quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Em redor de Marcelo

 Um texto – positivo para MRS - de MARIA JOÃO MARQUES, análise bem estruturada, apoiada em leituras e não somente em parecer subjectivo; uma pequena crónica simpática, de MIGUEL ESTEVES CARDOSO, bem subjectiva e corajosa nas afirmações de empatia por um PR actualmente mais zurzido, sobretudo pelo seu dispêndio descontraído de afectos sorridentes que grande parte do high life intelectual -ou puramente burguês – repele como de mau gosto sensaborão, mas não só por esse motivo mais visível. O terceiro texto – de MARIA JOÂO AVILLEZ - exprime a mesma repulsa, com o seu requinte e a ironia habituais, em promessa de ausência eleitoral, verdadeira ou falsa, da sua autora. Acrescento apenas um comentário a cada um dos textos que, naturalmente, mereceram diferentes pontos de vista.

 Quanto a mim, suponho que os votos em MRS, que espero que ganhe, apesar de tudo, resultarão de um sentimento de receio por um desastre ainda maior, caso fosse eleito outro qualquer pretendente ao cargo. Apesar de tudo, Marcelo serviu, um pouco, de travão, numa triste geringonça – o que não iria suceder com nenhum outro candidato. 

I- OPINIÃO: Marcelo Rebelo de Sousa, caso de estudo

Aparentemente nas próximas décadas os líderes preferidos serão os mais genuínos e com uma relação mais afectiva com os eleitores.

MARIA JOÃO MARQUES         9 de Dezembro de 2020

Aqui o alucinante ano de 2020 não surpreendeu: Marcelo Rebelo de Sousa vai ser novamente candidato à presidência da República.

Marcelo Rebelo de Sousa é um produto político muito curioso. Vivemos – já foi repetido à exaustão – num tempo propício a líderes populistas, onde têm proliferado espécimes do mau ao execrável, com pulsões antidemocráticas, promovendo o abandalhamento das instituições dos seus países, atacando ou engolindo os sistemas judiciais, minando a liberdade de imprensa. E, no entanto, o presidente português, o contrário de tudo isto, tem sucesso.

Julgo que tal não se deve a nenhum excepcionalismo português. Tenho para mim que Marcelo Rebelo de Sousa é bem-sucedido precisamente porque interpreta tão bem o ar do tempo quanto os (de maus a execráveis) líderes populistas. Percebe bem o que muitos dos eleitores procuram nos políticos. Só que o faz em prol de valores positivos. E, nesse sentido, MRS é um caso de estudo que devia interessar os que procuram uma resposta política eficaz aos populismos perniciosos.

E o que procuram, então, os eleitores nos políticos? Actualmente, acima de tudo, procuram representatividade e autenticidade. E mais: a convicção de que, para aquele político em concreto, contam. Não, não procuram seres impolutos e incorruptos (o descaso com que se apoia a corrupção dos populistas é a prova A disto mesmo). Também não procuram quem lhes traga prosperidade económica – ou procuram, porém, em boa verdade, tirando ressurgimentos de nostalgias marxistas, prontamente e resolutamente repudiadas pelos eleitores – como sucedeu com Corbyn, por exemplo – as diferenças das propostas económicas actualmente são mais de grau que de natureza. Já não é a economia que mais diferencia os políticos.

Marcelo Rebelo de Sousa é uma pessoa afectiva e afectuosa. Nota-se. Claramente aprecia o folclore dos beijinhos e das selfies. Até pode ser uma encenação – mas é uma encenação de que retira tanto prazer quanto os que partilham os auto-retratos. Todos nós conhecemos os calções de banho azuis claros lisos preferidos do presidente. Vimos uma quantidade de vezes numerosa o presidente trocando os ditos calções molhados enrolado numa toalha de praia.

Recentemente observámos o Presidente meio nu tomando a vacina da gripe. Fez lembrar as fotografias de Putin também de tronco nu que o Kremlin divulga. No entanto, Putin usa-as para projectar a imagem de macho alfa e líder vigoroso e forte. O presidente português para promover a saúde pública (que as vacinas da gripe este ano tenham sido insuficientes são outros quinhentos.)

Este à vontade consigo próprio, a descontracção, a facilidade e o manifesto apreço no relacionamento com os eleitores tornam Marcelo Rebelo de Sousa alguém que estes vêem como autêntico. E que lhes tem afecto. Ora, tendo afecto pelos eleitores, deduzem que se preocupa, cuida do seu bem-estar.

Num mundo de políticos coreografados, pouco espontâneos, contidos, que se mostram da forma que estão convencidos que os eleitores querem um líder, em vez de se mostrarem como são, com imagens artificiais, claramente a encarnar uma persona de que não fazemos ideia do que está por trás, onde até as imagens alegadamente descontraídas são extremamente estudadas, não devemos estranhar um político espontâneo e afectuoso ser bem-sucedido. Porque a coreografia, a plasticidade e a artificialidade geram desconfiança. O político não é exactamente o que está a mostrar. Por que será? O que será, afinal?

Viajemos até Trump. Os seus eleitores adoravam-lhe as gaffes, os insultos, a linguagem sem nexo nem frases funcionais, o temperamento trapaceiro. Adoram que não se faça passar por institucional. Trump não vai fazer fretes à Metropolitan Opera para parecer culto. Não colecciona arte. Nem se esforçava sequer para parecer decente. Donde, muitos eleitores concluem que, pelo menos, Trump não mente sobre si próprio para caçar votos. É aquilo que mostra. Pode-se confiar. Por outro lado, claramente Trump delira com as multidões dos seus comícios. Gosta dos seus eleitores (e odeia os que não votam nele). Há uma relação de afectividade entre Trump e os seus eleitores sem qualquer dúvida. As pessoas só alucinam a ponto de não acreditar em claros resultados eleitorais, ou de perdoar um mentiroso compulsivo, quando há doses grandes de paixão envolvidas.

Nos anos 1990, a característica que mais distinguia os líderes emblemáticos era o carisma. Muito se escrevia sobre carisma, essa qualidade indefinível. A maioria dos políticos não tinha, era demasiado cinzenta. Vários tentavam fabricar carisma, mas debalde, já vem de nascença.

Actualmente o carisma desvaneceu-se. Os estudos sobre a autenticidade dos políticos e os seus efeitos eleitorais começam a surgir. Um deles, do ano passado, Candidate Authenticity: ‘To thine own self be true’, concluiu que somente os traços autenticidade e liderança se sobrepunham às fidelidades partidárias na avaliação dos políticos. O que dá uma ideia de quanto é valorizada.

Curiosamente, estas eleições presidenciais trouxeram-nos três candidatos autênticos. Não é coincidência. Ana Gomes é uma política desabrida, corajosa, conhecida por dizer verdades inconvenientes (até para o seu partido) e por puxar assuntos que outros queriam debaixo do tapete. Marisa Matias é empática, também agradável no contacto com os eleitores, calorosa. (Já André Ventura é muito coreografado como líder populista-nacionalista. Mas as limitações de Ventura como líder populista eficaz ficam para outras calendas.)

Claro que nenhum dos candidatos é só autêntico e/ou afectivo. Marcelo Rebelo de Sousa é inteligente (cognitivamente e emocionalmente, daí ler tão bem a população e as tendências mundiais), incansável, também com a sua dose de maquiavelismo. Ana Gomes tem uma carreira respeitável e vários temas incontornáveis no CV, desde Timor aos voos ilegais da CIA. Marisa Matias é articulada, com ideias sólidas e experiência. Têm, igualmente, muitos pontos negros no percurso ou no discurso, qualquer um. Mas a autenticidade de todos é o que os torna bons candidatos.

Como referi inicialmente, há aqui uma lição. Aparentemente nas próximas décadas os líderes preferidos serão os mais genuínos e com uma relação mais afectiva com os eleitores. Talvez haja também este encanto com a autenticidade, e não somente o encanto com o simplismo do populismo. A artificialidade na política saiu de moda e a autenticidade é a nova tendência. Economista

TÓPICOS: OPINIÃO  PRESIDENCIAIS 2021  MARCELO REBELO DE SOUSA  ANA GOMES  DONALD TRUMP  ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS  PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

COMENTÁRIO: Consulta Médica INICIANTE: Muito bem analisado. Mais uma vez felicito a autora com quem, na grande maioria das vezes, não me revejo nos seus escritos. Discuto ideias e não pessoas

II -CRÓNICA: Marcelo é uma sorte

É espantoso que um só indivíduo tenha as qualidades que tem Marcelo. E ainda a qualidade de usá-las todas para ser um bom chefe de Estado.

MIGUEL ESTEVES CARDOSO    PÚBLICO, 9 de Dezembro de 2020

É difícil, por exemplo, percebermos a sorte que temos por Marcelo Rebelo de Sousa se recandidatar. Mas nunca tivemos nem nunca teremos um Presidente da República tão bom – tão enérgico, inteligente, educado, simpático, flexível, gentil, eloquente, dedicado, generoso, capaz, racional e sábio – como Marcelo.

Ainda o podemos ter por mais cinco anos. Já o conhecemos como presidente. Ele diz que é a mesma pessoa – e é. Como tudo o que tem a ver com Marcelo Rebelo de Sousa, isto é mais difícil e admirável do que parece. Ele não é um catavento: tem confiança nele próprio que chegue para resistir às voltas da fortuna e da vontade. Mas muda quando é preciso e, sobretudo, não tem medo de mudar.

Da lista de qualidades que fiz aposto que “flexível” é considerada a menos importante. Mas não é. A rapidez da resposta de Marcelo é uma coisa, mas a conveniência e a utilidade dela é outra.

Faz parte da ingratidão e da justiça julgar que Marcelo gosta de andar por aí a “distribuir afectos”.

Pelo contrário, encara esse trabalho como parte das funções dele. É um trabalho difícil, arriscado e inovador que ele faz melhor do que ninguém – não por entrar em piloto automático mas por se dedicar inteiramente à tarefa, com tudo o que isso tem de humanismo, empatia, sensibilidade, optimismo e abertura.

Aposto que, depois de “flexível”, foi “dedicado” o adjectivo que se considerou menos importante do que os outros. É preciso lembrar que qualquer lista de qualidades vale pela soma. É espantoso que um só indivíduo tenha as qualidades que tem Marcelo. E ainda a qualidade de usá-las todas para ser um bom chefe de Estado.

TÓPICOS: OPINIÃO  PRESIDENCIAIS 2021  MARCELO REBELO DE SOUSA  ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS  PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

COMENTÁRIO: Fugo EXPERIENTE: Sendo-se capaz de observar com imparcialidade e objectividade, não tenho dúvidas nenhumas que Marcelo Rebelo de Sousa é, sem qualquer sombra de dúvida, o melhor Presidente da República que conheci em vida e, estou quase cem por cento seguro que é o melhor de todos os tempos. Até por causa dos tempos. Ainda bem que o podemos ter por mais cinco anos.

III -Os estafetas (ou viver como inabitualmente)/premium

Saí dos estúdios da SIC-N com a pesada dúvida sobre quem estaria mais perturbado: se eu, ao ouvir as palavras do Presidente da República, se ele, por as dizer. Ou melhor, por ter querido dizê-las.

MARIA JOÃO AVILLEZ        OBSERVADOR, 09 dez 2020

1Já se notou: é farta a quantidade de estafetas que o Presidente da República tem na “media” a correr por ele. A troco de um pedaço de açúcar — um poderoso telemóvel que zumbe de Belém, um elogio que mesmo que nunca sentido é “distinção” inesquecível; um convite para almoçar que do dia para a noite, transfigura um jornalista num comensal do Palácio, etc. Não sabemos quantos se desvanecem com isto, suspeitamos que muitos, mas sabemos porém que foram poucos os que se aperceberam da ocorrência de dois factos desagradavelmente inabituais, assinados por Belém.

Facto um: o Chefe de Estado achou, digamos, natural (?) informar o país através de um programa televisivo da SIC Notícias que sim, na sua percepção das coisas, o primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, o seu ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa e o chefe de gabinete de Sá Carneiro, António Patrício Gouveia, tinham sido assassinados no dia 4 de Dezembro de 1980. Ah bom? Foram? Foram porque ele, Marcelo, acha que foram? Agora, em hora quase eleitoral? O modus operandi desta intervenção presidencial permite dúvida e acalenta a estranheza. Se as famílias não mereciam um reabrir da ferida e do desgosto provocada pelo “achar” do mais alto magistrado da nação, interrogo-me sobre como se terão os portugueses confrontado com tal desabafo presidencial? Saí dos estúdios da SIC-N com a pesada dúvida sobre quem estaria mais perturbado: se eu, ao ouvir as palavras do Presidente da República, se ele, por as dizer. Ou melhor, por ter querido dizê-las.

Facto 2: o Chefe de Estado, auto-dispensando-se da maçada de uma campanha eleitoralestá há cinco anos a fazê-la com zelo e afinco diáriosfoi-se auto-dispensando igualmente e até ao limite do entendível, de avisar os portugueses sobre as suas intenções. Mesmo porém se já conhecidas de sobra (apesar do extraordinário “se” deste próprio jornal, titulando “Marcelo anuncia ‘se’ se recandidata”…) o Presidente fê-lo desnecessariamente tarde. A pátria teria apreciado tratamento menos leve ou mais discreta indiferença presidencial pelas regras do jogo. O tão tardio anúncio relegou para segundo plano não só costumes e normas como o próprio eleitorado a quem enquanto se pede essa coisa poderosamente valiosa que é um voto, ao mesmo tempo se trata com a indisfarçável condescendência do “já adquirido” ou da certeza antecipada do êxito deste candidato-comentador de si mesmo. Nas marés fáceis houve as selfies e a sacrossanta proximidade; nas tormentas – os incêndios, a pandemia, as quase crises políticas – houve por vezes mas sempre perceptivelmente, contradição, hesitação, aflição. Que é uma outra forma para designar alguém que não nasceu para ser “de todas as estações”.

2Viver como inabitualmente: malas que se fazem e desfazem. Talvez nos mudemos, talvez não, bagagens sem data. Vamos para a semana?. Não afinal não, atordoados por algarismos e gráficos que só sobem sem descer, projectados como dardos por todos os écrans. Melhor não, adia-se o regresso a Lisboa. Uma nova forma de vida, esta inabitualidade. E assim estamos, fora de portas desde março, e como março vai longe. Mas há árvores e mar, um luxo de que me dei conta a cada minuto da vilegiatura: uma via-sacra para tantos, generosa morada para nós. Fomos estando, suportando a saudade, trabalhando, aspirando o campo ou o Atlântico, primavera, verão, outono, e agora já com invernais intempéries. Estações do ano que foram mais tateadas que vividas, na procura espantada de novos hábitos. Fez-se uma horta, houve mais rosas que nunca, aprendemos a lidar com as caprichosas neblinas matinais de que este Oeste tem o segredo e certamente o exclusivo. Somos já quase resilientes na dureza incalculável que é o viver longe dos “nossos”, no cultivar da “distância” como um mandamento, no uso de fantasmáticas máscaras no rosto, no manuseamento dos zoom e outros aparatos, enquanto o ofício conseguiu sair ileso (agradecerei sempre o enérgico ano profissional que tive em mais do que uma sede jornalística).

3O pior porém é este “agora”. Um terrível, temível remake. É que nos meses de verão – lembram-se? – houve dias quase parecidos com a vida de dantes, chegámos a pronunciar a palavra ‘férias’ e até a enfeitá-la com outras geografias. Olhávamos para nós descobrindo com falso alívio vestígios da “normalidade” de outrora. Ousávamos até desafiar amigo para o terraço, jantar fora, atravessar uma avenida, pisar a rua, ver gente. Hoje, não. Como em Março, Abril, Maio, voltaram restrições e proibições – recebidas com anómalo assentimento de resto; polícia a vigiar horários, deslocações, viaturas, identidades. Para sair, só com salvo conduto, menos mal que o concelho destino onde passei a morar está a salvo do salvo conduto. Mas em Março, recordo-me bem, a inabitualidade era, digamos, uma aprendizagem contínua, mesmo se aflita e hesitante. Não contávamos que durasse, seria coisa de semanas, parecia até impossível, um absurdo, o mundo ia lá aguentar muito mais tempo? Agora, uma eternidade depois, sabemos que durará. Continuaremos encaixados numa inabitual incerteza, é difícil viver em remake. Além de que a horta esmaeceu, as rosas escasseiam, a viagem do inverno é sempre longa em demasia. E até a armação do presépio foi rara em Natal raro: em vez de montado a várias mãos e gerações, foi feito conjugalmente, uma estreia inabitual.

Mas há sempre, inamovível o porto de abrigo das palavras, é com elas que tenho contado e delas que me tenho abastecido nesta travessia. Encaixo-as na certeza – a única que verdadeiramente tenho – de que o seu uso pode ser infinito. E benévolo, se soubermos lidar com elas.

4Pelo sim pelo não, deixo as malas feitas. Não tenho nenhuma pressa da capital mas nalgum lado se há-de acolher a meta do fim do pesadelo. Mesmo que melancolicamente ficcionada.

PS: Tanto quanto me é possível uma afirmação assim, não conto, em princípio, tomar parte activa nas eleições presidenciais. Não me calha pessoalmente, não me inspiram profissionalmente. Reconheço a inabitualidade da confissão. Mas há cinco anos passei um mês no Brasil pelo mesmo motivo, agora passarei um mês e meio numa outra lonjura qualquer, mesmo que inventada. Ou meramente mental. Sempre agradeci a Deus a intuição que me deu e com a qual me oriento, mesmo tropeçando. É ela que me dita que neste eleitoral período onde entro mal como num casaco apertado, o melhor é abalar e não maçar o leitor. E depois se verá o que houver para ver.

MARCELO REBELO DE SOUSA  PRESIDENTE DA REPÚBLICA  POLÍTICA  ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS  ELEIÇÕES  PANDEMIA  SAÚDE

COMENTÁRIO:

Domingas Coutinho: Ridícula a encenação do anúncio da candidatura como sempre a fingir que vai só. Ridículo este tabu quando de facto mandou os arautos à frente. Ridícula a apresentação da ideia de que o País precisa dele e de que agora é que vai ser. Ridículos e duvidosos os apoios públicos que se lhe colam. Tem razão Maria João quando diz que vai para longe. Eu também ia se pudesse.

 

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