domingo, 20 de dezembro de 2020

Síntese esclarecedora

 

Faltou, parece-me, a referência ao clima, como factor positivo deste recolhimento imposto, que se traduziu por uma menor poluição, a favorecer o ambiente. Mas, como diz Teresa de Sousa, tudo depende da continuação…

OPINIÃO

Um ano para não esquecer

São gigantescos os desafios que a humanidade enfrenta, mas o ano não termina sem um sentimento de esperança.

TERESA DE SOUSA

PÚBLICO, 20 de Dezembro de 2020

1. Edward Luce escrevia o seguinte na sua mais recente coluna do Financial Times, referindo-se às duas vacinas que já estão aprovadas nos Estados Unidos. “Em síntese, o governo federal ofereceu cerca de 14 mil milhões de dólares de subsídios às farmacêuticas para produzir o mais depressa possível uma vacina. Ao garantir pré-encomendas enormes e cobrindo outros custos (para readaptar instalações, por exemplo), Washington eliminou grande parte do risco do sector privado. Isto permitiu às empresas apostarem tudo na busca de uma solução rápida. Os Institutos Nacionais de Saúde também facultaram a essas empresas muito do trabalho prévio e o acesso às suas bases de dados. Como resultado, passaram apenas dez meses entre a sequenciação do vírus em Janeiro até à 3.ª fase dos ensaios, em Outubro. Nunca nada assim tinha sido alcançado na história da Medicina.” A citação ajuda a compreender onde estamos hoje e como aqui chegámos. O ano maldito de 2020 acaba com o combate à pandemia a chegar a um novo patamar de esperança, graças à ciência e aos meios excepcionais que os Estados colocaram ao seu dispor. Houve a compreensão do que estava em causa e a mobilização dos meios necessários. Na ciência como na economia. Nos EUA, na Europa ou no Japão, pacotes financeiros para aliviar o impacte brutal da pandemia ultrapassaram a mais fértil imaginação. As democracias não estavam preparadas para uma catástrofe desta natureza. Encontraram algumas respostas muito depressa. Chegou o momento de se tiraram as primeiras lições.

2. A crise financeira de 2008 começou a enterrar a “ideologia dos mercadosque inspirou as democracias desenvolvidas nas três décadas anteriores e que se tinha transformando-se em “receita obrigatória” para o resto do mundo, se quisesse ter acesso aos financiamentos do FMI ou do Banco Mundial. Os Estados intervieram maciçamente para salvar bancos e empresas, mas as velhas receitas neoliberais foram reconquistando terreno e nem sequer a ideia de que era preciso regular a globalização, sob pena de os seus efeitos serem destrutivos para amplos segmentos das sociedades, resultou em decisões concretas. As desigualdades continuaram a aumentar. A recuperação das economias europeias mais afectadas pela crise financeira, desprovidas do recurso à desvalorização da moeda, baseou-se na desvalorização dos salários. Regressou a velha TINA (There Is No Alternative) de Margaret Thatcher. Os “pecadores” pagavam pelos seus “pecados”. Mesmo assim, a questão das desigualdades encontrou um lugar na agenda dos poderosos (em Davos, por exemplo, ou no G7). A tradução política da “Grande Recessão” no florescimento dos movimentos populistas e nacionalistas foi um sinal de alarme que as democracias não escutaram inicialmente com a devida atenção, culminando na eleição de Donald Trump no país mais poderoso do mundo. A China com a sua “economia leninista de mercado” e com o crescimento mais rápido registado nos anais da História humana, provou que havia uma alternativa ao modelo das democracias, que dispensava justamente a democracia. Foi quando a pandemia chegou.

Os países mais fortes soçobraram. Sobretudo a Ocidente. As desigualdades sociais revelaram-se em toda a sua extensão, mesmo nas democracias mais igualitárias munidas dos mais avançados sistemas de saúde e de segurança social. O número de vidas humanas perdidas é implacável e não poupa ninguém. A Europa, no seu conjunto, regista o maior número de infecções e de mortes. As velhas divisões entre os bem-comportados do Norte e os “pecadores” do Sul apagaram-se num abrir e fechar de olhos. Não há um padrão. Nem há soluções melhores do que outras, prontas a ser copiadas ou criticadas. Os Estados Unidos expuseram as suas próprias fraquezas, mais fundas do que a mera responsabilidade de um Presidente que concorre para o prémio do pior da sua história secular.

A União Europeia conseguiu, apesar de tudo, encontrar forças e vontade para responder da melhor maneira possível: uniu-se para enfrentar a pandemia e as suas consequências económicas e sociais de uma forma difícil de imaginar há um ano. Lançou as bases e criou instrumentos para fazer desta crise uma oportunidade. Sai dela mais solidária, mais unida e mais integrada. Os Estados Unidos elegeram um Presidente que pode levá-los de regresso ao dinamismo e à força da sua democracia, por mais pedregoso que possa ser o caminho. Desde que foi eleito, o homem que quase toda a gente via como um político fraco, envelhecido e pouco inspirador, está a fazer um percurso sem falhas. Na sabedoria, na moderação, nas escolhas, nas prioridades, no discurso, distendendo progressivamente o ambiente irrespirável que o seu antecessor criou e ainda tenta desesperadamente alimentar. Os tribunais americanos provaram a sua independência, incluindo o Supremo. São gigantescos os desafios que a humanidade enfrenta, mas o ano não termina sem um sentimento de esperança.

3. No seu livro mais recente, Dez Lições para Um Mundo Pós-Pandemia, Fareed Zakaria recorda um editorial do Financial Times, escrito a 3 de Abril de 2020, que começava por realçar que a pandemia obrigava a grandes sacrifícios colectivos e que, “para se exigir sacrifícios colectivos, tem de se oferecer um contrato social que beneficie toda a gente.A crise actual, prosseguia o editorial, “está a expor até que ponto muitas sociedades ricas estão muito longe de alcançar esse ideal”. O jornal advogava a realização de “reformas radicais que revertam o rumo político prevalecente nas últimas quatro décadas (…) Os governos terão de desempenhar um papel mais activo na economia. Têm de encarar os serviços públicos como investimentos, e não como passivos, e também procurar formas de tornar os mercados de trabalho menos inseguros. A redistribuição da riqueza tornar-se-á um novo tema fulcral (…). Políticas até recentemente consideradas excêntricas, como o rendimento básico incondicional, terão de ser incluídas nos debates e nas medidas apresentadas.” É reveladora esta citação do jornal que é lido pela elite empresarial e política do mundo inteiro e que atravessou todas as crises mundiais desde a sua fundação, em 1888, sem nunca se desviar da sua linha liberal de encarar as sociedades e o mundo. O seu valor é resumir as oportunidades que esta crise criou para escolhermos um caminho que leve a sociedades mais humanas e mais justas.

4. Pouco tempo depois do 11 de Setembro, Tony Blair, num dos mais poderosos discursos da sua carreira política perante a conferência anual do Labour, usou uma imagem que serve para definir o mundo em que vivemos hoje. “O caleidoscópio abanou, as peças estão em movimento, em breve voltarão a imobilizar-se. Antes que isso aconteça, precisamos de reordenar o mundo à nossa volta”. Nessa altura, a reordenação do mundo não se revelou a melhor, como hoje sabemos, lembra Charles Grant, director do Centre for European Reform de Londres, num recente ensaio sobre a nova geopolítica mundial. “O caleidoscópio foi de novo abanado pela crise financeira de 2008-2010”, continua Grant. “Agora, de novo, a ordem global foi abalada em consequência de quatro anos de Trump e da pandemia de covid-19”.Esta nova grande perturbação está a fortalecer uma China cada vez mais confiante e a criar enormes problemas à Europa e aos EUA. Os valores democráticos liberais que ambos defendem e o seu papel nas instituições internacionais está a ser desafiado”. Fica a interrogação: a eleição de Biden e o novo impulso integrador da Europa podem restaurar a confiança das democracias nelas próprias e na sua capacidade de se renovarem? A possibilidade existe. Mas, como sempre, o futuro depende do que fizermos dele.

tp.ocilbup@asuos.ed.aseret

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