Faltou, parece-me, a referência ao clima,
como factor positivo deste recolhimento imposto, que se traduziu por uma menor
poluição, a favorecer o ambiente. Mas, como diz Teresa
de Sousa, tudo depende da continuação…
OPINIÃO
Um ano para não esquecer
São gigantescos os desafios que a
humanidade enfrenta, mas o ano não termina sem um sentimento de esperança.
PÚBLICO, 20 de
Dezembro de 2020
1. Edward
Luce escrevia o seguinte na sua mais recente
coluna do Financial Times,
referindo-se às duas vacinas que já estão aprovadas nos Estados Unidos. “Em
síntese, o governo federal ofereceu cerca de 14 mil milhões de dólares de
subsídios às farmacêuticas para produzir o mais depressa possível uma vacina.
Ao garantir pré-encomendas enormes e cobrindo outros custos (para readaptar
instalações, por exemplo), Washington eliminou grande parte do risco do sector
privado. Isto permitiu às empresas apostarem tudo na busca de uma solução
rápida. Os Institutos Nacionais de Saúde também facultaram a essas empresas muito do trabalho
prévio e o acesso às suas bases de dados. Como resultado, passaram
apenas dez meses entre a sequenciação do vírus em Janeiro até à 3.ª fase dos
ensaios, em Outubro. Nunca
nada assim tinha sido alcançado na história da Medicina.” A citação ajuda a compreender onde estamos hoje e
como aqui chegámos. O ano maldito de 2020 acaba com
o combate à pandemia a chegar a um novo patamar de esperança, graças à ciência
e aos meios excepcionais que os Estados colocaram ao seu dispor. Houve a
compreensão do que estava em causa e a mobilização dos meios necessários. Na
ciência como na economia. Nos EUA, na Europa ou no Japão, pacotes financeiros
para aliviar o impacte brutal da pandemia ultrapassaram a mais fértil
imaginação. As democracias não estavam preparadas para uma catástrofe desta
natureza. Encontraram algumas respostas muito depressa. Chegou o momento de se
tiraram as primeiras lições.
2. A
crise financeira de 2008 começou a enterrar a “ideologia dos mercados” que inspirou as democracias desenvolvidas nas três
décadas anteriores e que se tinha transformando-se em “receita obrigatória”
para o resto do mundo, se quisesse ter acesso aos financiamentos do FMI ou do
Banco Mundial. Os Estados intervieram maciçamente para salvar
bancos e empresas, mas as
velhas receitas neoliberais foram reconquistando terreno e nem sequer a ideia
de que era preciso regular a globalização, sob pena de os seus efeitos serem
destrutivos para amplos segmentos das sociedades, resultou em decisões
concretas. As
desigualdades continuaram a aumentar. A recuperação das economias
europeias mais afectadas pela crise financeira, desprovidas do recurso à
desvalorização da moeda, baseou-se na desvalorização dos salários. Regressou a velha TINA (There Is No Alternative) de Margaret
Thatcher. Os “pecadores” pagavam pelos seus
“pecados”. Mesmo assim, a questão das desigualdades encontrou um lugar na
agenda dos poderosos (em Davos, por exemplo, ou no G7). A tradução
política da “Grande Recessão” no florescimento dos movimentos
populistas e nacionalistas foi um
sinal de alarme que as democracias não escutaram inicialmente com a devida
atenção, culminando na eleição de Donald Trump no país mais poderoso do mundo. A China
com a sua “economia leninista de mercado” e com o crescimento mais rápido
registado nos anais da História humana, provou que havia uma alternativa ao
modelo das democracias, que dispensava justamente a democracia. Foi
quando a pandemia chegou.
Os países mais fortes
soçobraram. Sobretudo a Ocidente.
As desigualdades sociais revelaram-se em toda a sua extensão, mesmo nas democracias mais igualitárias munidas dos
mais avançados sistemas de saúde e de segurança social. O número de
vidas humanas perdidas é implacável e não poupa ninguém. A Europa,
no seu conjunto, regista o maior número de infecções e de mortes. As velhas
divisões entre os bem-comportados do Norte e os “pecadores” do Sul apagaram-se
num abrir e fechar de olhos. Não há um padrão. Nem há soluções melhores do que
outras, prontas a ser copiadas ou criticadas. Os Estados Unidos expuseram as suas próprias fraquezas, mais fundas do
que a mera responsabilidade de um Presidente que concorre para o prémio do pior
da sua história secular.
A União Europeia conseguiu, apesar de tudo, encontrar forças e
vontade para responder da melhor maneira possível: uniu-se para enfrentar a
pandemia e as suas consequências económicas e sociais de uma forma difícil de
imaginar há um ano. Lançou as bases e criou instrumentos para fazer
desta crise uma oportunidade. Sai dela mais solidária, mais unida e mais integrada. Os Estados Unidos elegeram
um Presidente que pode levá-los de regresso ao dinamismo e à força da sua
democracia, por mais pedregoso que possa ser o caminho. Desde que foi
eleito, o homem que quase
toda a gente via como um político fraco, envelhecido e pouco inspirador, está a
fazer um percurso sem falhas. Na
sabedoria, na moderação, nas escolhas, nas prioridades, no discurso,
distendendo progressivamente o ambiente irrespirável que o seu antecessor criou
e ainda tenta desesperadamente alimentar. Os tribunais americanos provaram a
sua independência, incluindo o Supremo. São gigantescos os desafios
que a humanidade enfrenta, mas o ano não termina sem um sentimento de esperança.
3.
No seu livro mais recente, Dez Lições para Um Mundo Pós-Pandemia, Fareed
Zakaria recorda um editorial do Financial
Times, escrito a 3 de Abril de 2020, que começava por realçar que a pandemia obrigava
a grandes sacrifícios colectivos e que, “para se exigir sacrifícios
colectivos, tem de se oferecer um contrato social que beneficie toda a gente.” A crise actual, prosseguia o editorial, “está a
expor até que ponto muitas sociedades ricas estão muito longe de alcançar esse ideal”. O jornal advogava a realização de “reformas
radicais que revertam o rumo político
prevalecente nas últimas quatro décadas (…) Os
governos terão de desempenhar um papel mais activo na economia. Têm de encarar
os serviços públicos como investimentos, e não como passivos, e também procurar
formas de tornar os mercados de trabalho menos inseguros. A redistribuição da
riqueza tornar-se-á um novo tema fulcral (…). Políticas até recentemente
consideradas excêntricas, como o rendimento básico incondicional, terão de ser
incluídas nos debates e nas medidas apresentadas.” É reveladora esta citação do jornal que é lido pela
elite empresarial e política do mundo inteiro e que atravessou todas as crises
mundiais desde a sua fundação, em 1888, sem nunca se desviar da sua linha
liberal de encarar as sociedades e o mundo. O seu valor é resumir
as oportunidades que esta
crise criou para escolhermos um caminho que leve a sociedades mais humanas e
mais justas.
4.
Pouco tempo depois do 11 de Setembro, Tony Blair, num dos mais poderosos discursos da sua carreira
política perante a conferência anual do Labour, usou uma imagem que serve para definir o mundo em
que vivemos hoje. “O caleidoscópio abanou, as peças estão em
movimento, em breve voltarão a imobilizar-se. Antes que isso aconteça,
precisamos de reordenar o mundo à nossa volta”. Nessa
altura, a reordenação do mundo não se revelou a melhor, como hoje
sabemos, lembra Charles Grant, director
do Centre for European Reform de Londres, num recente ensaio sobre a nova
geopolítica mundial. “O caleidoscópio foi de novo abanado pela crise
financeira de 2008-2010”, continua Grant. “Agora, de novo, a ordem global foi
abalada em consequência de quatro anos de Trump e da pandemia de covid-19”.
“Esta nova grande perturbação está a fortalecer uma China cada vez mais
confiante e a criar enormes problemas à Europa e aos EUA. Os valores democráticos liberais que ambos
defendem e o seu papel nas instituições internacionais está a ser desafiado”. Fica a interrogação:
a eleição de Biden e o novo impulso integrador da Europa podem
restaurar a confiança das democracias nelas próprias e na sua capacidade de se
renovarem? A possibilidade existe. Mas, como sempre, o futuro depende do que
fizermos dele.
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