Um texto profundamente optimista, este
de Teresa de Sousa, que, de
resto, nos dá conforto à alma, ante a perspectiva da nova presidência
portuguesa, o que é muito positivo, segundo Teresa de Sousa, tendo-nos nós sempre portado bem, de todas as vezes.
Só desejamos, de facto, que assim continue, embora haja quem continue a achar
que a União Europeia nos foi
ruinosa, tirando-nos a independência que tínhamos dantes, quando nos dávamos ao
luxo de ser orgulhosamente sós, mas nessa altura havia mais sítios aonde ir buscar
dinheiro. Por isso, temos mesmo que ser bons, a presidir, e continuar lá.
OPINIÃO UNIÃO
EUROPEIA
Nada mudou e mudou tudo
A “fractura” Norte-Sul não
desapareceu. Mas tem uma oportunidade de atenuar-se, criada pela própria crise
pandémica.
TERESA DE SOUSA
PÚBLICO, 6 de
Dezembro de 2020
1.Não é uma simples figura de estilo dizer-se que Portugal
conseguiu fazer sempre boas presidências da União Europeia. Já leva
três no currículo. Vai agora
iniciar a quarta. Há razões que explicam os êxitos anteriores. A
diplomacia portuguesa pode não ser grande em número, mas é experiente e, de um
modo geral, tem elevada qualidade. Ao longo das décadas da nossa integração, nunca houve
estados de alma dignos de nota sobre a opção europeia e transatlântica da nossa
inserção internacional, perdido o império e ganha a democracia. Somos um país
aberto ao mundo, habituado a olhar para fora e a relacionar-se com os outros.
Não temos problemas específicos de relacionamento com os nossos parceiros
europeus, herdados da história ou da geografia. As relações ibéricas foram
resolvidas precisamente graças à simultaneidade da transição democrática e da
integração europeia nos dois países. Finalmente, perdurou sempre um sólido
consenso interno sobre a Europa, assente nos dois grandes partidos de governo.
Além disso, citando Eduardo
Lourenço, a
generalidade dos portugueses continua a sentir-se bem na sua nova qualidade de
“verdadeiros europeus, dessa Europa sonhada que estava além dos Pirenéus”.
2. As duas últimas presidências – de 2000 e
2007
– marcaram de forma indelével a história da Europa dos últimos vinte anos. Na
primeira, sob a liderança de António Guterres, foi aprovada a Estratégia de Lisboa – a
resposta europeia à era da internet e da globalização. Foi uma revolução na
forma como a Europa olhava para a sua economia no contexto internacional. Em
2007, numa perfeita articulação com a presidência alemã e com o apoio do
presidente da Comissão, Durão Barroso, o governo de José Sócrates conclui as
negociações do Tratado da União Europeia, um passo enorme no processo de
integração. Mais uma vez, Portugal revelava-se um exímio negociador dos
compromissos fundamentais para colocar a Europa a par do seu tempo. Nada disto
mudou. Depois dos anos pesados da troika, Portugal recuperou a sua
credibilidade europeia e tem à frente do Governo um político prestigiado e
escutado em Bruxelas e nas capitais que mais contam. Regressa à presidência
rotativa quando a Europa está mergulhada na sua pior crise de sempre, provocada
por uma pandemia devastadora, que a põe mais uma vez à prova.
3. O
Tratado de Lisboa retirou protagonismo às
presidências rotativas, ao criar os cargos de presidente do
Conselho Europeu e de Alto
representante para a política externa e de segurança. A própria agenda europeia é de tal modo vasta que a
margem de manobra de um país para deixar a sua marca é hoje mais reduzida.
Mesmo assim, ela existe, desde que consiga encaixar-se bem nessa agenda e tirar
partido das circunstâncias. Há, no
entanto, uma diferença abissal. O mundo mudou para lá de qualquer reconhecimento
e essa mudança reflecte-se na realidade europeia, nos seus problemas internos,
nos seus principais desafios.
De
modelo de integração regional exemplar para o resto do mundo, a Europa avança
hoje a contracorrente, quando a ordem internacional caminha para a desagregação
e para o caos. De
exemplo mais avançado do multilateralismo, a Europa defende-se hoje contra o
regresso de uma ordem internacional em que a regra dá lugar à força. De poderoso pólo de atracção estabilizador e
democratizador da sua vizinhança, a Europa está hoje rodeada de
instabilidade e de conflitos por todos os lados, e os seus princípios
democráticos (a sua maior força) vêem-se postos em causa no seu próprio seio. De terra de acolhimento de deserdados e de
refugiados, fecha-se sobre si própria, ferida pelos movimentos identitários,
populistas e nacionalistas que vêem nos outros uma ameaça à sua identidade
cristã e étnica, como ao seu estatuto social e aos seus empregos. A Leste, a
Rússia passou
a ser de novo uma ameaça à sua segurança. Com a chegada de Xi Jinping ao topo
do regime comunista, a China passou do tranquilizador “peaceful rising” para uma
indisfarçada e cada vez mais agressiva ambição de hegemonia mundial. A União assiste pela primeira vez na sua história
à primeira deserção. A saída do Reino Unido não aumenta a sua coesão interna,
como alguns teimam em dizer. Acelera as suas divisões e aumenta os seus
desequilíbrios. Finalmente, se Donald Trump teve um mérito
foi colocá-la diante de um espelho que lhe revelou as próprias fraquezas para
enfrentar esse mundo que lhe
é adverso.
Até agora, a crise pandémica
funcionou no essencial como um factor de unidade. A Europa conseguiu reagir com determinação às suas
brutais consequências económicas e sociais, tomando medidas que, há menos de um
ano, eram consideradas impensáveis. Do BCE à Comissão, passando pelo Conselho
Europeu e pelo Parlamento Europeu, prevaleceu a coragem política e o sentido de
destino comum. Alguma coisa de positivo ficará desta crise inédita.
4. É
este o contexto da presidência portuguesa. Em
pano de fundo, uma pandemia que vai agora atravessar o gigantesco desafio das
vacinas. Se correr mal, será uma sombra indelével sobre os próximos seis meses.
Terá de lidar com a total imprevisibilidade do mundo, as crises inesperadas que
podem explodir nas suas fronteiras, as manobras políticas das potências
autoritárias que apostam tudo em dividi-la e que usarão toda a espécie de
recursos para dificultar o relançamento da relação transatlântica que a eleição
de Joe Biden anuncia.
A “fractura” Norte-Sul não desapareceu. Mas,
paradoxalmente, tem uma oportunidade de atenuar-se, criada pela própria crise
pandémica. O Plano de Recuperação terá de traduzir-se em programas nacionais
que vão passar pelo crivo de Bruxelas e dos pares. É a grande oportunidade para
países como o nosso darem um salto sustentado no sentido da convergência.
Tornou-se mais evidente – e muito mais preocupante – a fractura
entre o Ocidente e o Leste, porque põe
em causa os fundamentos da própria integração europeia: os valores democráticos
e liberais inegociáveis em que assenta. À
falta de outro tema “picante”, o debate português sobre a Europa seguiu, como é
costume, o caminho da facilidade e da demagogia. O
Governo pactua com os sinistros Orbán e Morawiecki. O primeiro-ministro
português foi a Budapeste dar palmadas nas costas do seu homólogo
húngaro. Os mesmos que consideram
legítima e necessária uma aliança do PSD com o Chega cá dentro (para uns, porque o Chega diz, em parte, aquilo que a
direita devia dizer e não tem coragem; para outros porque não há outra maneira
de regressar ao poder), comportam-se
na Europa como virgens ofendidas. Apenas
duas ou três coisas que vale a pena lembrar. Orbán tem
assento no Conselho Europeu com todos os direitos inerentes a cada
Estado-membro. É preciso negociar com ele. Costa foi a Budapeste fazer isso mesmo, a pedido da
chanceler alemã. Os mesmos
que batem no peito em defesa da democracia liberal, alimentaram a fera ao longo
da última década. A fera, bem alimentada, sentiu-se com força para virar a mesa.
O Partido Popular Europeu, que
reúne o centro-direita, incluindo os partidos portugueses da família, sentiu-se
bem a conviver com o Fidesz até hoje.
Exactamente pelo mesmo pragmatismo dos que dizem que o Chega é horrível, mas
incontornável para chegar ao poder.
E falta ainda lembrar a suprema
hipocrisia. O
Artigo 7.º do Tratado de Lisboa foi escrito para enfrentar eventuais desvios de
um ou mais Estados-membros aos princípios fundadores da integração – permitindo
a suspensão dos seus direitos. A decisão
pode ser tomada no Conselho por maioria qualificada. Sublinho: por
maioria qualificada. Só que isso
incomoda muita gente, cria dores de cabeça, abre precedentes que ninguém quer
assumir. Como se o populismo, o nacionalismo, a xenofobia fossem uma doença
passageira.
Só
há uma forma de o combater: dizer a verdade, incluindo o que se pode ou não pode
fazer. E, nestes tempos em que a desinformação se transformou numa poderosa
arma de poder, combatê-la sem descanso.
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