Ó quão afastados estamos dos pruridos orgulhosos
de outrora, como esse que traduz António
Ferreira na sua carta a Pêro de Andrade Caminha - que graças à Internet transcrevo sem esforço - criticando-o
por lançar os seus escritos em espanhol em vez de usar a língua pátria, que tanto
poderia enriquecer.
"Carta a Pêro de Andrade Caminha"
Ó quantos
quanto mor fama ganharam
Coa boa pena, que outros com a espada!
Quanto mais ricas estátuas cá deixaram!
Quanto foi mais sentida, e mais chorada
A morte do alto Homero, por seu canto,
Que a tua, Aquiles, que ele fez honrada!
Pois com quanta razão m 'eu mais espanto
Do que em ti vejo, tanto ver perdido
Sinto o que me
assi move a mágoa, e espanto.
Mostraste-te tègora tão esquecido,
Meu Andrade,
da terra, em que nasceste,
Como se nela não foras nascido.
Esses teus
doces versos, com que ergueste
Teu claro nome tanto, e que inda erguer
Mais se verá, a estranha gente os deste.
Porque o com que podias nobrecer
Tua terra e
tua língua lho roubaste,
Por, ires
outra línqua enriquecer?
Cuida melhor
que, quanto mais honraste
E em mais tiveste essa língua estrangeira,
Tanto a esta tua ingrato te mostraste.
Volve pois, volve, Andrade, da carreira,
Que errada levas (com tua paz o digo):
Alcançarás tua glória verdadeira.
Té quando
contra nós, contra ti imigo
Te mostrarás? Obrigue-te a razão,
Que eu, como
posso, a tua sombra sigo.
As mesmas Musas mal te julgarão,
Serás em ódio a nós teus naturais,
Pois, cruel. nos roubas o que em ti nos dão.
Sejam à boa tenção obras iguais,
E a boa tenção e obra à pátria sirva:
Demos a quem
nos deu, e devemos mais.
Mas tu farás
que os que a mal julgaram,
Floreça, fale, cante, ouça-se e viva
A Portuguesa língua! E já onde for
Senhora vá de si, soberba e altiva.
Se téqui esteve baixa e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram:
Esquecimento nosso, e desamor.
E inda as estranhas línguas mais desejam,
Confessem cedo ant’ela quanto erraram.
E os que
despois de nós vierem, vejam
Quanto se trabalhou por seu proveito,
Por que eles
pera os outros assi sejam.
Se me enganei, se tive mau respeito,
Andrade. tu o julga; mas espero
De te ser este meu desejo aceito.
E, enquanto
mais não peço, isto só quero.
Não, não se trata de escrever em língua castelhana, o que era comum, na época, pelos portugueses, - sem
reciprocidade, de resto, da parte espanhola, naqueles alvores do renascimento e
até depois disso. A nossa natureza doce e mansa nos leva, nessas coisas de
cortesia para com o superior – em riqueza, em terreno, em nomeada – a sermos os
primeiros a ceder, a dobrar os joelhos ou a cerviz, a cada passo o aplicamos, e
ainda agora, distribuindo sorrisos pelas Europas, et pour cause.
Mas na questão posta por Nuno Pacheco sobre a língua desportuguesada, trata-se agora de pura aplicação de um ideal democrático, chamando o povo a participar na reconstrução da língua portuguesa, no que toca ao continente, e no caso dos neologismos em barda dos povos que deixámos, ficamos reconhecidos porque um dia a nossa marca linguística estará lá, bem visível, embora nós já nem estaremos cá para ver, mas isso nos regozija, de antemão, mais do que um desenvolvimento económico que nos retire da penúria e da mão estendida.
OPINIÃO
Louvor e explicação da “língua desportuguesa” de
Ondjaki
É o barro da escrita, moldado a partir
do barro ainda mais indomável da fala, que vai aos poucos enriquecendo os
dicionários.
PÚBLICO; 17
de Dezembro de 2020
Numa
entrevista a propósito do seu mais recente livro, o escritor angolano Ondjaki
disse a Isabel Coutinho (Ípsilon, 11/12) que o facto de o livro não trazer glossário se
devia a estar escrito em “língua desportuguesa”, “a língua de
liberdade estética”, explicando-se depois assim: “Não creio que deva haver
uma língua desportuguesa nos dicionários para ensinar às crianças, não é disso
que falo, não é aí que eu opero. Eu não opero com língua de dicionário, eu
opero com língua de barro.” E dava como exemplos de “línguas desportuguesas”
os brasileiros Manoel de Barros e
Guimarães Rosa, os
moçambicanos Mia Couto e Luís
Bernardo Honwana, os
angolanos Luandino Vieira e Manuel
Rui e o guineense Abdulai Silla.
Logo
no título, Ondjaki parece dizer
ao que vem: O Livro do Deslembramento,
como que cruzando a sonoridade de “deslumbramento” com o acto de esquecer.
Mas para quem julgue que se trata de neologismo, convém dizer que deslembrado,
deslembrança, deslembrar ou até mesmo deslembrativo já constam dos
dicionários, justificando plenamente deslembramento. Tal como consta o desnascer
usado por José Mário Branco
no FMI ou há-de constar um dia o desconseguir que Mia Couto popularizou na escrita, mas foi buscar à oralidade
quotidiana.
A “língua desportuguesa”, na acepção
que lhe é dada por Ondjaki, é praticada há décadas, senão mesmo há séculos.
Porque tem sido a liberdade estética, aliada às tradições e também às inovações
culturais, a alimentar os dicionários e não o contrário; é o barro da escrita,
moldado a partir do barro (esse ainda mais indomável) da fala, que vai aos
poucos enriquecendo os volumes que registam a evolução da língua na sua forma
oral (pela fonética) e escrita. Que isso se deva sobretudo à literatura e à
poesia também não é surpresa. Mas os regionalismos, igualmente caldeados num
saber antigo, contribuem para tal enriquecimento.
Por
exemplo, só para recorrer a palavras começadas por “des”: Desgargoleirado
(por desgargolado, com decote ou colarinho largo), no Dicionário do
Falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves, 1996; Desencodear (tirar a côdea), no Dicionário
de Palavras Soltas do Povo Transmontano, de Cidália
Martins, José Pires e Mário Sacramento, 2017; Desbussolado
(por desnorteado), no Dicionário de Língua Baianaêsa, de Luciano Jatobá, 2004; ou até, numa língua que é filha directa da língua
portuguesa, Desmagâ (por esmagar, esmigalhar), no crioulo
cabo-verdiano, segundo o Léxico do Dialecto Crioulo, de Armando Napoleão Fernandes, 1889-1969.
Mas
deslavrar, deslaiar, desleigar, deslimar, desmaginar, desnevoar, desnocar,
desnoutar, despoer, despolir, desrefolhar, desrisonhar, desvizinhar, quem as inventou? Os dicionários não dizem,
mas estão todas lá. Algumas há anos, outras há décadas. E todas elas
poderiam caber numa qualquer “língua desportuguesa”, porque esta, nascendo do
barro da palavra e da fala, será portuguesíssima. Por curiosidade, diga-se
que o volumoso dicionário da Sociedade de Língua Portuguesa dedica 154 páginas só às palavras começadas por
“des” (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro
Machado, 1981, Tomo IV, págs, 62 a 216)
e lá, além das já citadas, estão centenas de palavras que nos parecerão…
“desportuguesas”.
É
claro que ficcionistas e poetas têm inventado palavras, que os dicionários
acolhem ou não, como o inutensílio de
Manoel de Barros (“O poema
é antes de tudo um inutensílio”, Poesia Completa, 2010, pág. 182) ou as bem-pensânsias de Alexandre O’Neill (Poesias Completas, 2000, pág. 195). Mas é bom
lembrar que, antes deles, muito antes deles, são sobretudo as crianças que mais palavras inventam sem as registarem, pelo
simples gozo da descoberta, trocando-lhes letras e sentidos, virando palavras
do avesso como quem revira brinquedos.
Ao
conjunto de tudo isto, juntando as novidades que nos traz a liberdade estética
às heranças ancestrais da etimologia, pode bem chamar-se língua portuguesa, com
as suas variantes culturais, lexicais e até ortográficas, porque os
“desportuguesamentos” que dela derivam a enriquecem. Ao
contrário da propalada e nunca conseguida (porque impossível e inútil)
unificação ortográfica, teimosamente imposta por um acordo que nunca o foi nem
será.
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