Não só pela forma descontraidamente
apelativa com que Jorge Fernandes expõe as
suas observações de leitura, mas por o saber jovem e interessado nelas. Talvez
isso seja estímulo para outros jovens se decidirem segui-lo, além de lhe
ficarmos gratos pelas leves informações sobre os conteúdos literários das obras
que menciona.
O melhor de 2020 /premium
Esta crónica é a minha última publicação no Observador
antes do Natal. Como não pode haver Natal sem livros nos presentes, deixo aqui
uma lista dos livros dos quais tirei mais prazer em 2020.
JORGE FERNANDES
OBSERVADOR, 16 dez 2020
O
ano de 2020 terá certamente poucas coisas boas para recordar. No entanto, os
livros lidos ao longo deste ano em que o vírus obrigou o mundo a estar em casa
ficarão na memória. Este ano li mais do que o costume, não necessariamente por
causa da pandemia – até porque, quem me conhece, sabe que já estou em
semi-confinamento há anos – mas porque tomei, finalmente, a decisão sensata de
eliminar as minhas contas nas redes sociais. Em Março, nas primeiras semanas de
confinamento, o nível de insulto e debate sobre a pandemia nas redes atingiu o
paroxismo, levando-me a abandoná-las de vez. O balanço? Não poderia ser mais
positivo. Quaisquer benefícios profissionais da presença nas redes, e existem
sem dúvida, são claramente ultrapassados pela higiene mental de não estar
exposto continuadamente ao bas-fond da sociedade. Esta crónica é a minha última
publicação no Observador antes do Natal. Como não pode haver Natal sem livros
nos presentes, deixo aqui uma lista dos livros dos quais tirei mais prazer em
2020.
James Wood: Selected Essays, 1997-2019. Uma recolha dos melhores ensaios de James Wood sobre literatura, onde não faltam os temas clássicos
que permeiam toda a sua obra, mesmo quando subliminarmente: o problema da Teodiceia, a importância da narrativa limpa e sem ranço
retórico, o viver entre dois países separados por um oceano e a mesma língua.
Tive o privilégio de ser aluno de Wood durante 3 semestres em Harvard e, ao ler
estes ensaios, parece que consigo ouvir a sua voz a dizer no final da aula: “we
only have ten minutes left, so why don’t we just read for pleasure?”.
Mónica Baldaque: Sapatos de Corda – Agustina. A filha de Agustina Bessa Luís entrega-nos um
documento maravilhoso onde podemos olhar para a frincha entreaberta da
intimidade da escritora, que, ao longo de décadas, apesar de estar no espaço
público, foi sempre reservada sobre a sua vida. O livro é um pouco desigual.
Por vezes, a figura de Baldaque sobressai em demasia, como quando fala
sobre as venturas e desventuras na museologia Portuguesa, e é-nos dito muito
pouco sobre o papel de Alberto Luís na obra de Agustina. De qualquer
forma, altamente recomendável!
Joaquim Nabuco: A Minha Formação. Em 2000, Caetano Veloso fez um disco chamado Noites do Norte,
inspirado na obra de Nabuco, um dos deputados que lutou no Brasil pelo
abolicionismo no século XIX. Apesar de ter ouvido o disco dezenas
(centenas?) de vezes ao longo das últimas duas décadas, nunca tinha tido
oportunidade/vontade de ler a obra maior de Nabuco. A edição Portuguesa é de
2015, na colecção da Glaciar, apoiada pela Gulbenkian. Confesso que a primeira
parte do livro foi uma enorme desilusão. Nesta parte, Nabuco descreve
longamente o seu deslumbramento (vagamente saloio) com Inglaterra, Bagehot e as
instituições do parlamentarismo, como se estas surgissem de forma natural em
cada país e não fossem endógenas às escolhas que as elites fazem. Enquanto
lia esta parte percebi, finalmente, o motivo pelo qual João Pereira
Coutinho prefaciou o livro, pormenor que
não tinha conseguido perceber anteriormente. No entanto, a perseverança é
necessária! O último terço do livro, na qual Nabuco descreve a sua infância e a
sua condição de filho de um dono de escravos, o seu despertar para o problema
da escravatura e o seu trabalho legislativo para pôr fim a tal abjecção, é
profundamente tocante e muito bem escrito.
Helen Garner: The Spare Room. Em
2006, Helen Garner,
escritora Australiana, escreveu
esta obra singular, na qual descreve a relação de duas amigas de longa data,
quando uma delas, doente com cancro, pede à outra para a receber em sua casa
enquanto ela faz tratamentos em Melbourne. Uma obra de autoficção onde está
muita coisa a acontecer, apesar da (aparente) simplicidade.
Hadley Freeman: House of Glass — The story and
secrets of a Twentieth Century Jewish family. Talvez o livro que mais
prazer me deu este ano. Um livro de não-ficção sobre uma família judaica, de
origem Polaca, que foge da sua terra natal na Galícia e dos pogroms dos anos 20
para Paris. Julgando-se em segurança em França, os membros da família
subestimam a ameaça Nazi à comunidade judaica em França no final dos anos 30,
acabando por ter sortes bastante diferentes.
Annie Ernaux:
Os Anos. A história de
França e de um certa geração contada num misto de história da vida privada
misturada com História maior do país. Passando pelos anos do pós-Guerra, nos
quais esta ainda dominava os almoços familiares de Domingo, o Maio de 68, a
eleição de Mitterrand em 1981 e os auspícios de tomada de poder dos derrotados
de Maio, e terminando no dealbar do novo milénio. O mais interessante em
Ernaux, e na sua geração, de resto, é a ausência total de noção do seu próprio
privilégio. Ao longo do livro, a autora não consegue colocar os privilégios da
sua geração em perspectiva com as gerações anteriores e posteriores. Um
documento notável!
Dorthe Nors:
Wild Swims – Stories. Uma escritora Dinamarquesa que tem uma mão
simplesmente fantástica para o conto.
Não sendo minimalista, não há aqui nada mais do que o necessário. Passados em
várias latitudes, os contos deste volume são uma óptima porta de entrada para o
universo de Nors. A manter debaixo de olho.
Magda Szabó – A Balada de Iza. Supostamente o melhor livro de Szabó, escritora
maior da literatura Húngara, é A Porta. Confesso
que já tentei começar A Porta duas vezes, mas, em ambas as vezes, parei ao fim
de algumas páginas. Provavelmente, ainda não tive sorte de ler o livro no
momento certo. Li com muito prazer este Balada de Iza. O livro é algo bizarro e
confesso que cheguei ao fim a querer mais, como se houvesse coisas por dizer
acerca de Iza, médica que traz a mãe para viver com ela para Budapeste
Comunista depois da morte do pai. Fiquei sem saber (ou perceber?) se Iza é uma
personagem com vida política, ou, pelo contrário, se a proscrição do pai do
cargo de juiz por motivos políticos na sua infância a tornou uma niilista
cínica. A necessitar de reler para procurar a resposta ao puzzle.
Claire Messud – Kant’s Little
Prussian Head and Other Reasons Why I Write: An Authobriography through Essays. Não consigo achar Claire Messud uma escritora
maior. No entanto, confesso que gostei desta “autobiografia”. A primeira
parte é genial, simplesmente. Messud tem, pelo menos, dois ensaios de antologia
sobre a família, a vida dos pais, e a morte do pai. Ajuda o facto de o pai ser
um Judeu Francês, que trabalhou para o MNE Francês antes, durante e depois da
Guerra, com uma história riquíssima. A indecisão sobre a ida a Beirut enquanto
o pai morria no Connecticut é um momento maior. A segunda parte do livro era
dispensável.
Robert
Arlt: Águas Fortes Portenhas. Gostei muito de ler a maior parte dos
contos de Arlt, escritor Argentino, que consegue construir personagens muito
interessantes. Não sendo, exactamente, um leitor de literatura Latino
Americana, com excepção do Brasil, passei momentos muito interessantes, alguns
até divertidos, a ler a colectânea editada pela Ponto de Exclamação.
Zadie Smith: Intimations – Six
Essays e Fang Fang: Wuhan Diary –
Dispatches from a Quarantined City. A literatura
sobre a pandemia explodirá nos próximos anos. Até agora li apenas estes dois livros, com
perspectivas muito diferentes. Smith em Nova Iorque descreve a interacção com
os vizinhos e as lojas numa cidade que rapidamente se esvazia. Fang
Fang escreveu este diário de Wuhan nos
momentos mais negros da pandemia na China. Neste livro percebe-se como um regime totalitário
Comunista (perdão pelo pleonasmo) tem instrumentos muito mais poderosos do que
as democracias liberais para coarctar a liberdade (e o vírus).
Vanessa
Spingora: Consentimento. A
sociedade Francesa tem uma abordagem, no mínimo, sui generis à vida sexual da
elite política, intelectual e cultural. Ao contrário dos Americanos, puritanos
até ao tutano, durante décadas, em França foi visto com total normalidade não
só a promiscuidade, mas o abuso sexual, desde que feitos em nome da arte,
claro. No entanto, o ambiente está a mudar. O livro de Spingora não seria
possível há uns anos, antes de movimentos como o MeToo. Nele, a autora narra na primeira pessoa, a sua
relação com o escritor Gabriel Matzneff, quando tinha 13 anos e este último
mais de 50. O livro é bastante chocante pela crueza com que a autora narra os
acontecimentos. Cito “Quando anuncio à minha mãe que deixei o G., primeiro ela
fica sem voz, depois diz-me, com ar entristecido: ‘Coitado, mas tens a certeza?
Ele adora-te’”.
Feliz Natal!
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