domingo, 13 de dezembro de 2020

Mas tudo se vai amanhando


De bem com Deus e o Diabo, com a paciência necessária, «escravos cardíacos das estrelas» que somos, pelo menos cá por casa – como disse Álvaro de Campos, sempre muito deprimido com as suas ambições de génio consciente das suas restrições, embora sem grandes razões para assim pensar, como de resto, ele bem sabia:

«Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;

Mas acordámos e ele é opaco,

Levantámo-nos e ele é alheio,

Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.»

Por isso, apesar dos nossos enjoos e amarguras, que também temos, por motivos mais comezinhos mas de igual grandeza, nesta coisa das relativizações, lá vamos comendo o chocolate, como a «pequena suja» da sua “Tabacaria”, pensando que mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. Ideologias sim, ou pretensões a tê-las, mas, para nós, o dinheirinho de Bruxelas é que conta mesmo, pássaro na mão, com democracia ou sem ela, - como o tal chocolate da pequena devoradora. Aceitando que nos cortem o rabo como o tal “lagarto” da mesma “Tabacaria”, pois continuaremos a ser “lagartos”, “remexidamente” que seja, à espreita sempre, e conformados com o que der e vier, sem as grandes ralações, como as que vemos noutros povos mais nacionalistas e desordeiros… António Barreto pode ficar sossegado, que não violaremos as regras impostas por quem de direito.

OPINIÃO

A Europa de dois gumes

A UE e os seus países mais fortes não podem pretender trocar liberdades por dinheiro, democracia por fundos. As violações à liberdade ou à democracia pagam-se politicamente, não financeiramente.

ANTÓNIO BARRETO

PÚBLICO, 12 de Dezembro de 2020

O acordo a que os europeus chegaram esta semana agrada a toda a gente. Aos defensores do Estado de direito, mas também aos que descaradamente violam alguns princípios, direitos e garantias. Aos países que formam uma maioria estável europeia, mas também aos que procuram excepções, como sejam os do Sul, os do Leste, os “Frugais” e os “Despesistas”. Aos que detêm o poder do livro sagrado dos valores europeus, mas também aos que criam regimes de excepção fundamentados em traços nacionais e na tradição. Mais um fim feliz para esta União, prodígio florentino de arranjos e rendilhados. É possível que assim consigamos viver mais um tempo, anos talvez, mas sabemos que se trata de novo adiamento.

No âmago dos problemas estão, evidentemente, a questão nacional, a autonomia política dos Estados e a interpretação do ideal democrático que cada país ou família política defende. Nas principais crises europeias dos últimos anos, esteve sempre presente a questão nacional. Na Grã-Bretanha, a independência, como fundamento ou pretexto, está no centro do “Brexit”. Assim como com as Irlandas e a Escócia. Na Grécia, a nação foi factor de crise iminente. Na França e na Itália, os poderes nacionais estão no centro, real ou retórico, dos conflitos. Agora, na Hungria e na Polónia, os seus dirigentes tão pouco democratas recorrem ao argumento nacional, para contrariar as tendências dominantes da União. No Norte da Itália e na Catalunha, conhecem-se os contornos nacionais e regionais do problema.

Os mais importantes países europeus, assim como a União no seu todo, não souberam tratar deste tema convenientemente. E cada vez que julgam que está resolvido, regressa sempre. A galope! O êxito da direita e dos radicais franceses, italianos, austríacos, alemães e outros ficou sempre ligado à retórica nacional. E entre os radicais de esquerda, comunistas ou não, nunca falta o patriotismo: “cá em casa mandamos nós…”

Actualmente, esta espécie de patriotismo americano de Trump, que nos aflige há quatro anos, foi um bálsamo para as direitas europeias e os “nacionais” de qualquer bordo. Trump ajudou tudo e todos. Ajudou Boris Johnson e o “Brexit”. Ajuda a Irlanda se esta estiver contra a Europa. Ajudou os iliberais. Ajudou Orbán e Morawiecki. Como apoiou Erdogan e Putin. Ajudou os que querem partir a União e enfraquecer a Europa.

Verdade é que a Europa e a UE andam a esticar há vários anos. O establishment europeu limita-se a condenar os patriotas e os nacionalistas, negando o problema. Foi o que fez com os italianos e os gregos. Com alguns espanhóis. Com os húngaros e os polacos. Com os franceses da Frente Nacional. O certo é que tudo quanto é antidemocrático na Europa aproveitou a oportunidade para fazer prova de vida

É bem provável que já não seja possível classificar de plenamente democráticos os regimes em vigor na Hungria e na Polónia. Se admitirmos que a democracia e a liberdade podem ter graus, esses dois países estão certamente em défice. Os sistemas eleitorais, a liberdade de expressão e os sistemas judiciais, pelo menos, revelam já feridas indiscutíveis. Apesar de a União Europeia não ter uma medida nem um medidor, é razoável que os Estados-membros e a União possam advertir esses países, dizer-lhes que passaram as marcas e ameaçá-los de represálias. Podem mesmo suspender os seus estatutos ou até expulsá-los. Tudo isso é grave, mas nada disso é surpreendente. A UE tem uma estrutura mais ou menos democrática, mas apoia-se ou reúne países democráticos. A democracia é a sua inspiração. Quem não a respeita vai-se embora, sai ou é expulso.

A imposição de regras de direito, de normas políticas e de procedimentos democráticos aceites pelos membros da UE, em países que têm uma versão própria da democracia, que tolhem a justiça, que condicionam a magistratura independente, que limitam as liberdades de informação e de expressão, é legítima e bem-vinda, mas totalmente absurda! A UE não pode vender nem impor democracia, a não ser por medidas de suspensão e expulsão. A Europa tem experiência suficiente para saber que a imposição de regras democráticas à força, com dinheiro ou exércitos, é uma receita desastrosa. Em África, na América Latina e na Ásia, nunca resultou.

Cada vez que os nossos aliados americanos, alemães ou ingleses têm uma qualquer reticência relativamente à política portuguesa e à nossa concepção de justiça, logo se ouvem reclamações de dignidade nacional e de independência. Protestamos contra a imposição de qualquer regra vinda do exterior, mesmo da União, mas, se nos faz jeito impor regras a outros, nomeadamente para receber fundos, não nos importamos com a ideia de exportar ou impor a democracia.

A UE e os seus países mais fortes não podem pretender trocar liberdades por dinheiro, democracia por fundos. As violações à liberdade ou à democracia pagam-se politicamente, não financeiramente. Acertem-se os sistemas de votação e revejam-se as condições de permanência, mas não se tente impor o direito e a democracia à força, com dinheiro.

É bom que os portugueses percebam que, se e quando chegar a nossa vez, teremos perdido a legitimidade para invocar a “dignidade nacional”. Se os países da Europa do Norte ou os países ricos da União ou qualquer outro grupo de países entende pôr em causa o valor do Estado de direito em Portugal, a tarefa é fácil. Os atrasos da justiça, especialmente em casos de corrupção; a prática impune de violação do segredo de justiça; a desigualdade de tratamento, pelo sistema judicial, dos pobres e das mulheres; o primado do Estado em qualquer processo entre os cidadãos e a Administração Pública; o mais desbragado machismo em casos de violência doméstica; a distorção, sempre desfavorável ao cidadão, do processo judicial fiscal; a existência de cláusulas secretas em alguns contratos de parceria público-privada; as regalias e os privilégios de que gozam os arguidos muito ricos; estes factos chegam para pôr em causa o Estado de direito em Portugal e seriam suficientes para interromper os fluxos de fundos da União!

Ao mesmo tempo que a União deu prova de resposta concertada, no caso da pandemia, esta crise veio mostrar a fragilidade da construção europeia. Ora, mais uma vez se comprova que a Europa foi longe demais. A União foi longe demais. Recuar é difícil, mas vai ser necessário. Como é evidente, compete aos povos polaco e húngaro, assim como aos vizinhos do grupo dito de Visegrado e aos bálticos, guardar e enriquecer a democracia local. Como fizeram os americanos com o seu ameaçador Presidente.

Sociólogo

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COMENTÁRIOS:

Quintinos INICIANTE: A democracia pura não existe, felizmente. Espero que ninguém tenha a ideia peregrina de a impor. 12.12.2020        Jose Luis Malaquias EXPERIENTE: Como europeísta que sempre me achei, uma dúvida existencial começa a colocar-se-me de há uns anos para cá. Será que, no seu âmago, os europeus são fundamentalmente antidemocráticos, amigos de soluções autocráticas, xenófobas e belicosas e o que tivemos, nos 60 anos que se seguiram à Guerra não foi mais do que um período de excepção, motivado pelo horror do nazismo, mas que, com o passar da memória, o continente está a regressar à sua verdadeira natureza? Espero que não. Mas a dúvida atormenta-me.       Roberto34 MODERADOR: Pergunte aos eleitores do Brexit. Eles devem saber.        Fowler Fowler INICIANTE: Em julho, já António Costa, o “habilidoso”, defendia que o Estado de Direito não deveria ser associado aos fundos de recuperação da UE, tendo afirmado, então, que “os valores não se compram”. Passados uns meses, vem agora o sr. Barreto elogiar, e muito bem, o acordo da UE para os fundos europeus, parafraseando Costa. A propósito da deriva nacionalista, o autor aproveita, uma vez mais após, e só após, a derrota eleitoral de Trump, para qualificar, de forma prolixa, o Trumpismo e os seus efeitos nefastos na UE. E claro, à boleia, não perde a oportunidade para desacreditar a democracia portuguesa, como sempre.        Sandra. MODERADOR: Olhe Dr Barreto, eu como comunista nada radical, o que vejo é que "cá em casa" não mandamos nada. Até em coisas (aparentemente) tão simples, como um curso de uma determinada Faculdade, ter autonomia para poder escolher o currículo. Saberá melhor do que eu seguramente que não tem escolha. A "Comunidade" europeia manda o dinheiro e manda na escolha. "Tomem lá, este ano é para esmiuçarem isto e aquilo". "Ah! Mas nós até queríamos escolher outros temas..." "Não! Quem manda aqui é quem tem o dinheiro!" Isto está carregadinho de "valores democráticos", então não está...      Jose MODERADOR: Cara Sandra A UE não é democrática! É um clube onde jogam o "bingo" os lobbys internacionais como Durão Barroso o faz a favor da Goldman Sachs. É um clube do Capital que anexa as economias dos países cujos Estados traem os povos, abdicam da soberania, da igualdade entre pares, da Justiça, da política externa, da liberdade parlamentar, do primado das suas leis, da distribuição da riqueza criada pelos trabalhadores, das políticas de redução do fosso entre ricos e pobres. Não há dúvidas que a UE tem de regredir para sobreviver. A transferência de colossais fluxos financeiros criados pelos trabalhadores e povos para o sistema financeiro internacional através da UE deprime as economias perdedoras como a portuguesa. A luta sindical é a melhor arma para acelerar o recuo predador da UE.           Roberto34 MODERADOR: Sim a UE é Democrática, assim como os seus Estados Membros.

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