Quando, naqueles anos em que a guerra na
Argélia estava no auge e começaram outros países africanos a lutar pela sua
independência, o susto foi grande nas colónias portuguesas, que a dada altura,
para disfarçar, passaram a chamar-se províncias
ultramarinas. As descolonizações iam-se fazendo, lá no norte de África, mas
a verdade é que a nossa prioridade como ocupantes mais antigos, que com tanto
esforço épico foram pioneiros na abertura dos caminhos do mundo, ajudou a
fortalecer, aparentemente, mais, os laços de coesão pátria, que não passava no
espírito de Salazar perder. O certo
é que nunca anteriormente as colónias portuguesas se desenvolveram tanto, como
naquela década de sessenta e inícios de setenta, que um golpe de Estado trairia. Lembro-me das conversas com o
meu colega Esteves Pinto, de medo e
esperança, nos corredores da nossa escola, e mesmo depois do 25 de Abril, eu
esperava ainda, a ponto de o ouvir contrariar as minhas ilusões primárias, como
teria larga ocasião de o confirmar depois: “A
senhora levou uma autêntica lavagem ao cérebro”.
De facto, eu nada sabia de política
(continuo a nada saber), embrenhada nas funções docentes e domésticas, mas
lembro-me do calor que ganhei escrevendo curtos textos de humor, que publiquei em
74 com o nome de “Pedras de Sal”. Só ontem,
todavia, me apercebi das origens desses movimentos, graças ao artigo de Rui Ramos do Observador, sobre Mamadou Ba, citando Frantz Fanon que me fez ler o Prefácio
de Jean-Paul Sartre ao livro “Os
Danados da Terra” de Fanon,
na
Internet.
Sartre, cujas peças de teatro e algumas narrativas eu lia
com gosto, Sartre que
conhecia também através de Simone
de Beauvoir, que me traziam tantos dos prazeres de uma
intelectualidade solitária, nesse mundo que recordo com gratidão, por essa
rebeldia esclarecida que me chegava através da Minerva Central, onde tinha a minha conta mensal em livros do meu
prazer.
Sartre, de quem li
ontem o tal Prefácio a “Os Danados da Terra”,
mostrou-me essas origens dos tais movimentos
de libertação de África, e senti não a adoração de outrora, mas um certo
asco, pela crueldade implícita nesse seu incitamento à violência e desprezo
pelos seus próprios concidadãos, que tanta foi a violência desencadeada então.
Todavia, é poderosa a sua mensagem,
poderoso o seu estilo, a merecer admiração. Transcrevo apenas o início desse Prefácio. Talvez, se
o tivesse lido naquela altura, eu tivesse entrado com fervor em idênticos
princípios que contrariavam o meu apego à história dos nossos próprios heróis.
Mas não creio nisso. Vejo sempre, nesses portugueses navegantes, os heróis
idênticos a tantos outros desses gregos e romanos que foram dominando os mundos
com as suas armas e os seus tratados e o seu esplendor literário, ajudando à
evolução dos povos. Foi esse também o papel dos povos que conquistaram a
África, que outras potências - generosamente ou cinicamente - se propuseram
libertar – mantendo, todavia, por esse mundo, incongruentemente, outras que também
europeus foram dominando ao longo dos tempos. Até ver. A África foi, por enquanto, a eleita, num mundo
que não pára – nem na expressão do ódio nem na do amor, este, muitas vezes, apenas para “inglês ver”.
«Não há muito tempo, a terra estava povoada por dois biliões de habitantes,
isto é, quinhentos milhões de homens e mil e quinhentos milhões de indígenas.
Os primeiros dispunham do Verbo, os outros tomavam-no por empréstimo. Entre
aqueles e estes, reizinhos vendidos, senhores feudais, uma falsa burguesia
forjada de uma só peça, serviam de intermediários. Nas colónias, a verdade
aparecia nua; as «metrópoles» preferiam-na vestida; era necessário que os
indígenas a amassem. Como às mães, em certo sentido. A elite europeia
dedicou-se a fabricar uma elite indígena; seleccionaram-se adolescentes,
marcaram-lhes na fronte, com ferro em brasa, os princípios da cultura
ocidental, introduziram-lhes na boca mordaças sonoras, grandes palavras
pastosas que se colavam nos dentes; depois de uma breve passagem pela
metrópole, regressavam ao seu país falsificados. Essas mentiras viventes já
nada tinham que dizer a seus irmãos; eram um eco. Desde Paris, Londres,
Amsterdão, nós lançávamos palavras: «Pártenon! Fraternidade!» e em qualquer
parte da África ou da Ásia outros lábios se abriam: «...tenon! ...nidade!» Era
a Idade do Ouro.
Tudo se acabou: as bocas abriram-se sós; as vozes, amarelas e negras,
continuavam a falar do nosso humanismo, mas apenas para censurar a nossa
desumanidade……….»
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