E por aqui se vê como Camões, embora anjinho, é eterno
nos seus dizeres. Ou antes, na forma clássica como os expõe – “Cesse tudo o que a musa antiga canta / Que outro valor mais alto se
alevanta” (LUS., I, 3) – o que já fora verdadeiro quarenta e seis anos antes de
hoje, os “cravos”
simbolizando alvoradas de interesses vários – nossos, claro, mas de todos esses
povos que nas descolonizações viam o “furo” que os bafejava a eles, e mais à
China, ao que parece, que por lá edificou – mansamente e sem dar nas vistas,
como é seu hábito. Mas, sobretudo, é claro, os governantes seus naturais, Samora Machel por pouco tempo que fosse, coitado, mas
os que se lhe seguiram, bem obrigado, espertos que são, tal como em Angola,
segundo se viu e vê, o povo descalço, pelas ruas, o pé (e o resto do corpo) bem
calçados e vestidos, dos respectivos governos, e desenvolvendo o que o
verdadeiro saber manda aprender, como de resto, se faz por cá…… mas a Europa da União vai intervir, se Nyusi deixar, é certo, que os Nyusis aprendem depressa as lições…
OPINIÃO
Cabo Delgado: um teste à Presidência Portuguesa do Conselho
da UE
Resta saber se Portugal estará à
altura de assumir verdadeiramente esse complexo papel, também exercendo pressão
sobre o Governo moçambicano para uma resolução do conflito a bem da população
de Cabo Delgado, ou se vai apenas subscrever a actuação do Governo Nyusi, para
assim proteger os interesses estratégicos e económicos que Portugal tem em
Moçambique.
MICHAEL HAGEDORN
PÚBLICO, 22 de Dezembro de 2020
Para
a Presidência do Conselho da UE, com início a 1 de
Janeiro de 2021, António Costa anunciou, de entre cinco tópicos prioritários, “Atribuir especial atenção à
dinamização e densificação do
relacionamento UE-África”.
Em
conversa telefónica com o Presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, Costa confirmou, no final de Novembro, a disponibilidade
de Portugal para “apoiar, bilateralmente, e no quadro da União Europeia”, o
país nos esforços de combate ao terrorismo na província de Cabo
Delgado e
anunciou a próxima cimeira bilateral a ter lugar em Maputo, no segundo semestre
de 2021, com o objectivo de aprofundar a cooperação bilateral.
No
entanto, o agravamento da crise humanitária resultante do conflito
em Cabo Delgado – com mais de 560.000 deslocados
internos e mais de 2000 mortos – não permite esperar tanto, conforme
prova a dinâmica desenvolvida nas duas últimas semanas.
Desde
a declaração de António Costa, a situação em Cabo Delgado foi
debatida duas vezes no Parlamento Europeu.
Na audição especial das comissões de Desenvolvimento e dos Negócios
Estrangeiros, os participantes apoiaram unanimemente a continuação
da chamada abordagem “triplo nexo": ajuda humanitária, apoio ao
desenvolvimento de longo prazo e apoio à segurança. No consenso geral, foi manifestada uma
forte oposição a que as questões militares e de segurança fossem priorizadas. Assim, a nova directora executiva para África do
Serviço Europeu para a Acção Externa (SEAE), Rita Laranjeira, considerou errado “privilegiar a segurança” e afirmou ser necessário “enfrentar a crise e as
suas causas profundas”.
Já
no debate plenário do Parlamento Europeu, o Alto Representante da União, Josep
Borrell, foi ainda mais explícito na resposta
às acusações feitas pelo eurodeputado português, Paulo Rangel (PPE), de que a UE estava a falhar face à
crise em Moçambique.
Borrell afirmou que a prioridade era a ajuda humanitária,
estando a UE a fazer tudo ao seu alcance para ajudar. De forma muito directa e
pouco habitual para um diplomata, Borrell salientou que:
a UE está a aguardar desde Novembro
autorização do Governo moçambicano para o envio de uma missão de peritos em
segurança. Os peritos estão prontos a partir para Moçambique, mas o Governo
continua na dúvida se prefere os peritos da UE ou prefere relações bilaterais
com certos países da União Europeia. “Estamos
preparados para enviar missões, mas precisamos que o Governo as aceite”;
Moçambique está a atravessar uma profunda crise financeira, com
um nível de dívida que excede 110% do seu Produto Interno Bruto, e só graças à
ajuda maciça de doadores internacionais conseguiu manter-se; houve sérios
problemas de corrupção, o que levou o Fundo Monetário Internacional a suspender
o seu programa de ajuda financeira e a comunidade internacional a reduzir o seu
apoio;
tudo o que está a acontecer em
Moçambique não é simplesmente uma extensão dos movimentos do chamado terrorismo
islamista. Embora essa seja uma parte do
problema, a outra é que a violência armada no norte de Moçambique tem sido,
desde o início, impulsionada pela pobreza e desigualdade e pelo distanciamento
de um Estado que não consegue fornecer à população os bens mais básicos. Além
de problemas de tráfico, etc.;
as gigantescas reservas de gás natural existentes em Moçambique
provocam nas pessoas um sentimento paradoxal ("somos um país rico e
vivemos na pobreza"), por verem as suas expectativas de desenvolvimento
frustradas e os graves problemas de governação.
A bola está agora oficialmente no
campo de Portugal, não só no que toca à cooperação bilateral com Moçambique,
mas também para actuar em nome da UE. Isso não será fácil, se o objectivo for
estar à altura da complexidade da situação. Santos
Silva apressa-se a defender o Governo
moçambicano contra as críticas, referindo-se à sua soberania nacional. Estranho
é que, depois, afirme tratar-se de uma crise de segurança global: “A
gravidade da situação, que não diz respeito apenas a Moçambique, mas a toda a
África Oriental e à segurança global, está a ser bem apreendida por todos e
estamos a mobilizar-nos para apoiar Moçambique.”
(PÚBLICO, 16.12)
Em relação ao apoio à segurança/apoio militar, Portugal parece ter
já tomado uma decisão bilateral. Segundo o
ministro da Defesa português, Portugal vai apoiar Moçambique na organização
logística e na capacitação de militares para fazer face aos grupos rebeldes na
província de Cabo Delgado. João
Gomes Cravinho confirmou
que, a partir de Janeiro, uma
equipa de militares portugueses irá concretizar a cooperação militar em
aspectos de formação, a ser feita em Moçambique, abrangendo as forças de
intervenção rápida, forças especiais, fuzileiros e militares da área do
controlo aéreo táctico, tendo sido
definidas como “áreas de interesse específico” a ciberdefesa, a cartografia, a
hidrografia e a cooperação industrial de defesa.
(PÚBLICO, 11.12)
A
iniciativa unilateral de Portugal em termos de apoio militar é questionável, na
medida em que o Governo moçambicano tem seguido, até agora, uma política
de informação assaz opaca sobre o
que está realmente a passar-se em Cabo Delgado.
Na
última semana, na apresentação do relatório anual sobre a situação da Nação, o
Presidente moçambicano declarou que as primeiras manifestações de extremismo
violento começaram em 2012, mas não explicou por que razão o Governo, durante
todos os anos seguintes, não levou a sério o problema, mesmo depois do primeiro
ataque à vila municipal da Mocímboa da Praia, em Outubro de 2017. Nyusi voltou a reduzir o conflito
exclusivamente a uma agressão externa liderada por estrangeiros, com destaque
para tanzanianos, congoleses, quenianos e somalis.
Na
mesma ocasião, Nyusi elogiou as forças de segurança moçambicanas no combate
aos terroristas, sem porém mencionar os mercenários que operam em Cabo Delgado.
Segundo várias fontes, Filipe Nyusi
ordenou a contratação das empresas sul-africanas de defesa Paramount
e Dyck Advisory Group para fornecer apoio militar terrestre e aéreo no combate
ao terrorismo na província de Cabo Delgado. No âmbito do negócio, segundo a
mesma fonte, as duas empresas sul-africanas vão reforçar “substancialmente” a
capacidade militar das Forças Armadas de Moçambique (FADM) e da Polícia da
República de Moçambique (PRM), através dos contratos negociados
“pessoalmente” com o chefe de Estado moçambicano.
É interessante notar que Moçambique
não aderiu ao acordo da União Africana ou da ONU contra o recurso a
mercenários, por não garantirem o respeito pelos direitos humanos e não
permitirem uma monitorização internacional. Na sua resolução de Setembro, o
Parlamento Europeu lamentou precisamente a utilização de forças de segurança
privadas em Moçambique, também devido ao facto de inflacionarem o custo
monetário para o país.
A complexidade da situação é agravada
pelos interesses de outros actores na região. Os
EUA já se mostraram disponíveis para uma
cooperação militar directa com Moçambique, à luz dos seus fortes interesses
geoestratégicos no país. Os interesses económicos estão representados pelos
investimentos previstos da gigante petrolífera norte-americana Exxon Mobil nos
projectos de exploração de gás em Cabo Delgado, bem como pela garantia de um
crédito, no montante de cinco mil milhões de USD, do banco de importação e
exportação Exim ao
grupo francês Total, com a condição de que os bens e serviços sejam
adquiridos nos EUA.
Washington quer ainda interromper
a importante rota do tráfico de droga
proveniente da Ásia, a qual, segundo vários peritos, beneficia as elites locais em Cabo Delgado e até alguns membros do
governo em Maputo.
À semelhança dos EUA, a França
tem consideráveis interesses geopolíticos no estreito de Madagáscar, por
exemplo, com o seu enclave de Mayotte, e deu já garantias de que irá assegurar
os investimentos no gás, em particular, o mega-investimento da Total e outros
subcontratantes franceses que aí operam, patrulhando com a sua frota marítima
ao largo da costa.
Pouco claras são também as
razões pelas quais nem a aliança regional SADC, nem a UA, tomaram, até agora,
uma posição clara sobre um apoio militar. Parece
que o Governo de Maputo, invocando a sua soberania nacional, não quer que os
Estados vizinhos participem na solução, provavelmente devido às críticas já
expressas em relação a Maputo: “Silenciar as armas nessas situações requer lidar com
as raízes do conflito, que invariavelmente incluem défices de
governação, abusos de direitos humanos e contestação de recursos”, afirmou a ministra das Relações Internacionais
e Cooperação da África do Sul, após um encontro com jornalistas em Pretória,
segundo a Deutsche Welle no dia 14.12.
Os
desafios mencionados requerem uma actuação integrada e coordenada dos actores
envolvidos. No entanto, o pré-requisito fundamental é a vontade do Governo
moçambicano de participar, de forma construtiva, numa solução que responda às
necessidades da população
Nas
últimas semanas, a questão da guerra em Cabo Delgado foi também discutida na Comissão de Negócios
Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas do Parlamento português. Inexplicavelmente,
as audiências foram realizadas à porta fechada.
Ainda
esta semana serão discutidos na Assembleia da República dois projectos de resolução
apresentados pelo CDS e pelo PAN, ambos baseados em argumentos que não
reflectem o
essencial do problema (Daesh e crise humanitária).
Ao
contrário da superficial fundamentação destes projectos de resolução, o
corajoso bispo de
Pemba, D. Luiz Lisboa,
não hesitou em apontar as principais causas que estão na origem da guerra. Numa sessão online da Igreja Católica em Portugal,
realizada na última semana, o bispo – que, em Junho deste ano, recebeu
ameaças de morte devido às suas declarações críticas, o que até levou a
uma discreta intervenção do Papa –
também apelou à Presidência Portuguesa da União Europeia para que actue
sobre as “causas da guerra”, nomeadamente os recursos naturais. D. Luiz
referiu ainda: “Cabo Delgado foi ignorado, foi deixado de lado
durante muito tempo. E esse é um dos motivos que ajudaram a que essa juventude
fosse arrastada para esses grupos” rebeldes.
Os
desafios mencionados requerem uma actuação integrada e coordenada dos actores
envolvidos. No entanto, o pré-requisito fundamental é a vontade do
Governo moçambicano de participar, de forma construtiva, numa solução que
responda às necessidades da população.
A Presidência Portuguesa irá
enfrentar difíceis desafios de mediação. Os laços históricos e bons contactos
com Moçambique, incluindo a vantagem da comunicação numa língua comum, são,
certamente, factores facilitadores.
Resta saber se Portugal estará
à altura de assumir verdadeiramente esse complexo papel, também exercendo
pressão sobre o Governo moçambicano para uma resolução do conflito a bem da
população de Cabo Delgado, ou se vai apenas subscrever a actuação do Governo
Nyusi, para assim proteger os interesses estratégicos e económicos que Portugal
tem em Moçambique.
TÓPICOS
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