terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Lá fora e cá dentro


As coisas que o Dr. Salles vai buscar! Como se não nos bastassem os desmazelos hoje, ou as referências críticas de escritores que tanto nos zurziram, como Eça e outros fizeram, agora mais esta do nosso beatério indecoroso antigo, contrastante com o desenvolvimento científico dos outros países europeus. Apenas dois exemplos de descomposturas antigas, não só inúteis como motivadoras das descomposturas de hoje:

 

Do Séc. XIX: De Eça, in “Os Maias, cap. XVIII:

Pela sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar, com flores na lapela, a calça apurada, luvas claras fortemente pespontadas de negro. Era toda uma geração nova e miúda que Carlos não conhecia. Por vezes Ega murmurava um olá!, acenava com a bengala. E eles iam, repassavam, com um arzinho tímido e contrafeito, como mal acostumados àquele vasto espaço, a tanta luz, ao seu próprio chic. Carlos pasmava. Que faziam, ali, ás horas de trabalho, aqueles moços tristes, de calça esguia? Não havia mulheres. Apenas num banco adiante uma criatura adoentada, de lenço e chale, tomava o sol; e duas matronas, com vidrilhos no mantelete, donas de casa de hóspedes, arejavam um cãozinho felpudo. O que atraia pois ali aquela mocidade pálida? E o que sobretudo o espantava eram as botas desses cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para fora da calça colante com pontas aguçadas e reviradas como proas de barcos varinos...

- Isto é fantástico, Ega!

Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples forma de botas explicava todo o Portugal contemporâneo. Via-se por ali como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, à D. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se à moderna: mas sem originalidade, sem força, sem carácter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro - modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha... Somente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciência de parecer muito moderno e muito civilizado - exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura. O figurino da bota que veio de fora era levemente estreito na ponta; - imediatamente o janota estica-o e aguça-o até ao bico do alfinete. Por seu lado o escritor lê uma pagina de Goncourt ou de Verlaine em estilo precioso e cinzelado; - imediatamente retorce, emaranha, desengonça a sua pobre frase até descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez o legislador ouve dizer que lá fora se levanta o nível da instrução; - imediatamente põe no programa dos exames de primeiras letras a metafísica, a astronomia, a filologia, a egiptologia, a cresmatica, a crítica das religiões comparadas, e outros infinitos terrores. E tudo por aí adiante assim, em todas as classes e profissões, desde o orador até ao fotografo, desde o jurisconsulto até ao sportman... é o que sucede com os pretos já corrompidos de S. Tomé, que vêem os europeus de lunetas - e imaginam que nisso consiste ser civilizado e ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão de progresso e de brancura acavalam no nariz três ou quatro lunetas, claras, defumadas, até de cor. E assim andam pela cidade, de tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e angustioso esforço de equilibrarem todos estes vidros - para serem imensamente civilizados e imensamente brancos...

Carlos ria:

- De modo que isto está cada vez pior...

- Medonho! É dum reles, dum postiço! Sobretudo postiço! Já não há nada genuíno neste miserável país, nem mesmo o pão que comemos!

 

Do Séc. XX: de Almada Negreiros, in “A Cena do Ódio

E inda há quem faça propaganda disto:

A pátria onde Camões morreu de fome

E onde todos enchem a barriga de Camões.

 

FERIADO DE 8 DE DEZEMBRO

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 08.12.20

Aquando da inauguração do Observatório de Greenwich, da medição da velocidade da luz e da descoberta do espermatozoide, em Coimbra, na única Universidade portuguesa então existente, era proibido dissecar cadáveres para se ter a certeza de não esquartejar a alma e o Rei D. João V teve que ordenar por Decreto à dita Universidade que defendesse o dogma da Imaculada Conceição.

8 de Dezembro de 2020

Henrique Salles da Fonseca

 COMENTÁRIOAnónimo, 08.12.2020  Em muitas situações estivemos muito avançados.


Nenhum comentário: