sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Vale também a pena ler


 – Na Internet, por exemplo - o libelo de Antero de Quental que ele leu na segunda sessão das “Conferências do Casino “, em 27/5/1871, sessões que iniciariam a corrente realista que tantos nomes ilustres de literatos e estudiosos forneceria à nação, dispostos a libertar o país de uma crassa pobreza material e espiritual vinda de longe, sim, em distância temporal, que Antero quis explicar na sua primeira intervenção de conferencista no Casino Lisbonense: “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, lhe chamou, que desenvolveu segundo três tópicos, que encontramos facilmente na Internet, donde extraio a sua síntese:

Já Antero de Quental tomara como tema das “Conferências do Casino” as causas do atraso português (e espanhol, na altura), no discurso de abertura no Casino Lisbonense

«1. A reacção religiosa, conhecida como Contra-Reforma, consumada no Consílio de Trento e dirigida por jesuítas;

«2. A centralização política realizada pela monarquia absoluta, com a consequente perda das liberdades medievais;

«3. O sistema económico criado pelos Descobrimentos, de rapina guerreira, que tinha impedido o desenvolvimento de uma pequena burguesia

«A primeira tese inspirada em Alexandre Herculano (“ Da origem e do estabelecimento da Inquisição em Portugal” de 1854), a segunda, seguindo a tese de Montesquieu em L’Esprit des loiseconfirmada para Portugal pela “História de Portugal” de Herculano. A terceira tese, sobre a causa económica, tem origem em autores dos séculos 17 e 18.

«Publicada em folheto, exerceu grande influência, sobretudo em Oliveira Martins, que escreverá aHistória da Civilização Ibérica” e a “História de Portugal”»

Mas vale bem a pena ler o libelo de Antero de Quental, pela clareza e lucidez dos seus argumentos, o que não obsta à evidência do argumento final de Salles da Fonseca, e seus comentadores, a respeito do atraso permanente em que sempre fomos “viciados”, justificativo da situação terceiro-mundista que para sempre nos definirá.

 

DO DESENVOLVIMENTO - 1

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 23.12.20

Na minha passagem por dois Comités de Peritos da EFTA[i], tive um colega na representação portuguesa que fazia humor perguntando se Portugal seria o país mais atrasado do primeiro mundo ou o mais desenvolvido do terceiro mundo. O meu sentido de humor não era (nem é) assim tão elástico e apenas esboçava um sorriso não dando seguimento à conversa. Mas ficava a pensar…

Numa conversa informal com um membro norueguês de um desses Comités, fiquei a saber que nos anos 20 do séc. XX tinha sido localizado num recanto obscuro de um fjord longínquo um adulto que vivia isolado com a sua avó numa cabana de madeira alimentando-se da pesca e de pouco mais e que, pasme-se, era analfabeto. O escândalo por haver um norueguês adulto que não sabia ler nem escrever foi tal que o assunto mereceu debate no Parlamento e o Governo caiu.

Pela minha parte, costumo comparar alguns países:

A Suíça e o Afeganistão são países interiores mas existe uma relativamente importante marinha comercial suíça com portos de amarração em Génova e em Amesterdão (e importante tráfego fluvial ao longo do Reno); é sabido que a Suíça não tem riquezas no subsolo mas nada se sabe acerca de eventuais riquezas mineiras afegãs; nenhum dos dois países tem relevante propensão agro-pecuária mas a Suíça tem a «Nestlé». Assim, à pergunta sobre o que justifica tão díspares níveis de desenvolvimento, só me ocorre responder com a qualidade das pessoas que residem em cada um desses países;

O Japão não tem recursos naturais e Angola é naturalmente ubérrima. Também aqui, à pergunta sobre qual a razão para tão díspares níveis de desenvolvimento, só encontro a resposta na qualidade das pessoas dentro de cada um desses países. A propósito, a frase do Professor Doutor Manuel Enes Ferreira (ISEG,UL) quando lastima esses «pobres países ricos».

Historicamente, em Portugal, chegámos à República com uma taxa de analfabetismo estatístico[ii] adulto a rondar os 90% e em 1974 ainda essa taxa era da ordem dos 25%. No Recenseamento Geral da População realizado em 2011, esse flagelo ainda era de 5%. No próximo Recenseamento, em 2021, adivinho com alguma facilidade, a redução que verificaremos ficará a dever-se sobretudo ao forte incremento dos óbitos causados nas mais altas faixas etárias pela pandemia. Não faço futurologia, lamento que continue a haver em Portugal quem apelide a alfabetização de adultos de «arqueologia social»[iii].

Um conhecido meu, que tinha sido Prior de uma populosa (e popular) Paróquia de Lisboa, referiu-se a inúmeros jovens universitários frequentadores da sua igreja e actividades correlativas como tendo «espírito de analfabetos». Perante o meu espanto, perguntou-me ele se eu seria capaz de imaginar a vida doméstica de um jovem (rapaz ou rapariga) que é estudante do ensino superior mas cuja família é composta por avós totalmente analfabetos, pais com o ensino primário incompleto e já quase esquecido, casas em que o nível literário mais elevado é um jornal de futebol surripiado da tasca da esquina… Gente esta equiparada a objectos arqueológicos… Contudo, conseguiram fazer com que das suas casas surgissem estudantes universitários. E que se passará nas outras casas donde não surgem jovens com vontade de subir na vida? Temo que enxameiem os noticiários mais abjectos da comunicação social.

Sem querer maçar com informação estatística, não resisto a referir o que encontrei no Eurostat que nos diz que, em 2019, nos 28 Estados da UE havia 25,7% da população com apenas (nível máximo) o patamar elementar da escada da escolaridade mas que na Suécia esse índice era de 20,8% e em Portugal uns tenebrosos 47,6%. Por aqui se vê o esforço que ainda temos que fazer para chegarmos à média europeia.

O cenário urbano acima descrito é extremamente pesado e representa enorme inércia ao desenvolvimento não só pela evidente falta de produtividade mas também pelo peso das políticas públicas de protecção social. É claro que não se pode deixar essa gente sem tecto nem amparo mas o problema está em que dos pântanos não surgem rosas nem cravos.

* * *

Em paralelo com o ambiente social o urbanismo periférico, o mundo rural tem vindo progressivamente a assemelhar-se a um lar para a terceira idade. Em Portugal, a empresa agrícola não tem ao seu dispor os mecanismos que lhe garantam mercados transparentes nem métodos lógicos de formação de preços. Basta reconhecermos a existência de um fortíssimo lobby do comércio constituído por um facilmente identificável oligopsónio para constatarmos que o «jogo» está todo viciado em desfavor da oferta.

Resumindo, os problemas sociais da periferia urbana – nomeadamente nas nossas maiores cidades - constituindo quase totalmente uma relação directa da desertificação do mundo rural pelo facto de em Portugal à oferta cumprir a amarga tarefa de servir os interesses da procura. Ou seja, desfavor da produção, privilégio do consumo, crónicos défices comerciais externos, empolamento da dívida externa privada, insolvência nacional, recurso recorrente ao FMI e quejandos apoios

E se assim é no mundo rural, nas pescas ainda é pior com um método de formação dos preços na primeira venda[iv] que comprime a oferta sob a quase totalidade do risco e a procura a definir todas as regras desse mercado.

* * *

De tudo, para concluir que ainda nos falta muito para nos constituirmos como um modelo de desenvolvimento.

(continua)

Dezembro de 2021

Henrique Salles da Fonseca

 

Em tempo: para quem quiser consultar as estatísticas e índices da escolaridade nos Países europeus, sugiro o «Eurostat – Escolaridade» e, a nível mundial, o «Relatório do Desenvolvimento Humano do PNUD» (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)

[i]- Comité de Peritos Comerciais e Comité de Peritos Aduaneiros e de Origem

[ii]- Analfabetismo estatístico corresponde àqueles que não sabem ler nem escrever

[iii]- Expressão que ouvi da boca de quem então presidia à ANEFA-Agência Nacional para a Educação e Formação de Adultos entretanto extinta e substituída pelas «NOVAS OPORTUNIDADES»

[iv]- Leilão descendente, invertido

Tags:: "economia portuguesa"

 

COMENTÁRIOS

Anónimo 24.12.2020: Na véspera de Natal, eis o presente natalício do Henrique – reflexões sobre o desenvolvimento de Portugal. Sabes que a minha formação não é macroeconomia, então pouco poderei aportar, da minha lavra, ao tema, mas tão-só invocar reflexões de outros que, de alguma forma concorde, e que poderão completar o teu pensamento ou servir de seu contraponto. Dentre as várias causas do diferente desenvolvimento dos Países está, obviamente, a qualidade das pessoas que aí residem, como dizes. Vários economistas, designadamente Prémios Nobel, têm procurado as razões para essa situação. Entre estes, destaca-se, pelo seu pioneirismo, Douglass North. Perante a não explicação cabal desse fenómeno pelos factores económicos, como o capital, a mão-de-obra (incluindo o capital humano que representa a educação e o grau de qualificações), bem como o progresso tecnológico e o comércio internacional, North acrescentou as instituições que sustentam a economia do País. Se estas forem corruptas isso afectará negativamente o desenvolvimento económico. O pensamento deste economista consta, por exemplo, do livro de Linda Yueh intitulado “Os grandes Economistas”. O trabalho de North teve seguimento por outros economistas, como James Robinson, um dos coautores dum livro já aqui citado por mim “Porque falham as Nações”. É apontada como causa deste falhanço a existência de instituições extractivas que incentivam a exploração, em lugar de um esforço produtivo. Estas não criam os estímulos necessários para que as pessoas poupem, invistam e inovem, antes cimentam o poder daqueles que beneficiam com a extracção. Acrescentam os autores (pág. 443) que os políticos desses países não têm o menor pejo em extrair recursos ou em asfixiar qualquer tipo de actividade económica independente susceptível de constituir uma ameaça para si ou para as elites económicas. A solução, apontam, é transformar as instituições extractivas em inclusivas. Os autores apresentam inúmeros exemplos de fracasso e também alguns de sucesso e dentro dos primeiros, particularmente no que se refere a ajuda externa, está o Afeganistão, a que tu também te referes. Estima-se que apenas 10%, ou no máximo 20%, daquela cheguem ao seu destino!...
O meu amigo Eduardo Catroga, no seu livro “Gestão, Política e Economia”, menciona Angus Deaton como um dos que se insurge contra a política corrente de ajuda ao desenvolvimento dos países mais pobres pelos países mais ricos em que estes atiram “dinheiro para o problema”, e que os maus governantes o utilizam frequentemente para se perpetuar no poder, desviando do seu fim de fomento do desenvolvimento económico. Na vez anterior que citei “Porque falham as Nações” disse que não poderíamos encontrar explicação para a situação de atraso relativo de Portugal na existência de instituições extrativas – outras seriam a causas. César das Neves em “Portugal, esse desconhecido” reconhece que Portugal não é um país roubado nem espoliado. Uma das principais causas para o nosso atraso é a
educação, a que te referes igualmente (páginas 262 e seguintes). Mas aponta outras causas, tais como: incompetência da regulamentação, paralisia da burocracia, peso dos impostos, bloqueio do corporativismo (e não encontrarás neste corporativismo resposta ao tema que suscitas na parte final do teu post.desfavor da produção e privilégio do consumo?) Outro amigo, António Mendonça Pinto, no livro “Economia Portuguesa – Melhor é possível” (2002) trata também da qualidade dos recursos humanos, reconhecendo que se falhou dramaticamente na educação e qualificação dos portugueses, antes e depois do 25 de Abril. Tínhamos, então, a menor escolaridade média por pessoa entre os 25 e os 64 anos no conjunto dos países da OCDE, para além de não termos prestado a devida atenção aos conteúdos do ensino e à empregabilidade que os mesmos poderiam proporcionar. Decorridas quase duas décadas, confio que os alunos quando actualmente saem da Escola, estejam mais preparados para a economia do presente e do futuro do que para a do passado. Termino, com duas preocupações de outro colega, Eugénio Rosa, expressas no seu livro “Uma Nova Política Económica” (2006) – as baixas qualificações profissionais associadas à baixa escolaridade; e a incidência desta na qualificação dos patrões. Feliz Natal.
Carlos Traguelho

Adriano Lima 24.12.2020: Acertada reflexão, dr. Salles. O défice de escolaridade é, efectivamente, a causa fundamental do nosso atraso em relação aos nossos parceiros. O problema é que será difícil superá-lo para que possamos atingir num dado momento o patamar médio dos outros. É que podemos intensificar o esforço nesse sentido, mas os outros não ficam entretanto parados no tempo e continuarão a diferenciar-se positivamente de uma ou outra maneira, seja na área da escolarização, seja na melhoria dos processos de socialização.

 

NOTAS DA INTERNET:

Uma página de Antero de Quental: (< «Causas da Decadência dos Povos Peninsulares»:

«……Quais as causas dessa decadência, tão visível, tão universal, e geralmente tão pouco explicada? Examinemos os fenómenos que se deram na Península durante o decurso do século XVI, período de transição entre a Idade Média e os tempos modernos, e em que aparecem os gérmenes, bons e maus, que mais tarde, desenvolvendo-se nas sociedades modernas, deram a cada qual o seu verdadeiro carácter. Se esses fenómenos forem novos, universais, se abrangerem todas as esferas da actividade nacional, desde a religião até à indústria, ligando-se assim intimamente ao que há de mais vital nos povos estarei autorizado a empregar o argumento (neste caso, rigorosamente lógico) post hoc, ergo propter hoc, e a concluir que é nesses novos fenómenos que se devem buscar e encontrar as causas da decadência da Península.

Ora esses fenómenos capitais são três, e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo Concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia: a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou: a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo o trabalho à força, e o comércio à guerra de conquista. Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do catolicismo do Concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus: a classe média, impondo aos reis os seus interesses, e muitas vezes o seu espírito, é o oposto do absolutismo, esteado na aristocracia e só em proveito dela governando: a indústria, finalmente, é o oposto do espírito de conquista, antipático ao trabalho e ao comércio…..» 

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