Não foi isso o que se viu sempre? Para
quê armar agora em generosos? Para isso servem as armas e sempre serviram. Para
aumentar o poder económico daqueles que as têm, está visto. Dantes também
serviram para aumentar o poder bélico próprio, e mesmo hoje… Nós por cá é que
somos uns atadinhos, que até deixamos que nos roubem as nossas armas, talvez
pela muita bondade de que somos munidos, a defender os direitos, pelas esquinas,
juntamente com as nossas sopas … Macron
é
um grande estadista e amante da sua pátria, está visto…
CRÓNICA 4 ESQUINAS
Para Macron não há melhor direito humano que o de
vender armas
O mundo que se conta a partir do que se diz.
PÚBLICO, 11 de Dezembro de 2020
“Não vou condicionar a nossa cooperação em matéria de defesa e em
matéria económica a estes desacordos [sobre direitos humanos], Emmanuel
Macron, Presidente francês
“Prisioneiro das suas contradições”
Na perspectiva de Emmanuel
Macron, a defesa e cooperação francesa não podem depender da questão dos
direitos humanos. Para a real
politique à francesa, uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa. Aos
demais exige-se respeito pelos direitos humanos, reclamam-se ingerências em
assuntos internos de outrem, criticam-se apoios a regimes ditatoriais; em causa
própria, Emmanuel Macron prefere optar pelo pragmatismo económico e nenhum
regime é demasiado pária para ser impedido de receber uma encomenda de
armamento francês, desde que tenha dinheiro para pagar. "Não vou condicionar a nossa cooperação
em matéria de defesa e em matéria económica a estes desacordos [sobre direitos
humanos]”, afirmou esta semana o Presidente francês,
que recebeu com pompa e circunstância o seu homólogo egípcio, Abdel
Fattah al-Sissi, no Palácio
do Eliseu. Como escreveu
o Le Monde, na quarta-feira, em editorial, “Macron mostra-se prisioneiro das
suas contradições, entre a defesa de direitos ditos universais e a prática de
relações bilaterais concebidas com base em interesses militares, económicos,
migratórios e antiterroristas”. Alguém
que tanto fala da laicidade como base para o Estado, assente na filosofia do
iluminismo, rapidamente apaga a luz da razão para alimentar de armas esse mesmo
integrismo que tanto quer recuperar para o mundo moderno. Quando numa
mão está o livro e no outro a arma, para que mão devem olhar os governantes do
Médio Oriente a quem o líder francês dedica o seu proselitismo sobre a
importância de caricaturar Maomé como fundamento civilizacional?
Guerra contra o Parlamento
O site
Disclose divulgou
esta semana a guerra secreta contra a Assembleia Nacional em que o Governo
francês está envolvido, depois da divulgação no mês passado de um relatório
parlamentar sobre venda de armas, redigido por Jacques Maire, deputado do
República em Marcha, partido do Presidente, e Michèle Tabarot, d’Os
Republicanos. Segundo uma nota classificada como “confidencial” a que o site teve acesso, o Secretariado Geral da
Defesa e da Segurança Nacional (SGDSN) está a trabalhar nos bastidores para
enterrar numa gaveta esconsa o documento e assim evitar ser obrigado ao que os
deputados nele pedem: transparência. Isto
é, os eleitos pelo povo pedem o controlo democrático das exportações de armas
francesas, algo que Macron e o seu Governo não se mostram disponíveis para
fazer. Dois anos depois da mobilização de
organizações não-governamentais e da opinião pública ter levado à criação de
uma missão de informação parlamentar sobre as exportações de armas francesas, o
Governo Macron procura nos bastidores pôr fim àquilo que publicamente lhe foi
exigido, acabar com o que a Amnistia Internacional chamava no mês passado de
“opacidade que reina em torno das exportações de armas francesas”. Para o SGDSN, o que o relatório parlamentar recomenda
não pode ser aplicado porque entrava a liberdade comercial do
Estado e poderá “levar à exclusão da indústria francesa em alguns países”. Mas se comprador e vendedor exigem que
o negócio de armas se mantenha secreto não deveria ser essa razão fundamental
para um Presidente que tanto defende a laicidade e os valores civilizacionais
deixar cair esse negócio? Como diz a
Amnistia, “entre as grandes democracias ocidentais exportadoras de
armamento, a França é o único país onde o Parlamento não exerce qualquer forma
de controlo sobre a venda de armas”.
Muro da vergonha
A 8 de Julho três
navios de guerra interceptadores franceses foram exportados para a Arábia
Saudita para equipar a marinha militar saudita que há seis anos está envolvida
numa guerra no Iémen que se transformou no maior desastre humanitário a nível
mundial, de acordo com a ONU: com 24,1 milhões de pessoas, o equivalente a 80% da
população, a necessitar de ajuda humanitária e protecção. “Os civis no Iémen não estão a morrer à fome estão
a ser mortos à fome pelas partes em conflito”, disse Kamel Jendoubi, presidente
do Grupo de Especialistas Eminentes Internacionais e Regionais das Nações
Unidas, na semana passada. A França está a ganhar milhares de milhões de euros
com um conflito onde os direitos humanos são violados diariamente e onde 233
mil pessoas já morreram, a maioria vítimas indirectas de uma guerra sem fim à
vista, segundo a ONU. Como afirmou esta quinta-feira Henrietta Fore,
directora executiva da UNICEF, no Iémen
a vida é um “pesadelo acordado” para 12 milhões de crianças. A pressão
feita por numerosas ONG e muitas vozes da sociedade civil para que a França deixe de alimentar com armas um conflito que está a matar e a estropiar uma população inteira
no presente e no futuro (que adultos darão as crianças que sobreviverem?) não
tem dado resultado. O mês
passado, Murad Subay, pintou um fresco num
cruzamento em Paris a denunciar o lucro que o Estado francês está a retirar com
a morte generalizada no Iémen, mas
é pouco provável que Emmanuel Macron se reveja nesse muro da vergonha e mude a
sua política. A Arábia
Saudita é o
terceiro maior comprador de armas a França e os Emirados Árabes
Unidos (que apoiam os separatistas do sul
que também combatem as forças do governo apoiadas pelos sauditas) bate recordes
nas suas importações de arsenal francês.
“Organização criminosa”
As 25 maiores empresas de venda de armas do mundo viram aumentar o seu
negócio em 8,5% em 2019, de acordo
com os números divulgados esta semana pelo
Instituto Internacional de Investigação para a Paz de Estocolmo (SIPRI). O
seu volume de vendas conjunto ascendeu a 361 mil milhões de dólares.
Entre essas empresas está a gigante francesa Thales que na terça-feira conseguiu adiar para 23 de Fevereiro
o início do julgamento na África do Sul em que está acusada, junto com o
ex-Presidente sul-africano Jacob Zuma, de pagar subornos milionários em troca
de contratos estatais. Há 17
anos que o ex-chefe de Estado e a multinacional francesa têm conseguido evitar
que o caso seja julgado. Na terça-feira, nem Zuma nem a Thales estiveram
presentes, só advogados para garantir mais tempo para preparar a defesa. O
ex-Presidente (que foi forçado a demitir-se pelo seu próprio partido em 2018) recebia
da Thales, segundo a acusação, 500 mil rands por ano (quase 28 mil euros)
através do seu antigo conselheiro financeiro, Schabir Shaik (condenado em 2005
a 15 anos de prisão por corrupção), para olear o aparelho do Estado de maneira
a dar primazia à empresa francesa nos contratos públicos. Como lembra Terry Crawford-Browne, da
organização War Beyond War, no Business Day, a Thales, ainda quando se chamava Thomson CSF
e era detida a 100% pelo Estado francês (hoje mantém controlo accionista sobre
a Thales), violou o embargo de venda de armas ao regime do apartheid. Não
admira o seu comportamento com Zuma, porque não é mais do que “uma organização
criminosa em grande escala”, sublinha.
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