Um texto elucidativo sobre as
arremetidas e intransigências de uma união esfrangalhada. Por NUNO SEVERIANO TEIXEIRA, Professor
catedrático da Universidade Nova de Lisboa; director do Instituto Português de
Relações Internacionais.
Prometem continuar, as arremetidas. E as
intransigências, de parte a parte.
OPINIÃO
Acordo ou não acordo, eis a questão?
Três questões essenciais separam UE e
Reino Unido no “Brexit”: as pescas, a concorrência e o mecanismo de resolução
de diferendos.
NUNO SEVERIANO
TEIXEIRA
PÚBLICO, 16 de
Dezembro de 2020
Parece uma história interminável. Depois de nove meses de negociações, vários
ultimatos, vários prazos esgotados e outros tantos estendidos, as negociações continuam. O
“Brexit” é uma espécie de combate de wrestling. Com movimentos espectaculares e
golpes violentos, mas cuidadosamente encenados e, obviamente, falsos. E é por isso que ambos os combatentes podem exibir
a sua força, podem até cantar vitória, mas sem que ninguém se magoe. A
estratégia negocial é ameaçar com a ruptura e credibilizar a ameaça, isto é,
fazer crer à outra parte que se está preparado para romper e para pagar o preço
da ruptura. Mais, que se está mais bem
preparado do que o outro para superar os custos da ruptura. Mas, em
boa verdade, ninguém está interessado nela. Porque
ambos ficariam a perder. Talvez mais o Reino Unido, em que 46% das suas
exportações vão para o mercado europeu, enquanto apenas 18% das exportações da
União Europeia vão para o mercado britânico. Mas uma coisa é certa: o dano era grande
para ambas as partes. E é por isso que, apesar das ameaças, ninguém quer romper
e as negociações continuam.
Mas, afinal, o que é que está em causa? O que está em causa é um acordo
comercial entre o Reino Unido e a União Europeia que regule as relações futuras
depois da saída britânica. E vale a pena dizer que há acordo sobre 90% do texto
do Tratado. O que falta, então, acordar? Três
questões essenciais: as pescas, a concorrência e o mecanismo de resolução de
diferendos.
Quanto às pescas, o Reino Unido deixará a política comum de pescas
e retomará a soberania na sua zona económica exclusiva. A questão
será, então, a do acesso das frotas europeias às águas britânicas. Londres quer uma negociação anual das quotas pesqueiras
permitidas às frotas europeias nas suas águas com base nas chamadas “zonas
anexas” – isto é, a divisão seria calculada com base na percentagem do
peixe dentro de cada uma das zonas económicas exclusivas, mecanismo já usado
entre a União Europeia e a Noruega. Bruxelas, pelo
contrário, recusa a proposta e resiste quer no que diz respeito às “zonas
anexas”, quer no que diz respeito às negociações anuais, sob pretexto de que
tal não dá garantias de segurança às comunidades costeiras europeias.
Finalmente, Londres propõe um período de transição de três anos
para concretizar a mudança, enquanto Bruxelas quer dez anos.
Quanto à concorrência, existe desde já no acordo uma cláusula
de não-regressão que garante que nenhuma das partes poderá
desrespeitar um mínimo denominador comum de padrões depois da saída britânica. Mas se o Reino
Unido tem acesso ao mercado interno, a União Europeia quer
garantir que não há de futuro distorção da concorrência entre empresas
britânicas e europeias; que não há alterações substantivas de padrões em
matéria ambiental, de mercado de trabalho ou de ajudas de Estado – isto é, que
não há concorrência desleal. E quer
poder rever, periodicamente, o denominador mínimo de padrões
protegido pela cláusula de não-regressão e, em última instância, aplicar
tarifas. Ora, o Reino Unido quer assegurar, por outro lado, que essas tarifas
apenas se aplicarão nos sectores em que se verifiquem divergências regulatórias
e não, transversalmente, em todos os sectores. Estas são as duas
questões fundamentais, porque se
sobre estas houver acordo, facilmente se encontrará solução para o mecanismo de
resolução de diferendos.
Tudo isto são tecnicalidades, mas que
têm um enorme impacto económico e profundas consequências políticas. E,
mais do que isso, que assentam sobre interpretações diferentes sobre o
significado do acordo. Para a
União Europeia é uma questão, essencialmente, económica e o que está em jogo é
um princípio transaccional. Para
o Reino Unido é uma questão, essencialmente, política, e o que está em jogo é muito
mais do que transaccional – é o princípio
da soberania nacional. E
é por isso que do lado europeu a racionalidade é sempre mais fácil. E do lado
britânico a irracionalidade é, por vezes, mais necessária. Mas, aqui chegados,
o quer é preciso lembrar é que, se não houver acordo, todos perdem. E não é
pouco.
Boris Johnson disse um
dia, a propósito do “Brexit”, que o Reino haveria de voltar a ter o seu bolo e
a comê-lo. O problema é que os
europeus também querem a sua parte do bolo. A quinze dias da
saída do Reino Unido da União Europeia, talvez fosse inteligente perceberem que
o bolo tem que chegar para os dois – embora um acabe por ficar com a fatia
maior.
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