Li já alguns textos no Público sobre Eduardo Lourenço. Todos unânimes em o elevar à consagração
e também ouvi o nosso PR referir a
tal coincidência simbólica da morte daquele no Dia da Restauração, o que não entendi, pois o pouco que dele conheci me faria identificá-lo mais com a cultura apensa ao 25 de abril, e digo cultura com o maior respeito,
pois conheci muitos adeptos do 25 de abril bastante cultos, alguns até como
ele, e essas ideias de pontapear o passado histórico, o tal chavão, fez-me sempre
recuar na reverência por ele, reverência comum a muitos que sobre ele escrevem,
mas, sabendo embora que escreve bem e é um grande estudioso e pensador, eu
limitei-me quase ao chavão, para o pôr de lado. O texto de Isabel Salema e Luís Miguel Queirós parece criterioso e contrário ao endeusamento, mas
oxalá que lhe publiquem a obra para eu ficar com uma percepção mais compatível
com o seu génio literário e assim poder separar o trigo do joio, como gosto de
fazer, na minha isenção democrática.
Cultura-Ípsilon
- EDUARDO LOURENÇO
(1923-2020)
Uma obra “canonizada em vida” que talvez se possa
enfim debater
O consenso em torno de Eduardo Lourenço
é tão avassalador que pode sabotar a própria discussão do legado. Os
historiadores José Neves e António Araújo alertam para o risco de o reduzirmos
a um pensador da identidade portuguesa. Já Diogo Ramada Curto acha que a sua
obra é “extremamente desigual”.
PÚBLICO, 1 de Dezembro de 2020,
Publicado
em 1978, O Labirinto da Saudade tornou-se
a obra-chavão de Eduardo
Lourenço SÉRGIO
AZENHA
A “coincidência
simbólica” de Eduardo Lourenço ter morrido no dia 1 de Dezembro, o feriado
que comemora a Restauração da Independência, foi destacada pelo Presidente da República.
Esse “quase que parecia que teria de ser assim”, dito por Marcelo Rebelo de
Sousa, veio ligar a memória póstuma do mais destacado intelectual do século
XX à questão da identidade nacional. Mas se houvesse tal coisa como um dia adequado
para a morte do ensaísta, o historiador José Neves, que se tem
debruçado sobre as questões do nacionalismo, proporia o 25 de Abril:
“Não só porque ele viveria mais uns meses, mas porque tenho um certo receio de
que aconteça a Eduardo Lourenço na sua morte aquilo que lhe foi acontecendo nos
últimos anos: confiná-lo a um pensador da identidade nacional portuguesa.”
O que o seu ensaísmo tem de mais
significativo, acrescenta, é a tentativa de recuperar essa tradição de reflexão
sobre a nação e a identidade nacional para um período democrático já com uma
forte integração europeia. Mas, apesar
dessa adesão europeísta, Lourenço também foi capaz de desconstruir o carácter mitológico
do próprio europeísmo. “Por isso, parece-me discutível
limitá-lo a um pensador da portugalidade, e principalmente a uma data como o 1
de Dezembro, associada a uma matriz claramente conservadora no contexto dos
nacionalismos portugueses.”
Ao
pensarmos nele principalmente como “cultor da portugalidade”, ficam esquecidas
dimensões mais críticas sobre a história de Portugal, como as que foram
recentemente relembradas pela colectânea de textos organizada por Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi [Do Colonialismo como Nosso Impensado, 2014], nos quais mais directamente escreveu sobre a dimensão imperial dos Descobrimentos.
“Existem declarações dele muito avessas a qualquer tipo de celebração
desse passado histórico, do império, do colonialismo, projectando mesmo uma
crítica à própria ideia de Descobrimentos.”
Num ensaísmo que recorre frequentemente à literatura e
à história para mostrar a pluralidade de uma identidade nacional
portuguesa, recusando um destino português ou uma concepção mais monolítica
dessa identidade, Lourenço acabou por criar os seus próprios mitos: “Ao mesmo tempo que tem os seus momentos clarividentes,
também há uma tentativa de transformar essa pluralidade num traço português,
numa ideia de cultura portuguesa.”
A
afirmação dessa singularidade plural tornou-se um tópico que ecoa no pensamento
sobre a identidade
nacional portuguesa de uma forma que vai muito para lá de Eduardo Lourenço, e
que intercepta nacionalismos mais à esquerda e mais à direita. “É um
pensamento preocupado em desconstruir qualquer ideia de essência nacional, mas
noutros momentos esse esforço transforma-se no ponto de partida para o próprio
Lourenço propor uma identidade não identitária.”
Não creio que o pensamento [de
Eduardo Lourenço] sobre a identidade nacional tenha uma unidade argumentativa
linear e coerente
As
raízes intelectuais desse pensamento,
explica José Neves, vêm da
sua oposição à ditadura, da crítica ao império, da exposição a correntes
intelectuais avessas à própria ideia de identidade nacional, da sua atracção
pelo projecto europeu, mas há também uma aposta do último Lourenço na ideia de
que esta pluralidade é qualquer coisa de especificamente português.“Não
creio que o pensamento sobre a identidade nacional tenha uma unidade
argumentativa linear e coerente.”
Há
um “efeito Eduardo Lourenço-pensador da portugalidade” que se vê junto de
outros intelectuais portugueses nas últimas décadas, nomeadamente nos trajectos
do filósofo José Gil e do sociólogo Boaventura de
Sousa Santos. “O
primeiro, vindo de uma tradição ensaística muito forte, só mais recentemente se
atribui a si próprio a missão de pensar a identidade nacional, o povo, a
sociedade portuguesa, o país. E Isso também se nota em alguém vindo
das ciências sociais, como Boaventura Sousa Santos, que, com a crise de 2008, introduz um conjunto de
ensaios sobre a ideia de autoflagelação do país.” Também o historiador e colaborador do
PÚBLICO António Araújo se mostra sensível
a esse risco de apenas ver em Lourenço o pensador da identidade portuguesa.“É
triste e muito limitativo reduzir um ensaísta e crítico com a dimensão e a
densidade de Eduardo Lourenço ao papel de intérprete da portugalidade ou, como
disse há pouco um jornal, ao de ‘filósofo que procurou Portugal no seu labirinto’”,
diz. Mas se “a sua obra – aliás, vastíssima – ultrapassa em muito O
Labirinto da Saudade, o facto é que”, observa, “ao aventurar-se por tal
caminho, Lourenço contribuiu também para ser aprisionado nesse chavão”. E “o timing”, nota, “foi perfeito: o livro
saiu em 1978, na ressaca da revolução, e vinha satisfazer a antiga e eterna
obsessão portuguesa consigo própria”, essa “mesma obsessão que ainda há pouco tornou em best seller outra incursão do
género, Portugal Hoje, O Medo de Existir, de José Gil”.
Eduardo Lourenço “era o
primeiro a dedicar-se a esse exercício no pós-25 de Abril e vinha, para mais,
da esquerda, ou seja, de uma área política e ideológica muito avessa às
divagações sobre o ‘sentido nacional’ que tinham ocupado à exaustão a débil
‘filosofia portuguesa’”, diz Araújo. “Que
um filósofo – e Lourenço era um filósofo, dos autênticos, tinha uma formação e
uma expressão muito sólidas nessa área – um homem vindo da esquerda, que antes
escrevera Os Militares e o Poder,
de 1975, e O Fascismo Nunca Existiu,
de 1976, trilhasse os caminhos da psicologia nacional, indo ao encontro da
eterna dúvida de Portugal sobre si mesmo, era algo que o fazia entrar de pleno
no mainstream cultural, mas também do político e social, pavimentando o caminho
para se tornar o nosso intelectual público de maior projecção, o savant por
excelência, em torno do qual se gerou um enorme e absoluto consenso”, descreve António
Araújo.
Ele próprio acabou por se
converter num case study ou num elemento da portugalidade que antes perscrutara
e, aos poucos, a originalidade do pensamento foi sendo ofuscada pelo
brilhantismo do verbo.
E
“talvez por isso”, acrescenta, e por características da sua personalidade – “nunca
procurou a ruptura nem gerou controvérsia” –, Lourenço “acabou por ser assimilado
pelas instituições do establishment e pelo regime, que o remuneraram
simbolicamente e o trataram com a reverência reservada aos sábios”. E conclui:
“Ele próprio acabou por se converter num case study ou num elemento da
portugalidade que antes perscrutara e, aos poucos, a originalidade do
pensamento foi sendo ofuscada pelo brilhantismo do verbo, pois, além de tudo o
mais, Lourenço escrevia como poucos e foi um dos grandes prosadores do nosso
tempo – pena não ter tentado a ficção ou o romance, mas a obra que deixa
noutros campos é já suficientemente rica e esmagadora”.
Diogo Ramada Curto, um dos raros intelectuais portugueses que tem
assumido publicamente as suas reservas face a algumas dimensões da obra de
Eduardo Lourenço e aos cada vez mais amplos consensos que esta foi gerando ao
longo das últimas décadas, acha que este “é um momento de leitura e reflexão da
obra, que foi o seu grande legado”. E se as obras completas em curso de
publicação pela Gulbenkian, ao “revelarem o pensamento de Eduardo Lourenço em
toda a sua extensão”, são um convite a essa leitura crítica, ela é também algo
que lhe devemos: “Ele passou a vida a interpretar e avaliar o trabalho dos
outros e agora compete-nos avaliar o dele.”
O historiador acredita que essa
leitura global “vai demonstrar uma extrema desigualdade no interior da obra,
com textos recolhidos aqui e acolá, reflexões pouco elaboradas sobre alguns
tópicos, e muita repetição”. E argumenta que “o risco da obra completa é
exactamente o de trazer ao de cima essa inconsistência”.
Para
a sua visão da obra de Lourenço, o historiador assinala a importância do texto
que o autor de O Labirinto da Saudade dedica nesse livro a António
Sérgio: Sérgio como Mito Cultural. “É um
texto muito polémico, um ajuste de contas, que só mostra a aspiração de
Lourenço a destronar a figura de ensaísta que foi António Sérgio”, diz Ramada
Curto, acrescentando a sua convicção de que Lourenço não tem sucesso nessa
tentativa e que “o grande ensaísta português do século XX é mesmo António Sérgio”.
Já Eduardo Lourenço, diz,
distingue-se pela “repetição de um conjunto de lugares-comuns de uma
psicanálise um pouco banalizada – com as ideias de memória, desmemoriação,
trauma, depressão –, que depois aplica à leitura da identidade portuguesa”. Uma
estratégia cujo “objectivo é dizer que há um silêncio, um trauma, que ele vem
descobrir, como se fosse uma espécie de profeta”.
Ramada Curto aproxima ainda
Lourenço de “uma filosofia portuguesa à qual este pretendeu dar vestes novas,
mas que continua a ser esse martelar em busca de uma identidade, um pouco à [Teixeira de] Pascoaes”, e que faria do
ensaísta “uma espécie de Agostinho da Silva institucional”. E lamenta que “a canonização em vida” a que
Lourenço foi submetido tenha contribuído para “afastar qualquer espécie de
debate” em torno da sua obra. “Para reflexão sobre a identidade, prefiro a
ironia acerca de algumas essências da identidade portuguesa do Miguel
Esteves Cardoso, que é mais divertido e não se leva a sério”,
conclui.
Do
ponto de vista das ciências sociais”, Ramada Curto aponta as obras de Orlando
Ribeiro ou de Vitorino Magalhães Godinho como estando “noutro nível de
grandeza”. E só no domínio do ensaísmo literário se mostra mais benevolente:
“Tem indiscutivelmente trabalho importante sobre Pessoa e a poesia portuguesa
do século XX, mas é óbvio que não é um autor de referência sobre Camões, e
sobre Antero tenho dúvidas.”
Eduardo Lourenço: da qualidade do
olhar
Eduardo Lourenço, desertor da
ortodoxia?
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