Também me lembro
de quando, por alturas da entrada na CEE, foram impostas normas de
comercialização dos produtos hortícolas, para efeitos de exportação, que
transformaram os campos portugueses, outrora verdejantes, em campos abandonados,
tantas foram as exigências impostas, relativamente às características dos
frutos para exportar, que o uso de produtos químicos lá fora, fazia que
adquirissem o tamanho devido. E durante uns anos, era triste o abandono a que
foram votados os campos, que deixaram de ser trabalhados, numa dor de alma e de
perda dos cheiros rescendentes que recordava da infância.
Mas não é disso
que trata o texto de Salles da Fonseca, que explica como os sectores
agrícola e pesqueiro, sendo fundamentais na economia dos povos, em Portugal
foram sempre marginalizados em termos de compensação económica, a favor do
factor da comercialização que os explorou – e explora ainda, julgo,
devidamente, nesta cultura das distinções sociais por que se regeu e rege,
desde sempre, o nosso país de penúria e mesquinhez.
Leiamos a crónica – excelente – de Salles da Fonseca, que bem o subentende, no meio das suas explicações a respeito da nossa economia de trapos:
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 27.12.20
É dos compêndios que o sector primário
(agricultura e pescas) é o motor do resto da economia. Sim, pois… desde que a agricultura e as
pescas funcionem correctamente e esse não é o caso em Portugal.
Historicamente, a agricultura
funcionava quase exclusivamente em autoconsumo por e para uma população analfabeta; seguiu-se o enquadramento pelos famosos Organismos de
Coordenação Económica[i][ii] a que se juntava a Federação Nacional dos Produtores de Trigo que, não sendo propriamente um OCE, como
tal actuava. E, de
modo muito abreviado, essa actuação consistia em garantir preços de
intervenção à produção (os preços por que os OCE compravam em
épocas de excesso que ameaçassem quebras abruptas dos preços e do rendimento do
produtor, armazenamento e fornecimento ao mercado em épocas de
escassez de modo a que os preços não subissem com prejuízo do consumidor.
Com o desmantelamento das estruturas
económicas do Estado Novo, desapareceram os OCE (Opened
Capital Enterprise) e a FNPT
(foi transformada na EPAC (Escola Profissional Agrícola Conde de São
Bento). Rapidamente
também esta desapareceu para que o mercado tudo determinasse. E o
mercado determinou que a Portugal compete sobretudo ser destino de produtos
estrangeiros ficando alguma produção nacional a
regular-se por preços que nada têm a ver connosco. Ou seja, prevalecem os subsídios comunitários e os
preços determinados pela Bolsa de Chicago. A quem, mesmo assim, consegue
sobreviver, depara-se-lhe um mercado dominado por um fortíssimo oligopsónio que
directa ou indirectamente (através do sector industrial dos agrícolas
transformados) que tudo condiciona e que se atreve mesmo a estabelecer
paralelos com preços chineses[iii]. Ou seja, a
produção agro-pecuária nacional está condicionada por parâmetros alheios aos
nossos condicionalismos e não tem qualquer participação na definição dos
preços. Conclusão: a produção primária nacional serve os interesses alheios e,
se o não fizer, morre.
E tem
que ser assim? Não creio e pasmo como é possível haver ao longo dos anos hordas
de políticos a passar pelo Ministério da Agricultura e nada fazerem para obstar
a esse pesadelo. Igualmente estranho que nas organizações
representativas da agricultura todos os responsáveis se tenham dado por
vencidos e, não estudando alternativas, se quedem submissos à má sorte que lhes
coube. E, contudo, a
solução existe e
está experimentada desde a Idade Média: são as Bolsas de Mercadorias.
De um modo muito simplificado, as Bolsas de Mercadorias são locais (reais ou
virtuais) onde a oferta e a procura se apresentam perante um agente (Corrector)
que recebe as intenções de venda e de compra num determinado prazo futuro de
produtos cotados nessa Bolsa (devidamente tipificados e em unidades pré
definidas). Havendo acordo na cotação, na quantidade e no prazo, faz-se o
contrato num documento (real ou virtual) que é endossável e descontável. Assim acontece que só há sementeira e
produto no futuro se a cotação foi interessante para ambas as partes
intervenientes. Se a
cotação não interessou à oferta, por exemplo, a sementeira não se faz, a ameaça
de escassez do produto faz aumentar a cotação e a operação tende a realizar-se. E vice-versa do lado da procura. Ou seja, o risco passa a
distribuir-se equitativamente entre a oferta e a procura em vez de, como
actualmente, se concentrar sobre a oferta. Só assim se pode gerir a
produção em vez de, como actualmente, a oferta «navegar às
escuras e sem radar».
No caso das pescas, com o anacrónico leilão
descendente, o cambão da procura é fácil e o risco concentra-se totalmente na
oferta. Normalizando o leilão (para ascendente), o risco passa a distribuir-se
equitativamente entre todos os agentes presentes na lota pois a procura deixa
de conseguir tão facilmente orquestrar-se uma vez que cada agente comprador
passa a ser concorrente de todos os seus «colegas».
Então, por que se espera? Espera-se por alguém
no topo do Ministério da Agricultura e Pescas que saiba algo mais do que gerir
subsídios. E quando isso acontecer, talvez Portugal passe a produzir o que
come. Até lá, peçamos ajuda ao FMI e quejandos benfeitores dos esmoleres.
(continua)
Dezembro de 2020
Henrique Salles da Fonseca
[i] - Junta Nacional do Vinho, Junta Nacional das Frutas,
Junta Nacional dos Produtos Pecuários, Junta Nacional do Azeite e Produtos
Oleaginosos
[ii] - Para
além dos OCE referidos na nota anterior, também existiam a Comissão Reguladora
do Comércio de Bacalhau e a Comissão Reguladora dos Produtos Químicos e
Farmacêuticos. Para o controle de qualidade, havia também o Instituto Português
das Conservas de Peixe.
[iii] -
Obviamente, não nos produtos agrícolas mas sim nos industriais.
Tags: "economia
portuguesa"
COMENTÁRIO:
Anónimo 28.12.2020: É mesmo
assim, Dr. Salles da Fonseca. Antes do Estado Novo, nem se sonhava com
"mercados organizados". No Estado Novo, a obsessão da
"especulação", que uma ética trapalhona confundia com
"manipulação", fazia com que o conceito de "mercado" fosse
anátema. Consequência 1: todo o risco a que as actividades do sector
primário estavam inevitavelmente expostas era inteiramente suportado pelos
produtores que tinham de arcar com a totalidade dos prejuízos. Consequência 2:
a oferta ficava totalmente na mão de manipuladores (não eram especuladores
porque, na verdade, só jogavam pelo seguro, não corriam riscos). Não se percebia, então, que era a
"especulação" que explicava uma actividade tão antiga e tão
respeitável como é a dos Seguros - e que dispersava o tal risco. Na actual
República, domina a ideologia que convive mal com a liberdade de escolher e que
quer submeter tudo à clarividência da burocracia estatal (financiada,
naturalmente, pela intermediação fiscal). Consequência: o "mercado",
não havendo já coragem para decretar o seu banimento, é mal tolerado. Um
"mercado organizado" é formado por uma infraestrutura institucional
(com as suas regras) e uma infraestrutura tecnológica (com os seus recursos).
Montar e ter a funcionar "mercados organizados" não é para todos,
muito menos para legisladores de meia-tigela.
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