quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Ziguezagueando

 

Um texto elucidativo sobre as arremetidas e intransigências de uma união esfrangalhada. Por NUNO SEVERIANO TEIXEIRA, Professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa; director do Instituto Português de Relações Internacionais.

Prometem continuar, as arremetidas. E as intransigências, de parte a parte.

OPINIÃO

Acordo ou não acordo, eis a questão?

Três questões essenciais separam UE e Reino Unido no “Brexit”: as pescas, a concorrência e o mecanismo de resolução de diferendos.

NUNO SEVERIANO TEIXEIRA

PÚBLICO, 16 de Dezembro de 2020

Parece uma história interminável. Depois de nove meses de negociações, vários ultimatos, vários prazos esgotados e outros tantos estendidos, as negociações continuam. O “Brexit” é uma espécie de combate de wrestling. Com movimentos espectaculares e golpes violentos, mas cuidadosamente encenados e, obviamente, falsos. E é por isso que ambos os combatentes podem exibir a sua força, podem até cantar vitória, mas sem que ninguém se magoe. A estratégia negocial é ameaçar com a ruptura e credibilizar a ameaça, isto é, fazer crer à outra parte que se está preparado para romper e para pagar o preço da ruptura. Mais, que se está mais bem preparado do que o outro para superar os custos da ruptura. Mas, em boa verdade, ninguém está interessado nela. Porque ambos ficariam a perder. Talvez mais o Reino Unido, em que 46% das suas exportações vão para o mercado europeu, enquanto apenas 18% das exportações da União Europeia vão para o mercado britânico. Mas uma coisa é certa: o dano era grande para ambas as partes. E é por isso que, apesar das ameaças, ninguém quer romper e as negociações continuam.

Mas, afinal, o que é que está em causa? O que está em causa é um acordo comercial entre o Reino Unido e a União Europeia que regule as relações futuras depois da saída britânica. E vale a pena dizer que há acordo sobre 90% do texto do Tratado. O que falta, então, acordar? Três questões essenciais: as pescas, a concorrência e o mecanismo de resolução de diferendos.

Quanto às pescas, o Reino Unido deixará a política comum de pescas e retomará a soberania na sua zona económica exclusiva. A questão será, então, a do acesso das frotas europeias às águas britânicas. Londres quer uma negociação anual das quotas pesqueiras permitidas às frotas europeias nas suas águas com base nas chamadas “zonas anexas” – isto é, a divisão seria calculada com base na percentagem do peixe dentro de cada uma das zonas económicas exclusivas, mecanismo já usado entre a União Europeia e a Noruega. Bruxelas, pelo contrário, recusa a proposta e resiste quer no que diz respeito às “zonas anexas”, quer no que diz respeito às negociações anuais, sob pretexto de que tal não dá garantias de segurança às comunidades costeiras europeias. Finalmente, Londres propõe um período de transição de três anos para concretizar a mudança, enquanto Bruxelas quer dez anos.

Quanto à concorrência, existe desde já no acordo uma cláusula de não-regressão que garante que nenhuma das partes poderá desrespeitar um mínimo denominador comum de padrões depois da saída britânica. Mas se o Reino Unido tem acesso ao mercado interno, a União Europeia quer garantir que não há de futuro distorção da concorrência entre empresas britânicas e europeias; que não há alterações substantivas de padrões em matéria ambiental, de mercado de trabalho ou de ajudas de Estado – isto é, que não há concorrência desleal. E quer poder rever, periodicamente, o denominador mínimo de padrões protegido pela cláusula de não-regressão e, em última instância, aplicar tarifas. Ora, o Reino Unido quer assegurar, por outro lado, que essas tarifas apenas se aplicarão nos sectores em que se verifiquem divergências regulatórias e não, transversalmente, em todos os sectores. Estas são as duas questões fundamentais, porque se sobre estas houver acordo, facilmente se encontrará solução para o mecanismo de resolução de diferendos.

Tudo isto são tecnicalidades, mas que têm um enorme impacto económico e profundas consequências políticas. E, mais do que isso, que assentam sobre interpretações diferentes sobre o significado do acordo. Para a União Europeia é uma questão, essencialmente, económica e o que está em jogo é um princípio transaccional. Para o Reino Unido é uma questão, essencialmente, política, e o que está em jogo é muito mais do que transaccional – é o princípio da soberania nacional. E é por isso que do lado europeu a racionalidade é sempre mais fácil. E do lado britânico a irracionalidade é, por vezes, mais necessária. Mas, aqui chegados, o quer é preciso lembrar é que, se não houver acordo, todos perdem. E não é pouco.

Boris Johnson disse um dia, a propósito do “Brexit”, que o Reino haveria de voltar a ter o seu bolo e a comê-lo. O problema é que os europeus também querem a sua parte do bolo. A quinze dias da saída do Reino Unido da União Europeia, talvez fosse inteligente perceberem que o bolo tem que chegar para os dois – embora um acabe por ficar com a fatia maior.

 

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