terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Ainda a invasão


do Capitólio, desta vez na opinião ponderada de Teresa de Sousa, que os seus comentadores destacam. Ainda ontem, no canal História, ouvi que às tropas de Hitler eram oferecidas drogas estimulantes do sistema nervoso – anfetaminas - para realizarem os propósitos de destruição de que eram incumbidos – e isto, sim, parece um verdadeiro crime em vários níveis. O assalto ao Capitólio inscreve-se na política de balbúrdia actual que a nossa democracia recente também estimula, nas manifestações grevistas e quejandas, para efeitos reivindicativos. O assalto ao Capitólio foi bárbaro, naturalmente, mas enquadra-se num processo de algazarra reivindicativa, indiferente à destruição, e que nada tem a ver com os crimes nazis.

OPINIÃO

Lemos muitos livros, mas aprendemos pouco

Por trás do assalto ao Capitólio está a crescente radicalização da vida política, que esvazia o centro e alimenta os extremos, que se instalou nos EUA e na Europa.

TERESA DE SOUSA

PÚBLICO, 10 DE JANEIRO DE 2021

1.Foi provavelmente com o coração partido e uma enorme angústia que a maioria de nós ficou presa ao ecrã da televisão, diante das imagens que nos chegavam de Washington DC. Mais uma vez, a imaginação mais fértil sobre até onde iria Donald Trump para rejeitar os resultados eleitorais de Novembro era largamente ultrapassada pela realidade. Na quarta-feira passada, finalmente, aquilo que ele representa ficou visível para lá de qualquer dúvida ou qualquer explicação. Passámos os últimos anos a ler livros sobre os riscos que as democracias liberais enfrentam, sobre como “as democracias morrem”. Quase sempre por dentro e lentamente. Não estávamos preparados para as imagens que nos chegaram do edifício que simboliza aquela que sempre nos habituámos a olhar como a maior, a mais antiga e a mais sólida democracia do mundo. A “cidade no alto da colina” nascida para iluminar a humanidade através do exemplo. Assente numa Constituição sabiamente escrita pelos pais fundadores há quase 250 anos e em instituições sólidas e perenes, através das quais o poder é exercido e controlado.

Primeiro, quando Trump foi eleito, em Novembro de 2016, quisemos acreditar que o hábito faria o monge. Depois, que as instituições e as elites limitariam os seus excessos. Ainda chegámos a admitir que o seu mandato seria muito mais destrutivo para o mundo do que para a democracia americana. Rimo-nos dos seus dislates, da sua ignorância canhestra e ridícula, da sua corte familiar, dos seus negócios obscuros, dos seus apoiantes rústicos, provincianos, pouco educados, violentos. Depois, tomámos plena consciência do estado de total rendição do Partido Republicano perante o homem que lhes devolveu a Casa Branca, cada dia mais longe do velho conservadorismo liberal que o caracterizou durante décadas. E, no entanto, este novo partido não deveria ter sido uma surpresa.

Multidão invadiu símbolo da democracia norte-americana. Sem máscara, armados e incentivados por Donald Trump, os manifestantes furaram barreira policial e pedem recontagem dos votos. Quatro pessoas morreram.

O Tea Party já era maioritário quando John McCain foi escolhido para enfrentar Obama em 2008 – vimos Sarah Palin como uma piada, que não era. Esquecemo-nos de que Mitch McConnell, que acaba de declarar que nunca mais tenciona falar com Trump, liderou os republicanos no Senado durante o primeiro mandato de Obama com um único objectivo publicamente assumido: fazer dele um Presidente de um só mandato. O líder do Senado começou a arrepender-se do seu apoio incondicional a Trump apenas quando percebeu que não havia nada nem ninguém que pudesse travar a tomada de posse de Biden. Ou melhor, quando verificou que a independência dos tribunais continuava a funcionar e que a maioria dos responsáveis estaduais pelo processo eleitoral – democratas ou republicanos – continuava a respeitar a vontade popular expressa nas urnas. Demarcou-se na 23.ª hora. Ele e o seu partido têm agora uma oportunidade única, ainda que breve, para rejeitar a tentativa de “golpe” contra a democracia que Trump desencadeou, obrigando-o, de uma maneira ou de outra, a abandonar o cargo. Imediatamente.

2. Na sexta-feira, uma sondagem da YouGov mostrava que, apesar de uma maioria ampla de americanos considerar o assalto ao Capitólio como um ataque à democracia, uma maioria pequena de republicanos considerava-o justificado. É a partir desta realidade que a democracia americana tem de se reconstruir. O primeiro passo está dado. Elegeu um novo Presidente que é até à medula dos ossos um moderado e um centrista e que tem provado todos os dias que governará o país a partir do centro, tentando incluir e não estigmatizar. Escolheu gente experiente, competente e moderada para integrar a sua equipa. Mostrou que compreende o seu tempo. Na economia, nas alterações climáticas, na abertura ao mundo, nos direitos humanos, nas alianças internacionais.

Na quarta-feira, perante a derradeira tentativa de Trump para impedir pela violência que o Congresso ratificasse a sua eleição, Biden falou ao país para desafiar o ainda Presidente a fazer o que devia ser feito: ir à televisão desautorizar a turba que tomou de assalto o Capitólio, dando-lhe uma derradeira oportunidade de se demarcar. Como resume a Economist, “a invasão do Capitólio e a vitória dos democratas na Geórgia mudaram o curso da presidência de Biden”. Para melhor. Sobretudo, se uma maioria de eleitos republicanos quiser aprender a lição.

3. O politólogo holandês Cas Mudde, que se dedica ao estudo da extrema-direita, lembrava no Guardian que a doença das democracias liberais não é um exclusivo americano, nem sequer são totalmente inéditas na Europa imagens análogas às do Capitólio. Em 2006, a extrema-direita húngara atacou a sede da televisão pública e, nesse mesmo ano, cercou durante dias o Parlamento de Budapeste. Quatro anos depois, Orbán chegava ao poder. Em Agosto passado, uma manifestação violenta contra o confinamento, empunhando bandeiras da extrema-direita, tentou invadir o Bundestag, em Berlim. O movimento dos “gilets jaunes manteve as ruas de Paris reféns das suas manifestações, algumas das quais se entregaram à destruição dos símbolos da República.

Mudde lembra, aliás, que os movimentos populistas e extremistas começaram bem mais cedo na Europa. Esta vaga de extremismo que atingiu as democracias liberais mais desenvolvidas é muitas vezes explicada pelo descontentamento de parte das classes médias menos educadas e mais afectadas nos seus empregos, no seu estatuto social e nas suas perspectivas de futuro, pelos efeitos negativos da globalização. Tomam facilmente como alvo as elites políticas, intelectuais, económicas, incluindo os partidos que pensam que defendem os seus privilégios, acusando-os de ignorarem os problemas das pessoas comuns. Há sempre um demagogo pronto a encabeçá-las.

4. Mas a revolta contra as elites não chega para explicar esta ameaça crescente às democracias. Nem sequer as redes sociais explicam totalmente a desinformação, o incentivo ao ódio e a fácil mobilização dos descontentes. Isso seria “desculpar” os partidos moderados, sejam eles, como escrevia ontem António Barreto, socialistas, sociais-democratas ou democratas-cristãos. Por trás do assalto ao Capitólio e das manifestações de raiva mais ou menos violentas está a crescente radicalização da vida política que se instalou nos EUA e na Europa, que corta as pontes entre adversários políticos, diabolizando-os e reduzindo-os a chavões ideológicos requentados, esvaziando o centro sem o qual as democracias não sobrevivem. E, sobretudo – como é o caso evidente da América, mas também tem escola na Europa –, o facto de a direita democrática revelar alguma dificuldade em estabelecer uma demarcação intransponível dos partidos populistas e de extrema-direita. O “trumpismo” teve mais adeptos na Europa do que se possa pensar e não apenas dos Orbán, dos Salvini ou das Le Pen. Até há bem pouco tempo, a tentação de “salamizar” as políticas de Trump em boas, más e péssimas foi uma tese alimentada por muito boa gente. Tal como a tentativa de o desculpabilizar pela radicalização dos democratas, incluindo aqueles que de radicais não tinham nada, como Obama (a não ser que a cor da pele seja vista como uma forma de radicalismo).

Do lado do centro-esquerda e da esquerda democrática, o problema é outro: cai demasiadas vezes na tentação de se fechar na repetição abstracta de princípios e de valores muito generosos, ignorando a realidade e, portanto, abdicando da capacidade de a transformar e alienando aqueles que convivem diariamente com ela.

Esta radicalização na linguagem e no exercício político quotidiano, que esvazia o centro e alimenta os extremos, apodera-se das democracias de forma quase invisível, até chegar ao ponto de não retorno. Foi o que aconteceu na América. É o que pode acontecer nas democracias europeias. Portugal não é excepção. Com a culpa repartida pelas forças políticas moderadas, incapazes de resistir à radicalização do discurso, pela vertigem da comunicação social em busca de audiências e de “casos”, tornando qualquer compromisso uma possibilidade cada vez mais remota. Num país com uma história democrática mais recente, com o domínio quase absoluto das televisões e das redes sociais, onde tratar de “casos” é muito mais fácil do que tratar de políticas, o meu espanto – e o meu medo – é que o Chega de Ventura só tenha 10% nas intenções de votos.

Definitivamente, ainda não lemos os livros suficientes.

tp.ocilbup@asuos.ed.aseret

TÓPICOS

OPINIÃO  DEMOCRACIA  AMÉRICA  EUROPA  DONALD TRUMP  EXTREMA-DIREITA  PARTIDO REPUBLICANO

COMENTÁRIOS:

Felismina Gavião INFLUENTE: A autora diz que na América se chegou ao ponto de não retorno. Mas o que está a suceder na América é justamente o retorno à democracia. Anda distraída. 10.01.2021     orion EXPERIENTE: Pouca atenção dá à condição concreta da vida das pessoas, no caso particular dos EUA .E os sucessivos relatórios de Piketty et al. têm assinalado que, sendo este país dos mais ricos, as desigualdades nos rendimentos são as mais marcantes, de tal forma que 1% dos adultos mais privilegiados em 2014 arrecadaram 20,2% do total, quando 50% dessa população de adultos, dos mais desfavorecidos, quedou-se em 12,5%. Teresa de Sousa, não esqueçamos, é economista e, com todo o respeito, enche a sua crónica de argumentos político-ideológicos, esquecendo a base da vida: as condições materiais quotidianas das pessoas e as desigualdades observadas. No resto, estamos de acordo: os EUA estão envolvidos numa bolha de luta política. Biden, como disse ontem no espaço de Barreto, não vai chegar para isto.         Pedro de Souza EXPERIENTE: Os sistemas políticos estão a mundializar-se, a convergir como a economia e a cultura popular; essa a marca do nosso tempo. Os regimes democráticos tendem para o populismo e autoritarismo, enquanto os ditatoriais, vão, mal ou bem, tendo de prestar mais atenção às aspirações populares. Obviamente cada país parte de uma herança, e a dos EUA é pesada: a escravatura no seu solo, e o racismo, de que é um corolário. O mundo dos negócios não ajudou, ao transferir boa arte da indústria para o Oriente. As pessoas se preocupam mais com as origens e identidade quando não têm razões para acreditar no futuro.         fernando jose silva EXPERIENTE: Lemos pouco, muito pouco, tão pouco que nos transformamos numa colónia americana, nós e a Europa, que nunca mais conseguiu livrar-se da derrota da última guerra. Essas iluminárias da colina democrática que é o sol do mundo, como outro sol de que já ouvimos falar, é um mito alicerçado sobre mortes e guerras e crimes no médio oriente, e pelo mundo, um tira e põe policial do poder de interesses próprios ,que resultou no que é hoje, perante uma Europa sem poder e sem opinião. O extermínio  dos índios ainda está na mente duma boa parte da América e esse é ainda um sonho americano. Deus nos livre desta América ou da sua sociedade atrasada e decrépita onde deus é o dinheiro !          Joao MODERADOR: Ah Ah tem razão, eu já nem consigo reagir a essas parangonas que apontam como “farol” os que exterminam, conquistam, matam, roubam, mentem desde o início os nativos até aos cristãos e muçulmanos no Médio Oriente, passando pelos filipinos, cubanos, asiáticos, russos, e por aí fora, todos os que resistem a ceder os seus recursos.          Mathias Mecking Weigl INICIANTE: A questão que se põe a esta análise é a seguinte: mas qual "Centro", qual "moderação". O Centro, em particular na América, nada mais é que a defesa sensaborona dos interesses das elites, que os trumpismos e derivados acabam por fazer de uma forma mais "espectacular". Enquanto a democracia estiver longe dos cidadãos, enquanto estiver sujeita aos ditames do poder económico, podemos no máximo sonhar com um ciclo de extremismos e de centrismos que nada resolvem. O que importa é tornar as democracias efectivas, seja isto na garantia dos direitos democráticos dos cidadãos, incluindo a participação destes na política, seja no rearranjo da sociedade, socialmente e economicamente, de forma a que os cidadãos livres possam, efectivamente, fazer alguma coisa com a sua liberdade.          correiaramos INICIANTE: De salientar este trecho: "Com a culpa repartida pelas forças políticas moderadas, incapazes de resistir à radicalização do discurso, pela vertigem da comunicação social em busca de audiências e de “casos”, tornando qualquer compromisso uma possibilidade cada vez mais remota." Para além disso, será o centro político, e a classe média que governa o país, a fazer aquilo que é necessário para combater a extrema-direita: reduzir as desigualdades, promover o mérito, combater o enriquecimento ilícito/corrupção e dar prioridade às questões sociais e económicas em detrimento das questões fracturantes. Mathias Mecking Weigl INICIANTE: Mas o perigo é que precisamente as classes médias foram sempre a base dos regimes fascistas e afins. O ressentimento contra os ricos aliado ao medo e desprezo pelos pobres sempre foi um terreno fértil para estas ideologias.         JPR_Kapa EXPERIENTE: Concordo com quase tudo menos com facto de não referir que o "centro" político, que a globalização marcada pela ideologia neoliberal, capturou, tornando-o amorfo e ineficaz perante o agravamento desmedido das desigualdades, com o rendimento líquido do crescimento, onde e quando houve, a ir 90% para os 10% mais ricos, aumentando a precaridade e reduzindo direitos a quem trabalha, fazendo o marketing do mérito e da ganância e a promoção do tilltertainment (a teta do entretenimento, como forma de alienação ou lavagem ao cérebro), tornou-nos simultaneamente mais indignados e iletrados, presa fácil do consumismo e do novo fenómeno das redes sociais - só um centro que reestabeleça diferenças democráticas e possa restaurar essa confiança, como cá, pode afastar-nos dessa praga, sem radicalismos.         Mathias Mecking Weigl INICIANTE: Ora nem mais, o centro não existe.        Rui Dinis INICIANTE: Excelente artigo e uma análise muito objectiva da política actual. 10.01.2021

 

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