sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

O tio Patinhas na versão original


Como presente de Natal que apreciámos. Contado por Nuno Pacheco, com mestria, deixou-nos o desejo de reler Dickens e as suas histórias movimentadas, de esperteza e penúria, para atravessar este nosso espaço de confinamento tenebroso, tão sem sentido…

 Cultura-Ípsilon

OPINIÃO

O Natal do Sr. Scrooge no Natal do Sr. Sarscov

De Sarscov, já são conhecidas 17 mutações. E de Scrooge, quantas terão assombrado a nossa vida ao longo dos anos?

NUNO PACHECO

PÚBLICO, 24 de Dezembro de 2020, 6:00

Natal após Natal, pelo menos nos últimos 150 anos, além da (bem mais antiga) figura do menino Jesus a lembrar-nos o nascimento de Cristo (e é essa a celebração original das festas, o Pai Natal chegou muito depois), éramos não raro visitados pela figura antipática de Ebenezer Scrooge. O seu nome próprio diz-nos pouco, mas o apelido, Scrooge (avarento), ficou para a história como alguém desprezível, que só a custo e a medo recupera a humanidade e se reconcilia com ela. No Natal, claro, esse alegado tempo de paz e de bondade que Scrooge via como um embuste e uma perda de tempo e de dinheiro – dinheiro que ele amava acima de tudo.

Figura inventada pelo escritor inglês Charles Dickens (1812-1870) em plena era vitoriana, quando o progresso da revolução industrial se fazia à custa de legiões de miseráveis (salários baixíssimos e condições de trabalho infra-humanas), a figura de Scrooge era ao mesmo tempo uma denúncia da cupidez dos que enriqueciam espezinhando os outros, mas também uma mensagem de redenção: posto diante de fantasmas (o do seu sócio morto, que ele desprezou; e o dos Natais passado, presente e futuro), Scrooge readquire a humanidade perdida e partilha a alegria das festas com os demais.

Bom, mas neste Natal o Sr. Scrooge foi substituído pelo Sr. Sarscov, ou SARS-Cov-2. Designado como novo coronavírus, e originando uma doença a que chamamos covid-19, esse nome mais complexo justifica-se por razões científicas e históricas. Primeiro: coronavírus há muitos; mas este, que agora nos atormenta, pertencerá ao grupo que inclui um tal SARS-CoV (do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus), identificado há mais de uma década. Como nestas coisas da ciência se anda sempre à procura do nome mais adequado, a designação inicial de 2019-nCoV para o novo coronavírus foi substituída por SARS-CoV-2. E assim chegamos ao Sr. Sarscov, que destronou Scrooge na tarefa de nos assombrar o Natal.

Voltando a Scrooge e a Dickens, é espantosa a quantidade de edições e adaptações que o conto que relata o dilema de Scrooge, A Christmas Carol, editado em 1843, teve desde essa data. São centenas, não só em livro e em muitas línguas, mas também em teatro, cinema (o que inclui o cinema de animação), televisão, ópera (há pelo menos quatro registos), bailado (há duas adaptações), novelas gráficas, banda desenhada, produções para rádio e até gravações em disco. Isto para não falar em leituras públicas (e houve várias), a primeira das quais foi feita em 27 de Dezembro de 1853 pelo próprio Dickens, com grande êxito, no Birmingham Town Hall.

O actor Alastair Sim como Scrooge (1951) e a primeira aparição de Scrooge McDuck (1947)

No cinema, onde Scrooge foi interpretado por actores como Albert Finney, Michael Caine ou Jim Carrey, há um filme que sobressai: A Christmas Carol (1951), de Brian Desmond Hurst, originalmente chamado apenas Scrooge, onde o velho avarento é excelentemente interpretado pelo actor escocês Alastair Sim (1900-1976). Mas há outro Scrooge que ficou para a história no cinema, só que no de animação: Scrooge McDuck, conhecido entre nós como Tio Patinhas. Em filme, só em 1983 é que a Disney resolveu arriscar a sua versão do conto de Dickens, com Mickey’s Christmas Carol, editado em Portugal como Um Conto de Natal do Mickey.

Mas a figura de Scrooge McDuck nasceu bem antes, em 1947, pela pena de um antigo colaborador dos estúdios Disney, o ilustrador americano Carl Barks (1901-2000). Inspirado na figura imaginada por Dickens, criou um pato barbudo (com o tempo viria a perder as barbas, ficando apenas com umas suíças – como aparece no filme de 1983), avarento e rezingão, que vivia isolado numa mansão com um mordomo. E foi assim que surgiu pela primeira vez numa história aos quadradinhos, Christmas on Bear Mountain, na revista americana Four Color Comics. Tal mansão, diz-se, terá sido inspirada na Xanadu do filme O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, que por sua vez se inspirou no castelo de San Simeon, do magnata William Randolph Hearst, caricaturado por Herman J. Mankiewicz e Welles no seu Charles Foster Kane.

De Sarscov, já são conhecidas 17 mutações. E de Scrooge, quantas terão assombrado a nossa vida ao longo dos anos? Procuramos livrar-nos de Sarscov com a ajuda de uma agulha, mas nem mil agulhas nos livrarão de Scrooge, praga que ainda faz muitas vítimas, como um vírus.

tp.ocilbup@ocehcap.onun

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