De povo disseminado, a simplesmente um povo em busca de sobrevivência? Outrora como agora. Outrora lançando-se numa empresa de vasto alcance, com coragem e espírito aventureiro, agora, encostando-se a uma Europa por astúcia e necessidade, e tudo o resto me parecem palavras de simpatia para adoçar uma pílula amarga. Ou uma filosofia bonita para dourar a tal pílula, de um fado incrustado na nossa pele. Ama-se Portugal, afinal, no que ele tem de genuíno, o seu folclore e as figuras distintas da sua nacionalidade, tudo o resto me parece supérfluo, esse frisar, como de vaidoso enigma, o ser-se Português. Pura poesia, simplesmente vã.
O enigma de ser Português
Eduardo Lourenço foi dos poucos que
teve a coragem de enfrentar e pensar, em termos de identidade nacional, o
cataclismo histórico que foi o fim do império
LUÍS RIBEIRO
OBSERVADOR, 23 dez
2020
Eduardo Lourenço partiu este mês. Cumprira
a sua missão histórica, e certamente partiu tranquilo – como tranquila fora
sempre a sua forma de estar. Tinha seguramente a consciência de que
aprofundara o “enigma” daquilo que é termos uma Pátria, sermos Portugueses e
amarmos Portugal.
Foi
dos poucos que teve a coragem de enfrentar e pensar, em termos de identidade
nacional, o cataclismo histórico que foi o fim do império. A nossa consciência colectiva como Portugueses – aquilo
que nesse “enigma” constitui o fulcro da nossa unidade nacional – ficou-lhe com uma dívida que não poderá pagar
jamais, porque estabeleceu as bases da psicologia colectiva para a permanência
e missão histórica de Portugal para além do império:
“O
fim de um regime que parecia adaptado à realidade portuguesa como uma luva, o
final de um império de quinhentos anos, o regresso obrigatório ao nosso espaço
europeu do sec. XV não deram lugar a nenhum reexame ou exame espetacular da
nossa imagem … [que] quase poderia dizer-se saiu fortalecida…. No final do ciclo do império, ficámos de
certo modo aliviados e inclusivamente justificadamente orgulhosos por constatar
que a estrutura da nossa hiperidentidade, a nossa dupla identidade de povo
europeu não hegemónico e de povo … disseminado e sobrevivente no espaço
imperial, tinha fundamento.” (As
citações seguintes são de “Nós e a Europa, ou as Duas Razões”, Eduardo Lourenço, edição INCM – Imprensa Nacional Casa da Moeda, abril
de 1994, e de “O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português”,
Eduardo Lourenço, Publicações D. Quixote, 1978).
Eduardo Lourenço pensou as consequências do fim do império para o
nosso enquadramento num mundo que passámos a olhar de forma completamente
diferente depois de 11 de novembro de 1975, dia da proclamação da
independência de Angola.
Em
termos de passado histórico, ao mesmo tempo que olhava para trás
reconciliando-nos com positividade, dava-nos a conhecer mais uma faceta
daquilo que nos define enquanto povo português: “O mau uso da ideologia
colonizadora que pudemos ter feito em algum momento da nossa história não
invalidou, ao cabo, aquilo que também havia de positivo, de ecumenismo prático,
vivido na complexa aventura da Fenícia moderna que é Portugal, … temperada pela
humanidade de um povo … que nunca se encontrou fora de si mesmo … no vasto
mundo”.
Em
termos de vizinhança peninsular, no contraste com a Espanha, reiterou
que o nosso futuro não podia jamais ser ibérico, tais as diferenças
identitárias que nos separam: “ao
contrário da Espanha, que é múltipla na relação consigo mesma, Portugal é, por
assim dizer, exageradamente uno.
Nessa condição … Portugal, o de ontem e mais ainda o de hoje, nunca teve, nem
tem, propriamente, problemas de identidade. Se tem problemas dessa ordem, ou
seja, de interrogação ou dúvida sobre o seu estatuto em quanto a povo autónomo,
inconfundível, serão, mais bem, problemas de superidentidade. … Todos os
portugueses são, ou sentem-se, por assim dizer ‘hiperportugueses’.”Efectivamente,
Portugal encarou de forma totalmente diferente de Espanha a questão da perda do
império. Enquanto Espanha caiu numa situação traumática, que afectou o tecido político, cultural e social
durante um longo período de depressão colectiva, exemplificado na Geração de
1898, a perda do império português não levou a uma crise de
identidade nacional.
Em
termos do regresso ao espaço europeu, Eduardo
Lourenço enquadrou-o com naturalidade, porque os
portugueses “já eram “superlativamente europeus … quando a Europa se definia no
mundo como continente intermédio … Já provámos que não podíamos ser “digeridos”
como portugueses, inclusivamente porque a nossa vocação mais profunda, como
mitificou Pessoa … é a de estar no mundo como em casa.”Portugal apresentou-se perante a Europa em 1986 em
igualdade de posicionamento com Espanha e isso constituiu o culminar de uma vontade
de afirmação secular, da qual o império fora uma das expressões.
Em
termos de futuro, este será necessariamente o epítome do passado, ou
simplesmente não existirá: “A nossa imagem [entendida como a imagem de nós
próprios, portugueses] é hoje mais serena e mais harmoniosa do que o pôde ser
noutras épocas … Mas os sonhos não nos mudam. E só isso importa para poder,
sem perda de identidade, perseverar numa presença nossa no mundo e do mundo
em nós não demasiado indigna daquela que, no seu momento solar, nos definiu
como o sonho da mediação europeia com vocação universal.”
Uma das principais características do
pensamento de Eduardo Lourenço, a humildade de reconhecer que não consegue
abarcar o significado último do que é “ser português”, permite-lhe ver aquilo
que outros não ousam enfrentar, e tomar consciência de que Portugal é “esse
rebento incrivelmente frágil para ter podido aparecer, e misteriosamente forte
para ousar subsistir”. No entanto,
como entidade colectiva, “Não fomos, nós somos uma pequena nação que desde a
hora do nascimento se recusou a sê-lo sem jamais se poder convencer que se
transformara em grande nação. Contudo, … poucas vezes um povo partindo
de tão pouco alcançou … um direito tão claro a ser tido por ‘grande’.”
É
essa humildade que o impele a falar, numa das últimas entrevistas, da ideia da vida enquanto
“enigma”, ideia essa que “É agora maior do que nunca. Tudo me parece mais
enigmático do que aquilo que eu pudesse sonhar que fosse. Estamos confrontados
com qualquer coisa para a qual não há espécie nenhuma de resposta ou, se há, é
de uma outra natureza que as pessoas têm pudor de confessar, aquilo que não
pode ser dito.
Uma experiência próxima do religioso?
O religioso é onde tudo se desenha,
mesmo quando não sabemos. Isso que nos está falando sem nos falar.”
Depois de se ter cumprido o mar e o
império se ter desfeito, obrigado a Eduardo
Lourenço por nos ajudar a cumprir este enigma que é Portugal.
EDUARDO
LOURENÇO PAÍS OBITUÁRIO SOCIEDADE FILOSOFIA CULTURA
Nenhum comentário:
Postar um comentário