, minha tia deixou de comer os seus ovos — e
superiormente frescos! Beijo as suas mãos, benévola amiga. — FRADIQUE.
2 comentários:
O que Eça diz é: para não fazermos figuras tristes como a sua tia, devemos falar línguas. Sabia?
Sr. Guilherme Figueiredo, leu o que disse Eça? Creio que interpretou erroneamente.
Volto a transcrever:
«Um homem só deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua da sua terra: — todas as outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro. Na língua verdadeiramente reside a nacionalidade; — e quem for possuindo com crescente perfeição os idiomas da Europa, vai gradualmente sofrendo uma desnacionalização. Não há já para ele o especial e exclusivo encanto da fala materna, com as suas influências afectivas, que o envolvem, o isolam das outras raças; e o cosmopolitismo do Verbo irremediavelmente lhe dá o cosmopolitismo do carácter. Por isso o poliglota nunca é patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe no organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir. O seu patriotismo desaparece, diluído em estrangeirismo.»
Não significa que concordemos com Eça, ora essa! Faz o senhor muito bem em falar muitas línguas, por via do cosmopolitismo. E do preciosismo também. Só posso elogiar. E invejar. Berta Brás
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