Feito sem parti pris. Mostrando as ambiguidades de um comportamento que
muitas vezes exaspera, na busca de uma empatia dê por onde der e assumindo-a,
no fundo, indiferente a tudo o que não seja ele próprio, figura carismática que
só a si se escuta, sem fazer ondas, todavia, impávido e sereno, apoiado num
governo que também dele precisa, como demonstra superiormente António Barreto. Uma análise muito lúcida deste “Presidente de todos”, que,
quanto a mim, tal como a “Leonor”, vai
“para a fonte, descalça, pela verdura,
formosa e não segura”… Não há motivos, de resto, para se sentir "segura"…
OPINIÃO
Esplendorosa ficção
Um dos grandes méritos do Presidente
Marcelo foi e é o exercício forte e permanente da influência, sem o fazer
através das oposições. Isto é, directamente com o Governo, por um lado, com a
população, por outro. Nisto foi muito diferente de Soares, de Sampaio ou de
Cavaco.
PÚBLICO,19
de Dezembro de 2020
O
balanço global do primeiro mandato do Presidente Marcelo é
evidentemente positivo. Muito. Ao contrário do que tanto se diz, os seus
maiores trunfos não foram os afectos, nem os seus principais efeitos foram
sentimentais. Apesar do frenesim e da agitação, o Presidente trouxe
serenidade às instituições. E fez com graça o que outros fariam com solenidade
ou fútil popularidade.
Um dos grandes méritos do Presidente
Marcelo foi e é o exercício forte e permanente da influência, sem o fazer
através das oposições. Isto é,
directamente com o Governo, por um lado, com a população, por outro. Nisto foi
muito diferente de Soares, de Sampaio ou de Cavaco. Aproximou-se
dos adversários e distanciou-se dos seus, gesto em que muitos vêem o princípio
da traição, mas que é a maior dificuldade na acção de um Presidente eleito: ser
Presidente de todos.
Não exerce a influência que tem
graças ao seu poder que, à partida, não tinha. Através da sua influência, conquistou poder.
Fez-se sentir útil e necessário. O Governo precisou dele. O Partido Socialista
também. E o primeiro-ministro António Costa nem se fala.
Resolveu um problema delicado: o de
articular poder com influência.
Já tivemos Presidentes com uma e sem o outro. Ou vice-versa. Deu geralmente
desastre. Ou insignificância. No seu caso, conseguiu raro equilíbrio.
Popular, combateu o populismo. Jurista, privilegiou a política.
Intelectual, exprime-se com impressionante simplicidade.
O sistema semipresidencialista, iniciado
e mal conduzido por alemães, codificado por franceses, com relevo para Maurice Duverger e
seguido por devotos portugueses, tem-se revelado útil de vez em quando, inútil
quase sempre e prejudicial muitas vezes. Uma
revisão histórica dos mandatos presidenciais portugueses mostrará um balanço complexo. Vários Parlamentos dissolvidos e Governos
demitidos por causa da dupla legitimidade constituem um inventário pouco
favorável a este sistema. A concorrência de legitimidades provocou mais
danos do que êxitos. Esta dualidade, nefasta para a resolução de problemas e de
crises, é de especial afecto de muitos juristas e políticos portugueses, amigos
de invenções complicadas. Com esta solução, pouco original, não só
porque vinha de França, mas também porque se aproximava das primeiras décadas
do Estado Novo, os constituintes tentavam evitar Afonso Costa e o seu caos jacobino, mas também as tentações de Sidónio
Pais, de Álvaro Cunhal e de Vasco Gonçalves. Com um pouco mais de poderes, o Semipresidente
também seria antídoto contra Salazar, adepto do sistema, mas numa variante
especial com ditadura do primeiro-ministro.
O primeiro grande mérito do Presidente
Marcelo terá sido o de ter conseguido usar o sistema,
cumprindo-o, mas colocando-se sempre do lado da estabilidade e do apoio aos
poderes parlamentares e executivos.
Ao contrário dos seus antecessores, quase todos, não se especializou em dar
alento às oposições, nem contrariar o Governo com intriga e boatos. Também não
criou obstáculos inaceitáveis às leis do Parlamento e não vetou quantidade
excessiva de diplomas do Governo. Nem sequer, para surpresa de muitos,
“plantou” notícias nos jornais ou “semeou” recados nas televisões.
Correu
tudo de tal maneira que o sistema semipresidencialista fica quase reabilitado. Quase!
Na verdade, o mandato e a legislatura resultaram porque ambos precisavam
vitalmente um do outro, Marcelo e Costa, Presidente e Governo. Nunca se tinha ido tão longe no entendimento. A razão
é simples: sem Governo, sem partido, sem movimento, sem corpos intermediários e
apenas em ligação directa através de abraços e de selfies, Marcelo precisava de
um profundo entendimento com o Governo. Teve o mérito de o perceber. E de o
praticar.
Sem maioria, sem apoio parlamentar inocente, fugindo a uma coligação formal,
as habilidades de António Costa alimentaram-se do apoio presidencial, sem o
qual de nada serviriam. Sem
maioria, prisioneiro da extrema-esquerda, com vontade de liderar um Governo
moderado no essencial e radical no acessório, o primeiro-ministro necessitava
de um Presidente. Este foi o seu sésamo e o seu pára-raios.
Com
o Partido Socialista de António Costa, Marcelo garantiu uma espécie de bloco histórico (socialistas
e sociais-democratas, católicos e laicos, esquerda e direita moderadas) e
permitiu uma longa duração ao mais esquerdista de todos os Governos desde 1976. Num ciclo de queda da direita quase irreparável,
Marcelo permitiu a sobrevivência de um estado de espírito e de uma memória da
direita democrática.
Em algumas áreas importantes, Marcelo
perdeu, não conseguiu ter influência, pelo que se distanciou: na Justiça, no SEF, no financiamento do
Serviço Nacional de Saúde, na TAP, no Novo Banco… O
que se lamenta, pois foram as nódoas negras que ainda hoje afligem o país. Mas
tantos fiascos tiveram um lenitivo: foi de influência decisiva em certos casos
dramáticos, como os de Tancos e dos incêndios de Pedrógão e de Castelo Branco.
Há ainda o caso da segurança, isto é, das Forças Armadas e das
polícias, dos efectivos e do equipamento, assim como da legislação e dos órgãos
de supervisão. O Presidente não pode
evidentemente limitar-se a observar. Nem apenas ficar à espera, não se sabe de
quê. No seu segundo mandato, espera-se que o sempre difícil problema da
segurança mereça do Presidente a atenção que deve. Estranhamente ausente no
recente caso do SEF.
As suas qualidades pessoais superam
largamente os seus defeitos. É culto, talentoso e tem graça. Tem rara
consciência do carácter europeu do país, ao mesmo tempo que guardou uma espécie
de afeição pelas antigas amizades africanas. É certamente o Presidente que
melhor conseguiu conjugar as duas inspirações ou as duas ligações.
A Presidência de República é, em Portugal, uma ficção. Vistosa e ilusória. Episodicamente, pode revelar-se
muito importante. Dá a impressão que tem poder. Julga-se que tem enorme
influência. Pode conter drama e paixão. Desperta mais indiferença do que
inveja. Raramente satisfaz quem dela espera algo de decisivo. Pede-se-lhe tudo,
mas quase nada se obtém. E se nada vem, também não faz mal. Não tem adeptos
fervorosos, tem sobretudo áulicos e cortesãos. Mas tem desmedido poder de
atracção. É uma verdadeira ficção. Que pode ser uma obra-prima, como se sabe.
Sociólogo
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COMENTÁRIO:
Mario Coimbra EXPERIENTE: Brilhante análise
do primeiro mandato de Marcelo. Tenho muita pena que nunca tenha sido PM. Vou
votar nele para um segundo mandato.
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