quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Regresso às origens


Quando, naqueles anos em que a guerra na Argélia estava no auge e começaram outros países africanos a lutar pela sua independência, o susto foi grande nas colónias portuguesas, que a dada altura, para disfarçar, passaram a chamar-se províncias ultramarinas. As descolonizações iam-se fazendo, lá no norte de África, mas a verdade é que a nossa prioridade como ocupantes mais antigos, que com tanto esforço épico foram pioneiros na abertura dos caminhos do mundo, ajudou a fortalecer, aparentemente, mais, os laços de coesão pátria, que não passava no espírito de Salazar perder. O certo é que nunca anteriormente as colónias portuguesas se desenvolveram tanto, como naquela década de sessenta e inícios de setenta, que um golpe de Estado trairia. Lembro-me das conversas com o meu colega Esteves Pinto, de medo e esperança, nos corredores da nossa escola, e mesmo depois do 25 de Abril, eu esperava ainda, a ponto de o ouvir contrariar as minhas ilusões primárias, como teria larga ocasião de o confirmar depois: “A senhora levou uma autêntica lavagem ao cérebro”.

De facto, eu nada sabia de política (continuo a nada saber), embrenhada nas funções docentes e domésticas, mas lembro-me do calor que ganhei escrevendo curtos textos de humor, que publiquei em 74 com o nome de “Pedras de Sal”. Só ontem, todavia, me apercebi das origens desses movimentos, graças ao artigo de Rui Ramos do Observador, sobre Mamadou Ba, citando Frantz Fanon que me fez ler o Prefácio de Jean-Paul Sartre ao livro “Os Danados da Terra” de Fanon, na Internet.

Sartre, cujas peças de teatro e algumas narrativas eu lia com gosto, Sartre que conhecia também através de Simone de Beauvoir, que me traziam tantos dos prazeres de uma intelectualidade solitária, nesse mundo que recordo com gratidão, por essa rebeldia esclarecida que me chegava através da Minerva Central, onde tinha a minha conta mensal em livros do meu prazer.

Sartre, de quem li ontem o tal Prefácio a “Os Danados da Terra”, mostrou-me essas origens dos tais movimentos de libertação de África, e senti não a adoração de outrora, mas um certo asco, pela crueldade implícita nesse seu incitamento à violência e desprezo pelos seus próprios concidadãos, que tanta foi a violência desencadeada então.

Todavia, é poderosa a sua mensagem, poderoso o seu estilo, a merecer admiração. Transcrevo apenas o início desse Prefácio. Talvez, se o tivesse lido naquela altura, eu tivesse entrado com fervor em idênticos princípios que contrariavam o meu apego à história dos nossos próprios heróis. Mas não creio nisso. Vejo sempre, nesses portugueses navegantes, os heróis idênticos a tantos outros desses gregos e romanos que foram dominando os mundos com as suas armas e os seus tratados e o seu esplendor literário, ajudando à evolução dos povos. Foi esse também o papel dos povos que conquistaram a África, que outras potências - generosamente ou cinicamente - se propuseram libertar – mantendo, todavia, por esse mundo, incongruentemente, outras que também europeus foram dominando ao longo dos tempos. Até ver. A África foi, por enquanto, a eleita, num mundo que não pára – nem na expressão do ódio nem na do amor, este, muitas vezes, apenas para “inglês ver”.

«Não há muito tempo, a terra estava povoada por dois biliões de habitantes, isto é, quinhentos milhões de homens e mil e quinhentos milhões de indígenas. Os primeiros dispunham do Verbo, os outros tomavam-no por empréstimo. Entre aqueles e estes, reizinhos vendidos, senhores feudais, uma falsa burguesia forjada de uma só peça, serviam de intermediários. Nas colónias, a verdade aparecia nua; as «metrópoles» preferiam-na vestida; era necessário que os indígenas a amassem. Como às mães, em certo sentido. A elite europeia dedicou-se a fabricar uma elite indígena; seleccionaram-se adolescentes, marcaram-lhes na fronte, com ferro em brasa, os princípios da cultura ocidental, introduziram-lhes na boca mordaças sonoras, grandes palavras pastosas que se colavam nos dentes; depois de uma breve passagem pela metrópole, regressavam ao seu país falsificados. Essas mentiras viventes já nada tinham que dizer a seus irmãos; eram um eco. Desde Paris, Londres, Amsterdão, nós lançávamos palavras: «Pártenon! Fraternidade!» e em qualquer parte da África ou da Ásia outros lábios se abriam: «...tenon! ...nidade!» Era a Idade do Ouro.

Tudo se acabou: as bocas abriram-se sós; as vozes, amarelas e negras, continuavam a falar do nosso humanismo, mas apenas para censurar a nossa desumanidade……….»

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