...toneladas de ouro, fruto do trabalho
negreiro, nas minas sul-africanas, nos tempos em que, tendo partido descalços,
os magaíças chegavam calçados dessas minas de ouro, para onde iam trabalhar –
imagem das minhas memórias juvenis, os pés calçados
dos magaíças de retorno. E como foram referidas por Salles da Fonseca, na continuação desta sua excelente análise sobre o desenvolvimento
económico português, lembrei-me de procurar um texto, na Internet, que
aclarasse o destino dessas tais toneladas de ouro que constituíam aparente
segurança, naqueles tempos de esbulho álacre que se seguiram ao 25 de Abril. Escolhi, entre
outros, o de José
Paiva Capucho, do Observador, de 30 de Maio de 2020, apesar da sua classificação de enganador. Alguma verdade terá, embora de pouco
conforto nos sirva, neste nosso desenvolvimento “à deriva e aos baldões”, na designação realista de Salles da Fonseca.
DO
DESENVOLVIMENTO - 4 À DERIVA E BALDÕES
HENRIQUE SALLES DA FONSECA A BEM DA NAÇÃO, 29.12.20
Resulta linearmente dos textos
anteriores sob esta mesma epígrafe que só por milagre poderíamos ser um país
globalmente desenvolvido. Mas
convenhamos que já vai sendo tempo de deixarmos de «brincar aos
países» e de assentarmos os desígnios da Nação em bases
solidamente amadurecidas.
*
* *
Num
brevíssimo tour d’horizon, o nosso
modelo de desenvolvimento foi durante séculos de cariz imperial como forma de
sobrevivência face à cobiçosa ameaça do vizinho – mais do que
de desenvolvimento, o modelo era de sobrevivência e durou de 1415 a 1974. A trapalhada institucional da primeira
República não definiu um modelo económico e sob o consulado salazarista o modelo sui
generis do corporativismo não
teve outro propósito do que tentar ser solução alternativa ao capitalismo e ao comunismo mas
que tudo submeteu
ao reequilíbrio das contas públicas – foi um
modelo em que o
desenvolvimento se viu secundarizado pelo dito equilíbrio entretanto endeusado
até ao entesouramento compulsivo (as
famosas 800 toneladas de oiro nas caves do Banco de Portugal[i]). Com o Professor
Marcelo Caetano sim, ensaiou-se uma tentativa desenvolvimentista mas
não houve a coesão política interna no Regime que que permitisse uma evolução
política sem sobressaltos nem um arejamento económico que suplantasse atrasos
evidentes e desse corpo às expectativas sugeridas pelo então Chefe do Governo. Mas os «ultras» opuseram-se e não foi
possível acabar com o caduco corporativismo nem com o condicionamento
industrial (que só
foi liquidado - já depois de termos banido a tentativa de sovietização da
sociedade portuguesa - no Governo presidencial chefiado por Maria de Lourdes Pintasilgo).
*
* *
E assim andámos à deriva e aos baldões entre um modelo retrógrado e
uma tentativa sovietizante para regressarmos a um verdadeiro nihilismo no que
se refere a consistência doutrinária uma
vez que a orientação «davosiana» ou «bilderberguiana» então já prevalecente no
mundo ocidental era (e continua a ser) – Digam e façam o que
quiserem desde que a prática política seja liberal. Daqui
resulta que, afastadas da área da governação quaisquer soluções totalitárias de
inspiração marxista, o «politicamente correcto» é liberal apesar de prevalecerem na gíria alguns
vícios de fala como, por exemplo, as GOP’s (Grandes Opções do Plano) em vez de,
mais prosaicamente, se referir o EDP (Esbanjamento de Dinheiro Público) opções
aquelas comummente preferidas por critérios alheios à rentabilidade do
investimento. Disso é
prova a pobre relação que durante anos a fio houve entre a FBCF[ii] e o crescimento do PIB.
Num
cenário monolítico assim definido, os Partidos genuinamente democráticos tendem
a esquecer as suas próprias raízes doutrinárias e a perfilarem-se como meros
grupos de interesses e de pressão. O pluripartidarismo a transformar-se
em pluriclubismo.
E isto tem mesmo que ser assim? Não
creio e, pelo contrário, tenho como imprescindível que os Partidos genuinamente
democráticos regressem à militância doutrinária, referendem os respectivos
programas de Governo e propostas de bem comum. Aqui deixo os meus votos de que a Democracia
pluripartidária volte a ser a cena referendária das propostas de bem comum.
(continua)
Dezembro
de 2020 Henrique Salles da
Fonseca
[i][i] - Sobre as reservas de ouro, ver o tema na perspectiva do
trabalho «magaíça» nas minas sul-africanas [ii]
- Formação Bruta de Capital Fixo, vulgo Investimento
Tags: "economia
portuguesa"
NOTAS DE APOIO
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Portugal em 1974
não devia um cêntimo e tinha uma das maiores reservas de ouro do mundo, ao contrário de hoje?
Não é verdade que Portugal não devesse um cêntimo em
1974, apesar de a dívida pública ser inferior à actual. Em 1974, estava em 8º
lugar no ranking das reservas de ouro e hoje está em 14º lugar.
JOSÉ PAIVA CAPUCHO
OBSERVADOR, 30 abril2020
A frase
Portugal em 1974 não devia um cêntimo e possuía uma
das maiores reservas de ouro do mundo! E hoje?
Começou a circular uma publicação no Facebook, a 23 de
abril, que dizia o seguinte na legenda: “Portugal em 1974 não devia um
cêntimo e possuía uma das maiores reservas de ouro do mundo! E hoje?”. Já conta com 15,5 mil
visualizações e 122 partilhas. Esta
publicação é, no entanto, enganadora. Apesar de a dívida pública de hoje ser substancialmente superior à de 1974,
não é verdade que Portugal não devesse um cêntimo naquela altura. Em matéria de
reservas de ouro, se nessa altura Portugal era a oitava nação com a maior
reserva (integrando o top10), hoje é a 14ª (integrando o top20). Ou seja,
publicação mistura factos que não são totalmente precisos, induzindo quem a lê
numa conclusão errada.
Para verificar a credibilidade desta informação é
preciso dividi-la em duas partes: primeiro, apurar como
era a dívida pública em 1974 e nos dias de hoje e, em segundo lugar, apurar a parte das reservas de ouro entre os dois
períodos. Desde logo, embora a publicação no Facebook junte estas duas referências,
não há nenhuma relação directa entre o valor da dívida pública e o nível das
reservas de ouro, por isso vamos analisar individualmente as duas alegações.
Comecemos pela dívida pública, que cresce bastante a
partir da segunda guerra mundial e vai acentuar-se nos anos 1970 — fruto dos
encargos/despesas com a guerra colonial, a explosão da emigração e o
crescimento do turismo, sobretudo nos anos 1960, que criaram oscilações durante
o Estado Novo (quer positivas quer negativas). É muito habitual surgirem
publicações nas redes sociais em defesa da política financeira, “das contas
certas”, do Estado Novo e, em especial, de António de Oliveira Salazar.
Para se perceber a evolução da dívida pública é necessário calculá-la em função do Produto
Interno Bruto (PIB), para estar de acordo com as instituições europeias. O Observador contactou o Banco de Portugal que, assumindo que “não dispõe
de séries longas oficiais da dívida pública portuguesa”, facultou dados de
instituições internacionais, como a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional, deixando nota que se trata
de uma fonte externa, não podendo o BdP “atestar a
qualidade/consistência destas estimativas”.
Em 1974, a dívida pública equivalia a
cerca de 13,5% do PIB, ou seja, da riqueza gerada na altura em que se
deu a revolução dos cravos, segundo os dados do FMI. Quando um Estado gasta mais do que as suas
receitas, regista um défice público e tem de emitir dívida – o que aconteceu
durante a presidência de Salazar. O Estado Novo não foi, por isso, excepção.
Hoje,
a dívida representa 117,7% do PIB,
segundo dados oficiais da
Pordata, que também podem ser encontrados no relatório do Conselho
de Finanças Públicas. Portanto,
a dívida pública é hoje muito maior, apesar de ter existido dívida nos dois
períodos de tempo.
Para
se verificar esse crescimento é preciso avaliar diversas variáveis ao longo do
tempo da nossa democracia, como a altura do resgate financeiro a Portugal em
2011, o resgate dos bancos ou a própria recessão portuguesa. E também é importante salientar que a partir do
momento em que o Estado Novo foi derrubado, foi preciso investir
em sectores como a educação ou a saúde
— ou seja, houve mais despesa. Mas esses dados não são aqui necessários para se
perceber algo óbvio: o valor da dívida pública é, de facto, muito maior
ctualmente, como foi até noticiado.
Mas
não é verdade que não houvesse dívida em 1974. Havendo dívida pública em 1974,
significa que Portugal estaria a dever dinheiro que pediu emprestado,
contrariando a ideia de “não dever um
cêntimo”. Quer durante o Estado Novo, quer em democracia.
Agora, vamos à segunda parte: as reservas de ouro que são geridas pelo
Banco de Portugal hoje e que não se encontram todas no país. Essas reservas podem tanto ser um recurso para
eventuais crises financeiras como para serem usadas como fonte de rendimento de
instituições bancárias que as detenham. Não poderiam, por outro lado, suprimir
todas as necessidades económicas de um país — nem pagar toda a dívida pública
portuguesa que atinge 251,1 mil
milhões de euros, segundo dados do Banco de
Portugal. No entanto, o uso das reservas de ouro não é assim tão
linear e tem sofrido alterações
ao longo do tempo.
De facto, Portugal tinha uma
das maiores reservas de ouro do mundo.
Segundo o Banco de Portugal, em 1974,
o país tinha 865,94
toneladas de ouro, estando em oitavo
lugar num ranking a nível mundial, sendo essa uma das marcas históricas do
legado de Salazar. O ditador
chegou a ser apelidado pela Bloomberg como o “melhor investidor sem
ganhos do mundo” — em 24
anos, adquiriu 695 toneladas de ouro à base de exportações de volfrâmio ou de
atum enlatado. Mas, simultaneamente, Portugal
era um país profundamente pobre e rural e estava atrasado comparativamente a
outros países. Essa valorização do ouro começou a diminuir a partir
de 1971, porque se
antes o ouro detido por cada país era a referência para a emissão da moeda, a
partir desse ano deixou de o ser, quando os Estados Unidos da América decidiram
não converter o dólar em ouro.
Essa referência passou a estar dependente de outros
factores, como do PIB.
Neste
momento, e segundo os
dados mais recentes (que são de 2019), Portugal está
em 14º lugar no ranking mundial de países com as maiores reservas de ouro,
segundo dados do World Gold Council. À
semelhança dos anos anteriores, a quantidade de ouro detida pelo (BdP (382,5 toneladas) não sofreu alterações em 2018, a última data para a qual temos dados oficiais. Traduzindo para milhões: representam 13,786 milhões de euros, segundo dados do Banco de
Portugal. Ou seja, apesar de
ter descido no ranking mundial de reservas de ouro, quando se compara esta posição
com a de 1974, Portugal continua a estar no
top 20. Mesmo assim, com todas essas toneladas, não seria
possível usar as reservas de ouro para pagar toda a dívida pública, como refere
a publicação do Facebook.
Convém também dar algum contexto
relativo às reservas de ouro portuguesas. Após
o 25 de abril, Portugal decidiu começar a vender o ouro. E, antes de recorrer
pela segunda vez na história ao Fundo Monetário Internacional (FMI), na década
de 1980, voltou-se novamente para as reservas de ouro, que foram oscilando entre
valores estáveis e em decrescendo.
Em
1999, foi feito o Acordo dos Bancos Centrais sobre o Ouro, assinado entre o
Banco Central Europeu e outros bancos de países europeus, onde se incluiu
Portugal, e que dizia o seguinte: “as
instituições signatárias não participarão nos mercados como vendedoras, à excepção
das vendas já decididas“, limitando as vendas anuais de ouro nas 400 toneladas.
A par disso, em 2004 foi feita uma
venda concertada dessas reservas entre vários países da Europa, onde também se
incluiu Portugal. Mais: “Os proveitos realizados com as vendas de ouro ficam
retidos no Banco de Portugal e são consignados a uma reserva especial que
constitui parte integrante dos capitais próprios do banco”, lê-se no documento. No entanto, esse acordo já não existe — até porque
houve bancos centrais a comprar ouro e não a vender -, ou seja, o Banco de
Portugal tem independência em
relação ao Estado sobre as reservas de ouro.
Contudo,
faltará perceber se existe essa intenção por parte do Banco de Portugal, e se
isso traz benefícios para o país, durante a crise da Covid-19. Para já, segundo o Observador apurou, não existe essa intenção. Até porque, por exemplo, na crise financeira de 2011,
apesar de o uso das reservas de ouro ter sido discutido, estas não
chegaram a ser utilizadas.
Conclusão
Em 1974, ano da revolução dos cravos, Portugal tinha uma dívida pública a rondar os 13,5% do PIB. Actualmente, esse valor chega aos 117,7% do PIB. É, de facto, um valor muito mais alto, mas, no entanto, não é verdade que Portugal “não devia um cêntimo” porque, como se verificou, tinha dívida pública. Quanto às reservas de ouro, durante o período do Estado Novo, Portugal acumulou muitas reservas de ouro, colocando-se no oito lugar do ranking mundial. Hoje em dia ocupa a 14ª posição. Mas é preciso referir que o peso do ouro é hoje muito diferente ao que tinha nos anos 70, principalmente quando a sua posse deixou de contar como referência para a emissão de moeda. Durante esse largo período, Portugal já vendeu ouro, não mexeu nas reservas e, para já, não se sabe ainda se o voltará a fazer. No entanto, é certo dizer que mesmo com essa venda, o país nunca iria abater o valor total da dívida pública.
Assim,
de acordo com o sistema de classificação do Observador este conteúdo é: ENGANADOR
No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é: ENGANADOR:
as alegações dos conteúdos são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a
principal alegação é enganadora ou está incompleta. Nota: este conteúdo foi
seleccionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o
Facebook.
COMENTÁRIOS
Anónimo 30.12.2020: Post corajoso e profundo, Henrique. Algumas linhas
para corroborar contigo sobre a tentativa de liberalização económica que, com o
Prof. Marcello Caetano, perpassou a sociedade portuguesa. Regressado de
Moçambique, em finais de 1971, e estando colocado no então Banco de Fomento
Nacional, de cuja Administração haveriam de sair para o Governo (o último do
Regime) dois Ministros (Prof. Daniel Barbosa e Dr. Manuel
Cotta Dias) e um Secretário de Estado (Dr. Luís Sapateiro), tinha um
posto de observação privilegiado sobre a vida económica do País, onde não
faltava a dinamização do mercado de capitais, ou, dito de outra forma, a
especulação bolsista. Li muito sobre a vida política desse período, mas
pouco sobre a economia. Não quero dizer que as amplas biografias de Marcello
Caetano saídas há poucos anos não a foquem, mas como as não li, desconheço. Em
qualquer caso, para os teus leitores que não sejam “desse tempo”, ou sendo,
tenham curiosidade em aprofundar o assunto, aconselho o livro de Filipe
Fernandes “Os empresários de Marcello Caetano” (2018). Estivemos
perante política de desenvolvimento económico, liberalização económica
regulada e programa de investimentos público e privado. Foram lançados
projectos industriais, como Sines, fábricas de cerveja, de celulose e de
cimento, além de construção da barragem do Alqueva, do novo aeroporto de Lisboa
e de auto-estradas. Paralelamente, também tivemos “guerras” bem acesas
entre empresários que levou ao sacrifício de alguns membros do Governo, como o Eng. Rogério
Martins, que tinha o handicap de ser originário da CUF.
(Ele chegou a ser meu Vice-Presidente no BFN, antes do 25 de Abril, mas tive um
contacto mínimo. Na década 80, tive oportunidade de trabalhar com ele e
constatar o seu elevado nível intelectual e a sua visão industrial do futuro).
Aliás, algumas personalidades, que tiveram um papel de relevo após o 25 de
Abril, emergiram com Caetano. Lembro-me do Dr. João Salgueiro, do Dr.
Xavier Pintado, do Dr. Nogueira Brito, do
Dr. Alexandre Vaz Pinto e do Dr. Joaquim Silva Pinto, os chamados
tecnocráticos. Recordo ainda que em 1973 deu-se o famoso choque petrolífero que muitos historiadores o
assinalaram como o termo dos anos dourados subsequentes ao termo da 2ª guerra
mundial, bem como o início da "derrocada" ou das décadas de crise.
Deixa-me terminar com uma frase do insuspeito Vasco Pulido Valente: “Marcello
tirou o País do passado. Apesar da guerra, em 5 anos, fez um esforço de
“modernização” (a palavra é sua) quase sem paralelo na história moderna
portuguesa”. Abraço e Feliz Ano Novo. Carlos Traguelho
Henrique Salles da
Fonseca 30.12.2020: Fazes muito bem em lembrar estes factos e
realidades incontestáveis. José António Pessanha
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