A realidade ultrapassa a ficção. Não
mais as histórias de encantar da infância, ou mesmo os mitos clássicos que
desde sempre povoaram o universo da criatividade, em fuga às asperezas da vida
real. Esta hoje, em termos de criatividade irreal, está na realidade
esplendorosa da criação científica, das descobertas que nos deixam cada vez
mais estarrecidos, mais de boca aberta pelos milagres atingidos pela mente
humana. Não, não precisamos mais de leitura, vamos hoje de surpresa em
surpresa, num sem descanso imparável de atordoamento estarrecido, envolvidos
por rede invisível de imediatismo na comunicação, sem paralelo. Quais botas de
sete léguas? Quem mais precisa da ficção de encantamento miraculoso de outrora,
se hoje somos os protagonistas de um universo em que a natureza é a bruxa - ou
deusa, ou fada – má, animada de intenção malévola, num realismo “irreal“ de
perfídia, a semear o caos?
Não nos bastava o coronavírus de
escândalo que nos ataca há um ano, outro se lhe sucede, e outro e outro,
talvez, transformando-nos em figuras de um mundo não mais imaginário, “protegido?” por ridículas máscaras de
pesadelo. E as filas infindáveis de camiões esperando para andar, na estrada,
ou dos aeroportos parados, num Natal de violência despótica, de “fraternidade”
gritada e bem cínica…
O que se sabe sobre a variante do coronavírus
encontrada em Inglaterra
Os primeiros genomas disponíveis em
que se descreve esta variante são de 20 de Setembro e pertencem a amostra no
condado de Kent, no Sudeste de Inglaterra. Há 14 mutações genéticas definidoras
desta variante.
PÚBLICO, 21 de
Dezembro de 2020
INSTITUTO
WISTAR
Nos últimos dias, assistimos a uma
escalada de atenção dada a uma variante do coronavírus SARS-CoV-2 conhecida
como VUI–202012/01 (que significa Variante Sob Investigação, no ano de 2020, do
mês 12, da variante 01). Embora
não pareça ser mais perigosa ao nível da doença e da mortalidade, o Governo
britânico disse que parece estar a espalhar-se de forma mais rápida do que
seria de esperar em Londres e no Sudeste de Inglaterra, podendo mesmo aumentar
o Rt (índice de contágio) em 0,4 ou mais e ser 70% mais transmissível.
Essa variante levou vários países a impor restrições a viagens e
voos com o Reino Unido. Mas
que variante é esta? O que a
diferencia de tantas outras para estarmos a falar tanto dela? E pode ter
influência na eficácia das vacinas?
O que é uma variante genética? Uma variante ocorre quando um vírus sofreu
mutações ou combinações de mutações genéticas que o podem levar a adquirir
algumas características diferentes. “Neste momento, há quase 1000 variantes
descritas deste vírus, mas nem todas estão associadas a alguma coisa especial,
como na sua função ou patogenicidade”, refere o virologista Celso Cunha, salientando que a definição de variante não é muito
consensual.
O
investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova
de Lisboa explica que, quando somos infectados, o vírus a começa a
multiplicar-se dentro das células e produz centenas de cópias que vão infectar
outras células. Dentro de
nós, quando ficamos doentes, acabamos por ter em simultâneo milhões de
partículas virais e elas são diferentes. “Quando somos infectados, temos
várias variantes do vírus dentro de nós”, nota o virologista. “Depois,
algumas podem adquirir capacidades que as tornam mais favoráveis à sua
replicação no nosso organismo.”
Já
agora, as mutações genéticas ocorrem de forma aleatória. Estas alterações estão
relacionadas com a mutação natural do vírus durante o processo infeccioso à
medida que vai passando de pessoa para pessoa. Estas alterações genéticas
podem ser vantajosas, neutras ou prejudiciais para o vírus.
O que sabemos sobre a variante VUI–202012/01?
Esta variante do SARS-CoV-2 tem cerca
de 20 mutações em comparação com o primeiro genoma sequenciado do
vírus. Dessas, 14 são consideradas
definidoras da VUI–202012/01 (ou seja, aparecem exclusivamente nesta
variante), incluindo sete na proteína da espícula, que é responsável pelo
vírus entrar nas células, indica ao PÚBLICO Lucy van Dorp,
geneticista do University College de Londres,
que estuda as mutações do SARS-CoV-2. A cientista refere que é com estas 14
que há maior preocupação, pois diferenciam esta variante de outras em
circulação. “Algumas dessas mutações já tinham sido observadas no
SARS-CoV-2 antes, mas não na combinação que vimos nesta variante.” Quanto ao número de mutações, considera: “Este é um
número relativamente grande de alterações se as compararmos com as muitas
variantes em circulação a nível global”.
Quando e onde surgiu a nova variante?
Não
se sabe bem quando e onde surgiu.
Aquilo que se sabe é que os primeiros genomas disponíveis em que se descreve
esta variante são de 20 de Setembro e pertencem a amostra no
condado de Kent, no
Sudeste de Inglaterra. “Até
agora, a maioria dos genomas virais foi verificada em amostras do Reino Unido,
mas também há casos na Dinamarca, nos Países Baixos, na Austrália e em Itália”,
indica Lucy van Dorp. A geneticista diz que o Reino Unido é o país que fez a
maior quantidade de sequenciação de genomas e que “é possível que esta variante
tenha uma distribuição geográfica mais ampla”.
O Instituto
Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, em Lisboa, disse no domingo ainda não ter identificado,
até ao momento, em Portugal qualquer caso desta variante.
É mais contagiosa?
Num
resumo de domingo do Grupo Consultivo de Ameaças de Vírus Respiratórios e
Emergentes (um órgão consultivo do Governo do Reino Unido), os especialistas
escreveram que tinham “uma confiança moderada” de que a variante demonstrava
um aumento substancial na transmissibilidade comparado com outras variantes,
refere o jornal britânico The Guardian.
Mesmo assim, acautelaram que os dados ainda são preliminares e
baseados em modelações.
Já
Lucy van Dorp diz ao PÚBLICO:
“Neste momento, não está totalmente confirmado que a variante é mais contagiosa
ou até que ponto o é.” A geneticista também realça os valores divulgados
pelo Grupo Consultivo de Ameaças de Vírus Respiratórios e Emergentes, que
sugerem que o ritmo de crescimento desta variante é entre 67% a 75% mais
elevado do que o de outras variantes. “Esperamos por pormenores de como
isto foi calculado. Até agora, existem várias pistas que sugerem que esta
variante requer um estudo aprofundado, uma delas é o aumento acentuado no
Reino Unido.”
Por
sua vez, Stuart Neil, professor de virologia no King’s College de Londres,
referiu ao The Guardian que “os
dados que se reuniram permitem dizer de forma coerente que a variante é mais
infecciosa ou que é capaz de se espalhar de forma mais eficaz”. Contudo,
assinala que “não há nenhuma confirmação laboratorial disso ou de qualquer
ideia da razão pela qual se está a espalhar depressa”.
Também
Celso Cunha refere que
os modelos matemáticos sugerem que se tornou mais transmissível e que existe
uma correlação entre o aumento da prevalência desta variante do Sul de
Inglaterra e o aumento do número de casos naquela zona. “Em Setembro eram
cerca 30% de casos associados a esta variante e agora são à volta de 60%.
Tornou-se a mais prevalente – daí dizerem que é mais transmissível porque
acabou por ser dominante naquele local”, diz o virologista. Para ser mais
transmissível pode haver vários factores associados, como do próprio vírus ou
do comportamento das pessoas. “Tem de se investigar”, recomenda.
É mais perigosa?
Até
agora, parece que não. O
director-geral da Saúde britânico, Chris Whitty, afirmou que, até à data, não
há provas de que esta variante altere a gravidade da doença, seja em termos de
mortalidade ou de gravidade dos casos de covid-19. Mas são necessários mais
estudos que o confirmem.
Celso
Cunha também refere que “aparentemente não” é mais perigosa: “A gravidade dos
sintomas das pessoas infectadas com esta variante é semelhante à das pessoas
infectadas com as outras variantes.”
Pode afectar a eficácia das vacinas?
“Neste
momento, não se sabe”, responde Lucy van Dorp. Contudo, a geneticista diz
que a expectativa é que as mutações não tornem as vacinas actuais significativamente menos
eficazes. “As vacinas estimulam uma ampla resposta dos anticorpos a
toda a proteína da espícula e apenas um pequeno grupo de mutações foram
observadas nesta região. Isto já está a ser testado”, esclarece. Mesmo assim, a
cientista avisa: “A longo prazo, é possível que as vacinas precisem de ser
actualizadas periodicamente para reflectir as variantes dominantes em
circulação, tal como acontece com o que se faz com a gripe”.
Celso
Cunha também diz que “é muito cedo para se falar” se a
variante pode afectar a eficácia das vacinas. “As vacinas que estão
a ser produzidas são dirigidas contra a proteína à superfície do vírus e nesta
variante foram descritas mutações associadas a essa proteína.” Também o
virologista avisa que é preciso estarmos atentos. Afinal o facto de
produzirmos anticorpos contra essa proteína não significa que esses anticorpos
consigam neutralizar a função da tal proteína, pois depende das regiões onde se
dirigem. “Apenas alguns [anticorpos] são capazes de neutralizar a função
dessa proteína ou impedir que se ligue a um receptor. Temos de estar atentos
para ver se não só se produzem anticorpos contra essa proteína como também se
continuam a ser neutralizantes na prevenção da doença.”
Por que é que se começou a falar tanto desta variante
agora?
A
14 de Dezembro, Matt Hancock, ministro da
Saúde britânico, disse que foi identificada no Reino Unido uma variante que autoridades
acreditavam que “poderá estar associada à disseminação mais rápida do vírus
no Sul da Inglaterra”. Isto aconteceu depois de anunciar que Londres e
partes do Sul da Inglaterra iriam entrar no nível mais severo de restrições.
Depois, a agência de saúde pública Public Health England e o consórcio de
sequenciação do vírus da covid-19 do Reino Unido vieram confirmá-lo.
Para
responder a esta questão, Tiago Correia, professor
de Saúde Internacional e investigador do Instituto de Higiene e Medicina
Tropical da Universidade Nova de Lisboa, começa por dizer que não põe em
causa a transmissibilidade desta variante. E enumera uma série de acções: esta
variante estava descrita desde Setembro; o primeiro-ministro britânico, Boris
Johnson, já tinha esta informação; tinha sido altamente criticado e
pressionado pelas autoridades científicas inglesas por ter permitido a abertura
do país no Natal e Inglaterra estava entre os países com maior
permissibilidade nos agrupamentos familiares; mesmo assim, o primeiro-ministro
manteve a sua posição; dias depois tudo parece ter mudado.
“Não
houve nenhuma evidência académica nova que tenha surgido durante esta semana
que explique esta subida de atenção”, assinala. O que aconteceu então? “O que
aconteceu foi uma pressão científica no espaço público e político para que
aquela decisão não fosse avante.” Portanto, para o investigador, esta escalada
de atenção “foi muito mais consequência de uma inabilidade política do que um
facto científico novo desconhecido até agora. Houve uma escala de atenção e
pânico que não acompanha a evidência científica.”
As restrições à entrada de passageiros vindos de
Inglaterra serão relevantes?
“São
pouco relevantes, porque se o vírus já está em circulação. Se já está descrito
desde Setembro e se já está identificado num conjunto de países, restringir os
voos vindos de Inglaterra parece-me pouco relevante”, considera Tiago Correia.
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