As coisas que o Dr. Salles vai buscar! Como se não nos bastassem
os desmazelos hoje, ou as referências críticas de escritores que tanto nos
zurziram, como Eça e outros
fizeram, agora mais esta do nosso beatério indecoroso antigo, contrastante com
o desenvolvimento científico dos outros países europeus. Apenas dois exemplos
de descomposturas antigas, não só inúteis como motivadoras das descomposturas
de hoje:
Do Séc. XIX: De Eça, in “Os Maias, cap. XVIII:
Pela
sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar, com flores na lapela, a calça
apurada, luvas claras fortemente pespontadas de negro. Era toda uma geração
nova e miúda que Carlos não conhecia. Por vezes Ega murmurava um olá!, acenava
com a bengala. E eles iam, repassavam, com um arzinho tímido e contrafeito,
como mal acostumados àquele vasto espaço, a tanta luz, ao seu próprio chic.
Carlos pasmava. Que faziam, ali, ás horas de trabalho, aqueles moços tristes,
de calça esguia? Não havia mulheres. Apenas num banco adiante uma criatura
adoentada, de lenço e chale, tomava o sol; e duas matronas, com vidrilhos no
mantelete, donas de casa de hóspedes, arejavam um cãozinho felpudo. O que
atraia pois ali aquela mocidade pálida? E o que sobretudo o espantava eram as
botas desses cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para
fora da calça colante com pontas aguçadas e reviradas como proas de barcos
varinos...
- Isto é fantástico, Ega!
Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso!
Porque essa simples forma de botas explicava todo o Portugal contemporâneo.
Via-se por ali como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, à D.
João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se
à moderna: mas sem originalidade, sem força, sem carácter para criar um feitio
seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro - modelos de ideias,
de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha... Somente, como lhe falta
o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciência de parecer muito
moderno e muito civilizado - exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à
caricatura. O figurino da bota que veio de fora era levemente estreito na
ponta; - imediatamente o janota estica-o e aguça-o até ao bico do alfinete. Por
seu lado o escritor lê uma pagina de Goncourt ou de Verlaine em estilo precioso
e cinzelado; - imediatamente retorce, emaranha, desengonça a sua pobre frase
até descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez o legislador ouve dizer
que lá fora se levanta o nível da instrução; - imediatamente põe no programa
dos exames de primeiras letras a metafísica, a astronomia, a filologia, a
egiptologia, a cresmatica, a crítica das religiões comparadas, e outros
infinitos terrores. E tudo por aí adiante assim, em todas as classes e profissões,
desde o orador até ao fotografo, desde o jurisconsulto até ao sportman... é o
que sucede com os pretos já corrompidos de S. Tomé, que vêem os europeus de
lunetas - e imaginam que nisso consiste ser civilizado e ser branco. Que fazem
então? Na sua sofreguidão de progresso e de brancura acavalam no nariz três ou
quatro lunetas, claras, defumadas, até de cor. E assim andam pela cidade, de
tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e angustioso esforço de
equilibrarem todos estes vidros - para serem imensamente civilizados e
imensamente brancos...
Carlos ria:
- De modo que isto está cada vez pior...
- Medonho! É dum reles, dum postiço!
Sobretudo postiço! Já não há nada genuíno neste miserável país, nem mesmo o pão
que comemos!
Do Séc. XX: de Almada Negreiros, in “A Cena do Ódio”
E inda há quem
faça propaganda disto:
A pátria onde
Camões morreu de fome
E onde todos
enchem a barriga de Camões.
HENRIQUE
SALLES DA FONSECA
A
BEM DA NAÇÃO, 08.12.20
Aquando da inauguração do
Observatório de Greenwich, da medição da velocidade da luz e da descoberta do
espermatozoide, em
Coimbra, na única Universidade portuguesa então existente, era proibido
dissecar cadáveres para se ter a certeza de não esquartejar a alma e o Rei D.
João V teve que ordenar
por Decreto à dita Universidade que defendesse o dogma da Imaculada Conceição.
8 de Dezembro de 2020
Henrique Salles da Fonseca
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