Como presente de Natal que apreciámos. Contado por Nuno Pacheco, com mestria, deixou-nos o desejo de reler Dickens e
as suas histórias movimentadas, de esperteza e penúria, para atravessar este nosso
espaço de confinamento tenebroso, tão sem sentido…
OPINIÃO
O Natal do Sr. Scrooge no Natal do Sr. Sarscov
De Sarscov, já são conhecidas 17
mutações. E de Scrooge, quantas terão assombrado a nossa vida ao longo dos
anos?
PÚBLICO, 24 de
Dezembro de 2020, 6:00
Natal
após Natal, pelo menos nos últimos 150 anos, além da (bem mais antiga) figura
do menino Jesus a lembrar-nos o nascimento de Cristo (e é essa a celebração
original das festas, o Pai Natal chegou muito depois), éramos não raro
visitados pela figura antipática de Ebenezer Scrooge. O seu nome próprio diz-nos pouco, mas o apelido, Scrooge
(avarento), ficou
para a história como alguém desprezível, que só a custo e a medo recupera a humanidade
e se reconcilia com ela. No Natal, claro, esse alegado tempo de paz e de
bondade que Scrooge via como
um embuste e uma
perda de tempo e de dinheiro – dinheiro que ele amava acima de tudo.
Figura
inventada pelo escritor inglês Charles Dickens (1812-1870) em plena era vitoriana, quando o progresso da
revolução industrial se fazia à custa de legiões de miseráveis (salários
baixíssimos e condições de trabalho infra-humanas), a figura de Scrooge era ao mesmo tempo uma denúncia da cupidez dos que
enriqueciam espezinhando os outros, mas também uma mensagem de redenção: posto diante de fantasmas (o do seu sócio morto, que
ele desprezou; e o dos Natais passado, presente e futuro), Scrooge readquire a humanidade perdida e
partilha a alegria das festas com os demais.
Bom,
mas neste Natal o Sr. Scrooge
foi substituído pelo Sr. Sarscov, ou SARS-Cov-2. Designado como novo coronavírus, e originando uma
doença a que chamamos covid-19, esse nome mais complexo justifica-se por razões
científicas e históricas. Primeiro: coronavírus há muitos; mas este, que agora nos
atormenta, pertencerá ao grupo que inclui um tal SARS-CoV (do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome
Coronavirus), identificado
há mais de uma década. Como nestas coisas da ciência se anda sempre à
procura do nome mais adequado, a designação inicial de 2019-nCoV para o novo
coronavírus foi substituída por SARS-CoV-2. E assim chegamos ao Sr. Sarscov,
que destronou Scrooge na tarefa de
nos assombrar o Natal.
Voltando
a Scrooge e a Dickens, é espantosa a quantidade de edições e adaptações que
o conto que relata o dilema de Scrooge, A Christmas Carol, editado em 1843, teve desde essa data. São centenas, não só em livro e em muitas línguas, mas
também em teatro, cinema (o que inclui o cinema de animação), televisão, ópera
(há pelo menos quatro registos), bailado (há duas adaptações), novelas
gráficas, banda desenhada, produções para rádio e até gravações em disco. Isto
para não falar em leituras públicas (e houve várias), a primeira das quais foi
feita em 27 de Dezembro de 1853 pelo próprio Dickens, com grande êxito, no
Birmingham Town Hall.
O actor Alastair Sim como
Scrooge (1951) e a primeira aparição de Scrooge McDuck (1947)
No
cinema, onde Scrooge foi interpretado por actores como Albert Finney, Michael
Caine ou Jim Carrey, há um filme que sobressai: A Christmas Carol (1951), de
Brian Desmond Hurst, originalmente chamado apenas Scrooge, onde o velho
avarento é excelentemente interpretado pelo actor escocês Alastair Sim
(1900-1976). Mas há outro Scrooge que ficou para a história no cinema, só
que no de animação: Scrooge McDuck, conhecido entre nós como Tio Patinhas.
Em filme, só em 1983 é que a Disney resolveu arriscar a sua versão do conto de
Dickens, com Mickey’s Christmas Carol, editado em Portugal como Um Conto
de Natal do Mickey.
Mas
a figura de Scrooge McDuck nasceu bem antes, em 1947, pela pena de um antigo
colaborador dos estúdios Disney, o ilustrador americano Carl Barks (1901-2000).
Inspirado na figura imaginada por Dickens, criou um pato barbudo (com o tempo viria a perder as barbas, ficando
apenas com umas suíças – como aparece no filme de 1983), avarento e rezingão,
que vivia isolado numa mansão com um mordomo. E foi assim que surgiu pela
primeira vez numa história aos quadradinhos, Christmas on Bear Mountain, na revista americana Four Color Comics. Tal mansão,
diz-se, terá sido inspirada na Xanadu do filme O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson
Welles, que por sua vez se inspirou no castelo
de San Simeon, do magnata William Randolph Hearst, caricaturado por Herman J.
Mankiewicz e Welles no seu Charles Foster Kane.
De
Sarscov, já são conhecidas 17 mutações. E de Scrooge, quantas terão assombrado
a nossa vida ao longo dos anos?
Procuramos livrar-nos de Sarscov com a ajuda de uma agulha, mas nem
mil agulhas nos livrarão de Scrooge, praga que ainda faz muitas vítimas, como
um vírus.
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