quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Uniformidade nos comentários


Desta vez, não há um comentário contrariante. Como que formando um todo em “hino” exaltador - dos espaços, das pessoas, das comidas… De pé atrás contra as desconsiderações de que são alvo – pela anedota sobre a inacção, pelo abandono dos projectos de reparações ou construções que se não fazem ou se eternizam, propostos pelo governo central - mas conscientes das coisas boas que têm – os espaços, as planuras, os sobreiros, os trigos, o pão alentejano - e o seu “cante”, que traduz bem esses jeitos cansados, pelas vozes que se sobrepõem como ondas sonoras repercutindo-se na lentidão de uma postura altiva e serena, muito do povo alentejano. O amor pelo Alentejo é notório, em todos os que comentam, como no magnífico texto de Carmem Garcia, sereno e lúcido e educadamente irónico ou reprovador.

Mas ouçamos “O meu Alentejo” de Luís Piçarra, com a sua maravilhosa voz de tenor, tão expressiva desse amor e saudade que todos aparentam sentir - bem diferente o descritivo do da subida para a nortenha Tormes, com os “espertos regatinhos” que “fugiam rindo com os seixos de entre as patas da égua e do burro”, em “A Cidade e as Serras”:

 

Abalei de Alentejo

Olhei para trás chorando

Alentejo da minha alma

Tão longe me vais ficando…

Quem quer viver no Alentejo?

Dizem os especialistas que é difícil fixar pessoas aqui. E nós acreditamos porque os números não mentem. Continuamos a ser uma região pobre, das mais pobres da Europa, e sempre que ouvimos falar em descentralização e investimento no interior rimos para dentro e pensamos “têm piada, estes moços de Lisboa”.

CARMEN GARCIA

PÚBLICO, 16 de Dezembro de 2020

"Temos azeite e cortiça. Mas também temos 22% da população em risco de pobreza ou exclusão social" DIOGO VENTURA

Somos Alentejanos. Aqui onde vivemos o mar é feito do trigo que, mais tarde, vai ser transformado no melhor pão do mundo. Gostamos de acompanhar esse pão com o queijo feito com o leite das nossas ovelhas ou com umas rodelas de linguiça assada (chouriço é uma coisa diferente e aqui ninguém os confunde). Empurramos com um copo de vinho, quase sempre tinto, para “desembaçar”. Temos azeite e cortiça. Mas também temos 22% da população em risco de pobreza ou exclusão social (dados do INE relativos a 2018).

E se é verdade que temos praias incríveis, um pôr-do-sol invejável e um céu estrelado que atrai turistas, também é verdade que quem aqui reside viu a A6, que liga a Marateca ao Caia e que passa por Vendas Novas, Montemor-o-Novo, Évora, Estremoz e Elvas, ficar de fora dos descontos às taxas de portagem que o Governo aprovou para o interior. Viajar de comboio também já foi melhor opção por estes lados, acreditem. E se estão a pensar “pois, mas vocês até têm um aeroporto em Beja” deixem-me responder-vos que não é por estarmos habituados a piadas sobre nós desde que nascemos que achamos graça a essa.

Ainda assim somos boa gente, povo pacífico com o cante no sangue e que responde no gerúndio à costumeira pergunta do “então, como é que isso vai?”. O nosso “vai-se andando” chega a ser poético. E por acaso é bom que, além de poético, seja literal. É que se não estivermos no mínimo “mais ou menos” as coisas não são fáceis para nós. Ao longo dos últimos anos os hospitais de Beja e Portalegre foram perdendo cada vez mais valências e o grande hospital central de Évora, apresentado com pompa e circunstância por José Sócrates em 2009 (ano, obviamente, de eleições legislativas), ainda não viu ser colocada a primeira pedra. Acho que já não há um único alentejano que, ao ouvir falar neste novo hospital, não encolha os ombros em resposta e solte um “só vendo” ao melhor estilo de S. Tomé.

Até as nossas crianças foram recentemente relegadas ao estatuto de portugueses de segunda com a conversão da urgência pediátrica de Évora em balcão de atendimento de pediatria. E esta aparentemente inofensiva mudança deixou três distritos sem a garantia legal de que, em casos graves, haverá na região um pediatra treinado em suporte avançado de vida para as receber.

Dizem os especialistas que é difícil fixar pessoas aqui. E nós acreditamos porque os números não mentem. Continuamos a ser uma região pobre, das mais pobres da Europa, e sempre que ouvimos falar em descentralização e investimento no interior rimos para dentro e pensamos “têm piada, estes moços de Lisboa”.Mas acreditar não significa compreender e muito menos aceitar.

Há uns dias chovia que Deus a dava e, no caminho para casa, apanhei a estrada cortada por um rebanho de ovelhas. Tirei uma fotografia e fiz a elementar piada do “mal começa a chuva começam os congestionamentos no trânsito”. Mas depois pensei nos milhares de pessoas que passam horas diárias em filas, que vivem num stress permanente e que não percebem como é para nós tão simples dizer que 20 quilómetros de distância são “já ali”.

E duvido que essas pessoas não gostassem de viver aqui, nas nossas casas pintadas de branco com barras azuis e amarelas, que não gostassem de passear nos nossos campos de papoilas, malmequeres e alecrim na Primavera, que não gostassem da Quinta-feira da Ascensão e do borrego de Páscoa no campo.

Alguém me quer mesmo fazer crer que é possível resistir à nossa sopa de tomate, às nossas açordas e às migas com carne de porco preto? E aos nossos doces? E tapete? Alguém no seu juízo perfeito, com os incentivos certos e com as oportunidades devidas, escolheria não viver aqui e perder a oportunidade de ouvir o canto das cigarras e de respirar todos os dias o melhor ar do mundo nas planícies a perder de vista? Não acredito.

Não acredito porque aqui temos tudo para ser o lugar feliz de quem nos escolhe. Assim o queira o poder central, assim o entendam os sucessivos governos. O Alentejo tem magia. Ofereçam-nos oportunidades reais, tenham-nos verdadeiramente em conta no processo de descentralização e verão se fixamos ou não quem nos escolhe. Olhem para nós com olhos de ver e talvez um dia escutem na voz dos filhos do que chegam de fora o gerúndio mais que perfeito que nos faz cantar até quando dizemos bom dia.

Enfermeira, autora de A Mãe Imperfeita

COMENTÁRIOS:

Gualter Cabral EXPERIENTE: Quando se fala no Alentejo (e eu sou alentejano), não o pintem com cores edílicas. Nem os alentejanos, como alguns gostariam, foram os escolhidos por Deus Pai que levou os reis magos a seguir a estrelinha. Também, não é a terra dos chaparros onde os que mexem são alentejanos. A virtude está no meio, como manda o cânone ou, na linguagem popular " nem tudo à terra nem tudo ao mar". " O deixa andar", atribuído à ronceirice - não se sabe se é feitio ou defeito - mas que não é bom, não é. Assim, as obras levam eternidades, como o Alqueva e o Hospital de Évora que só é falado nas eleições. Por isso estamos "esperando" (no gerúndio) abdicando do presente mais que perfeito.       Rita Cunha Neves INICIANTE: Que emoção, porra! Armando Heleno EXPERIENTE: (continuando). E as pessoas, com aquele seu lado sério, expressando certeza, muito directas e práticas nos seus dizeres: nada de submissões ou adornos ao visitante. Das tascas e restaurantes, meu Deus, que cheiros e sabores únicos, que novidades e prazeres recebo, dados sobretudo por aqueles revolucionários coentros, aquela erva mágica, que experimentei pela primeira vez em Vila Viçosa. Conheci-os tarde, mas foi uma alegria e satisfação enorme. Ainda hoje alegram as minhas refeições. A fechar, e com chave de ouro, o outro Alentejo, requintado e de beleza sem-par: as pousadas, que têm lá a sua coutada, sobretudo as históricas. Bem podia ser numa delas, o último dia do mundo!        Armando Heleno EXPERIENTE : Quando se trata de Alentejo, quase deliro com tudo aquilo que de a Carmen Garcia fala e eu reforço. Aquele mudar de mundo, naquela serenidade e inacção. Aquela calmaria de paisagem com as árvores mais belas do mundo, aqueles belíssimos sobreiros, sem pressa, a darem o seu contributo decisivo através do seu fruto, na elaboração do melhor presunto do mundo. E nem só. A serem igualmente cruciais com a sua roupagem, a fazer de nós portugueses os principais do mundo na matéria, a procurada cortiça, que acompanha os melhores champagnes do mundo! O tipo das casas e sua cor branca, naquela simplicidade arrebatadora, com as famosíssimas listas azuis ou amarelo torrado, nos umbrais de portas e janelas num final único. Um assombro ao nosso olhar, com a novidade de serem pintadas muitas vezes, pelas donas     FzD INFLUENTE: Nunca reparou nas azinheiras?...         Pepe iLegal MODERADOR: Numa vida passada devo ter sido alentejano pois tenho uma paixão avassaladora por essa região, seja na costa, seja no interior. Tivesse eu condições de trabalho pelo Alentejo e mudava-me já de malas e bagagem, mas, quem sabe, quando chegar a reforma!          Armando Heleno EXPERIENTE: o seu comentário podia bem ser o meu, com a diferença de estar recentemente reformado. No entanto, já avisei a Madame que nunca se sabe se acabarei por aqui (Bairrada) os meus dias. A paixão pelo Alentejo, o meu querido Alentejo, fala mais alto. Vamos aguardar. Nas férias, pelo menos, variamos todos os anos: sempre no Alentejo...         Sandra. MODERADOR: Olhem, vão lá para o pé de Avis, que aquilo é bem lindo, ai se é.

 

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