Sobre um prémio Nobel que fez da realidade
ficção, num estranho tempo em que parece ficcional toda a realidade que se
vive. Análise crítica com muito interesse, de João Pedro Vala a um livro do escritor peruano Mario Vargas
Llosa, Prémio Nobel em 2010.
CRÍTICA DE
LIVROS. Mario Vargas Llosa, as "fake news" e a
República das Bananas /premium
Protagonista de "Tempos
Duros", novo romance do escritor peruano, parece
ser a América Latina, encarada aqui como uma espécie de Estados Unidos de uma
Outra América, cujas fronteiras se esbatem.
JOÃO PEDRO VALA OBSERVADOR, 05 DEZ 2020
O
mais recente romance de Mario Vargas
Llosa, agora publicado pela Quetzal, aborda a conturbada história política da
Guatemala entre 1945 e 1963, durante os
governos de Juan José Arévalo, Jacobo Árbenz, Castillo Armas e Ydígoras
Fuentes. Segundo Vargas Llosa, a ideia do livro
surgiu de uma conversa com Tony Raful, em que Raful lhe contou a sua teoria
acerca do golpe de Castillo Armas,
que derrubou Árbenz e que, de
acordo com Raful, teria contado com o envolvimento de Rafael
Trujillo, o ditador dominicano que já
protagonizara um outro romance do escritor peruano, A Festa do Chibo (publicado em Portugal pela Dom Quixote).
Tempos Duros tem então como suporte histórico La Rapsodia del
Crimen, Trujillo vs. Castillo Armas, de Raful. Contudo, como Vargas Llosa explica em inúmeras
entrevistas, um romancista parte da investigação apenas para que
possa mentir com conhecimento de causa, o que deve prevenir leitores sensatos
de encararem este livro como um qualquer manual de história. Essa distinção não impede, contudo, que a
fronteira entre facto e ficção se torne efectivamente problemática, o que levou
a que o romance fosse alvo de várias críticas, que vão desde incongruências
históricas na apresentação da reforma agrária de Jacobo Árbenz até aspectos
absolutamente laterais à narrativa, como a descrição que Vargas Llosa faz da
ida de Carmen Miranda
para os Estados Unidos (que já mereceu dois artigos de Ruy Castro, biógrafo da
cantora, no DN).
O principal problema do romance,
contudo, parece advir de um excesso de virtude do escritor. Tempos Duros agarra o leitor da primeira
à última página e deixa bem claro que Vargas Llosa, aos 84 anos, conserva
intactos os seus talentos. Contudo, as
personagens da história (desde Johnny Abbes García a Martita Parra, por exemplo) são tão interessantes e bem
construídas que não deixa de ser frustrante o pouco destaque dado a cada uma
delas. O décimo nono romance sofre assim por, tentando
equilibrar-se na corda bamba do romance histórico, não ser mais romance e não ser mais histórico, o que
naturalmente serve apenas para sublinhar a competência do autor bem como a
impossibilidade da missão a que se propôs.
O
protagonista de Tempos Duros parece
então ser, na verdade, a América Latina, encarada aqui como uma espécie de Estados Unidos de
uma Outra América, cujas fronteiras se esbatem desde logo por dois motivos. Em primeiro lugar, porque as
personagens nascem numa panóplia de países diferentes do continente, circulando
livremente entre estes sem pertencer a nenhum. Mais importante, estes EUOA surgem como protagonista na medida em que são
apresentados como reagindo em bloco às ingerências dos estadunidenses nas suas
administrações, sendo aliás precisamente sobre isso o excelente último capítulo
do romance, onde Vargas Llosa, aqui na pele de Don Mario, irrompe pela acção
adentro. A Guatemala é então fundamental para Vargas Llosa apenas por ser o
primeiro peão a mexer-se num intrincado jogo de xadrez, abrindo o jogo e
iniciando uma ofensiva que arrasa por completo a possibilidade de construção de
democracias liberais e moderadas em todo o continente.
Há,
no romance, algumas informações repetidas ao longo da narrativa, o que em parte
pode ser explicado dada a falta de familiaridade dos leitores quer com os
protagonistas quer com a história tratada e em parte pela vontade compreensível
de sublinhar as injustiças de que Árbenz alegadamente foi
vítima. Esta
vontade de denúncia leva, por vezes, a que os heróis surjam isentos de
defeitos. Estes
aparentes problemas da narrativa parecem, contudo, justificar-se por um motivo
interessante. Vargas Llosa tem vindo a repetir que se deixou cativar por esta
história uma vez que foi a turbulência vivida na Guatemala que o levou, na sua
juventude, a interessar-se apaixonadamente pela política, o que talvez explique
que o sensato e respeitável Vargas Llosa se torne, ao regressar a este assunto,
num jovem fervoroso, que parece habitar um mundo povoado de anjos e demónios, o
que não deve, de forma nenhuma, ser encarado como um defeito. Não é de excluir, contudo, que o brilho dos
heróis seja tão resplandecente também pela maldade e maquiavelismo do verdadeiro
vilão da história: os Estados Unidos da
América. Da América do Norte.
O aspecto mais interessante do livro
ficou, contudo, para o fim deste artigo. A
princípio, estranha-se que no capítulo inicial, adequadamente chamado de ‘Antes’, surjam duas personagens que pouco ou nada voltam a aparecer no que se
seguirá. Mais bizarro ainda quando a primeira frase do romance nos explica que
“embora desconhecidos do grande público e apesar de figurarem de
forma muito pouco destacada nos livros de História, provavelmente as duas
pessoas mais influentes no destino da Guatemala e, de certa forma, de toda a
América Central no século XX foram Edward L. Bernays e Sam Zemurray”.
A premissa de Vargas Llosa é a
seguinte: Sam Zemurray
criou a United Fruits, uma empresa de exportação de bananas para
os Estados Unidos e todo o continente centro-americano. Para dar
bom nome à empresa, em 1948, recrutou Bernays, o auto-proclamado pai das Relações
Públicas. Segundo Vargas Llosa, as reformas democráticas prometidas
por Árbenz na Guatemala iam absolutamente contra os interesses económicos da
United Fruits no país, por permitirem sindicatos e por exigirem,
entre outras coisas, pagamentos de impostos e salários justos. Mais, a
United Fruits temeria que os avanços civilizacionais guatemaltecos trouxessem
incomportáveis avanços equivalentes no resto do continente. Bernays decide
então criar uma extraordinariamente cara e bem-sucedida campanha de desinformação junto do
governo e imprensa estadunidenses, espalhando o rumor de que Árbenz se
preparava para, às portas dos EUA, trazer uma governação comunista.
Ao
compreendermos esta estratégia (que não impediu, ainda assim, a falência da United
Fruits poucos anos mais tarde, mas que celebrizou a expressão ‘república das bananas’ em referência aos países da América Latina) compreendemos o apagamento da dupla do resto do
romance. Porque é exactamente assim que funcionam as
notícias falsas: impulsionam
um conjunto de mentiras anónimas, semeiam dúvidas no seu público-alvo e
deixam-no, depois, agir supostamente com toda a liberdade do mundo, mas sempre
de acordo com os seus superiores interesses económicos. Estas fake
news avant la lettre iriam,
então, contribuir decisivamente para o fim da governação Arévalo/Árbenz, ao
mesmo tempo que permitiriam aos verdadeiros responsáveis pela situação
remeter-se a um confortável anonimato, lucrando com o caos que
tão habilmente prepararam, varrendo
as culpas, já não para debaixo do tapete, mas para cima dos pobres tolos que
genuinamente se orgulhavam de o ter orquestrado. Faz lembrar qualquer
coisa.
joaopvala@gmail.com
CRÍTICA DE LIVROS LIVROS
LITERATURA
CULTURA
NOTAS DE APOIO DA INTERNET:
PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA 201: Mario Vargas Llosa nasceu em março de 1936, em Arequipa, no Peru. Aos 17
anos decide estudar Letras e Direito
e, no ano seguinte, casa com a sua tia
Julia Urquidi – assegurando a subsistência com trabalhos muito diversos, como
conferir e rever nomes de lápides, escrever para rádio ou catalogar livros.
Em 1959 abandona o Peru e, graças a
uma bolsa, ingressa na Universidade Complutense de Madrid, onde conclui um
doutoramento que lhe permite cumprir o sonho de, um ano depois, se fixar em
Paris. Aí, sempre próximo da
penúria, foi locutor de rádio, jornalista e professor de Espanhol. Por
esse tempo tinha apenas publicado um primeiro livro de contos. Regressado ao
Peru em 1964, divorcia-se de Julia Urquidi e casa-se no ano seguinte com a sua
prima Patricia Llosa, com quem parte para a Europa em 1967 (depois de ter
publicado A Casa Verde, em 1966). Até 1974 viveu na Grécia, em Paris,
Londres e Barcelona – após o
que regressa ao Peru. Em Lima pode, finalmente, dedicar-se em exclusivo à
literatura e ao jornalismo, nunca abandonando a intervenção política, que o
levou a aceitar a candidatura à presidência da República em 1990. Vive em Londres desde essa época,
escrevendo romances, ensaios literários, peças jornalísticas e percorrendo o mundo
como professor visitante em várias universidades. Entre os muitos prémios que
recebeu contam-se o Rómulo Gallegos (1967), o Príncipe das Astúrias (1986) ou o
Cervantes (1994). Em
2010, foi distinguido com o Prémio Nobel da Literatura.
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