do Capitólio, desta vez na opinião
ponderada de Teresa de Sousa, que os seus
comentadores destacam. Ainda ontem, no canal História, ouvi que às tropas de
Hitler eram oferecidas drogas estimulantes do sistema nervoso – anfetaminas -
para realizarem os propósitos de destruição de que eram incumbidos – e isto,
sim, parece um verdadeiro crime em vários níveis. O assalto ao Capitólio
inscreve-se na política de balbúrdia actual que a nossa democracia recente
também estimula, nas manifestações grevistas e quejandas, para efeitos
reivindicativos. O assalto ao Capitólio foi bárbaro, naturalmente, mas
enquadra-se num processo de algazarra reivindicativa, indiferente à destruição,
e que nada tem a ver com os crimes nazis.
OPINIÃO
Lemos muitos livros, mas aprendemos pouco
Por trás do assalto ao Capitólio está
a crescente radicalização da vida política, que esvazia o centro e alimenta os
extremos, que se instalou nos EUA e na Europa.
PÚBLICO, 10 DE
JANEIRO DE 2021
1.Foi
provavelmente com o coração partido e uma enorme angústia que a maioria de nós
ficou presa ao ecrã da televisão, diante das imagens que nos chegavam de
Washington DC. Mais uma vez, a imaginação mais fértil sobre até onde iria
Donald Trump para rejeitar os resultados eleitorais de Novembro era largamente
ultrapassada pela
realidade. Na quarta-feira passada, finalmente, aquilo que ele
representa ficou visível para lá de qualquer dúvida ou qualquer explicação.
Passámos os últimos anos a ler livros sobre os riscos que as democracias
liberais enfrentam, sobre como “as
democracias morrem”. Quase sempre por dentro e lentamente. Não
estávamos preparados para as imagens que nos chegaram do edifício que simboliza
aquela que sempre nos habituámos a olhar como a maior, a mais antiga e a mais
sólida democracia do mundo. A “cidade no alto da colina” nascida para iluminar
a humanidade através do exemplo. Assente numa Constituição sabiamente escrita
pelos pais fundadores há quase 250 anos e em instituições sólidas e perenes,
através das quais o poder é exercido e controlado.
Primeiro,
quando Trump foi eleito, em Novembro de 2016, quisemos acreditar que o hábito
faria o monge. Depois, que as instituições e as elites limitariam os seus
excessos. Ainda chegámos a admitir que o seu mandato seria muito mais
destrutivo para o mundo do que para a democracia americana. Rimo-nos dos seus
dislates, da sua ignorância canhestra e ridícula, da sua corte familiar, dos
seus negócios obscuros, dos seus apoiantes rústicos, provincianos, pouco
educados, violentos. Depois, tomámos plena consciência do estado de total
rendição do Partido Republicano perante o homem que lhes devolveu a Casa
Branca, cada dia mais longe do velho conservadorismo liberal que o caracterizou
durante décadas. E, no entanto, este novo partido não deveria ter sido uma
surpresa.
Multidão
invadiu símbolo da democracia norte-americana. Sem máscara, armados e
incentivados por Donald Trump, os manifestantes furaram barreira policial e
pedem recontagem dos votos. Quatro pessoas morreram.
O Tea Party
já era maioritário quando John McCain foi escolhido para enfrentar Obama em
2008 – vimos Sarah Palin como uma piada, que não era. Esquecemo-nos de que
Mitch McConnell, que acaba de declarar que nunca mais tenciona falar com Trump,
liderou os republicanos no Senado durante o primeiro mandato de Obama com um
único objectivo publicamente assumido: fazer dele um Presidente de um só
mandato. O líder do Senado começou a arrepender-se do seu apoio incondicional a
Trump apenas quando percebeu que não havia nada nem ninguém que pudesse travar
a tomada de posse de Biden. Ou melhor, quando verificou que a independência dos
tribunais continuava a funcionar e que a maioria dos responsáveis estaduais
pelo processo eleitoral – democratas ou republicanos – continuava a respeitar a
vontade popular expressa nas urnas. Demarcou-se na 23.ª hora. Ele e o seu
partido têm agora uma oportunidade única, ainda que breve, para rejeitar a
tentativa de “golpe” contra a democracia que Trump desencadeou, obrigando-o, de
uma maneira ou de outra, a abandonar o
cargo. Imediatamente.
2. Na
sexta-feira, uma sondagem da YouGov mostrava que, apesar de uma maioria ampla
de americanos considerar o assalto ao Capitólio como um ataque à democracia, uma
maioria pequena de republicanos considerava-o justificado. É a partir desta
realidade que a democracia americana tem de se reconstruir. O primeiro passo
está dado. Elegeu um novo
Presidente que é até à medula dos ossos um moderado e um centrista e
que tem provado todos os dias que governará o país a partir do centro, tentando
incluir e não estigmatizar. Escolheu gente experiente, competente e moderada
para integrar a sua equipa. Mostrou que compreende o seu tempo. Na economia,
nas alterações climáticas, na abertura ao mundo, nos direitos humanos, nas
alianças internacionais.
Na
quarta-feira, perante a derradeira tentativa de Trump para impedir pela
violência que o Congresso ratificasse a sua eleição, Biden falou ao país para
desafiar o ainda Presidente a fazer o que devia ser feito: ir à televisão desautorizar
a turba que
tomou de assalto o Capitólio, dando-lhe uma derradeira oportunidade
de se demarcar. Como resume a Economist, “a invasão do Capitólio e a vitória
dos democratas na Geórgia mudaram o curso da presidência de Biden”. Para
melhor. Sobretudo, se uma maioria de eleitos republicanos quiser aprender a
lição.
3. O
politólogo holandês Cas Mudde,
que se dedica ao estudo da extrema-direita, lembrava no Guardian que a doença das democracias liberais não é um
exclusivo americano, nem sequer são totalmente inéditas na Europa imagens
análogas às do Capitólio. Em 2006, a extrema-direita húngara atacou a sede da televisão pública e, nesse mesmo ano,
cercou durante dias o Parlamento de Budapeste. Quatro anos depois, Orbán chegava ao poder. Em Agosto passado, uma manifestação violenta contra
o confinamento, empunhando bandeiras da extrema-direita, tentou invadir o Bundestag, em Berlim. O movimento
dos “gilets jaunes” manteve
as ruas de Paris reféns das suas manifestações, algumas das quais se entregaram
à destruição dos símbolos da República.
Mudde lembra, aliás, que os
movimentos populistas e extremistas começaram bem mais cedo na Europa. Esta
vaga de extremismo que atingiu as democracias liberais mais desenvolvidas é
muitas vezes explicada pelo descontentamento de parte das classes médias menos
educadas e mais afectadas nos seus empregos, no seu estatuto social e nas suas
perspectivas de futuro, pelos efeitos negativos da globalização. Tomam facilmente como alvo as elites políticas,
intelectuais, económicas, incluindo os partidos que pensam que defendem os seus
privilégios, acusando-os de ignorarem os problemas das pessoas comuns. Há
sempre um demagogo pronto a encabeçá-las.
4. Mas
a revolta contra as elites não chega para explicar esta ameaça crescente às
democracias. Nem sequer as redes sociais explicam totalmente a desinformação, o
incentivo ao ódio e a fácil mobilização dos descontentes. Isso seria
“desculpar” os partidos moderados, sejam eles, como escrevia ontem António Barreto,
socialistas, sociais-democratas ou democratas-cristãos. Por trás do assalto
ao Capitólio e das manifestações de raiva mais ou menos violentas está a
crescente radicalização da vida política que se instalou nos EUA e na Europa,
que corta as pontes entre adversários políticos, diabolizando-os e reduzindo-os
a chavões ideológicos requentados, esvaziando o centro sem o qual as
democracias não sobrevivem. E, sobretudo – como é o caso evidente da
América, mas também tem escola na Europa –, o facto de a direita democrática
revelar alguma dificuldade em estabelecer uma demarcação intransponível dos
partidos populistas e de extrema-direita. O “trumpismo” teve mais
adeptos na Europa do que se possa pensar e não apenas dos Orbán, dos Salvini ou
das Le Pen. Até há bem pouco tempo, a tentação de “salamizar” as políticas de
Trump em boas, más e péssimas foi uma tese alimentada por muito boa gente. Tal
como a tentativa de o desculpabilizar pela radicalização dos democratas,
incluindo aqueles que de radicais não tinham nada, como Obama (a não ser que a
cor da pele seja vista como uma forma de radicalismo).
Do
lado do centro-esquerda e da esquerda democrática, o problema é outro: cai
demasiadas vezes na tentação de se fechar na repetição abstracta de princípios
e de valores muito generosos, ignorando a realidade e, portanto, abdicando da
capacidade de a transformar e alienando aqueles que convivem diariamente com
ela.
Esta
radicalização na linguagem e no exercício político quotidiano, que esvazia o
centro e alimenta os extremos, apodera-se das democracias de forma quase
invisível, até chegar ao ponto de não retorno. Foi o que aconteceu na América. É o que pode acontecer nas democracias europeias.
Portugal não é excepção. Com a culpa repartida pelas forças políticas
moderadas, incapazes de resistir à radicalização do discurso, pela vertigem da
comunicação social em busca de audiências e de “casos”, tornando qualquer compromisso
uma possibilidade cada vez mais remota. Num país com uma história
democrática mais recente, com o domínio quase absoluto das televisões e das
redes sociais, onde tratar de “casos” é muito mais fácil do que tratar de
políticas, o meu espanto – e o meu medo – é que o Chega de Ventura só tenha 10%
nas intenções de votos.
Definitivamente,
ainda não lemos os livros suficientes.
TÓPICOS
OPINIÃO
DEMOCRACIA AMÉRICA EUROPA DONALD TRUMP EXTREMA-DIREITA PARTIDO REPUBLICANO
COMENTÁRIOS:
Felismina Gavião INFLUENTE: A autora diz que
na América se chegou ao ponto de não retorno. Mas o que está a suceder na
América é justamente o retorno à democracia. Anda distraída. 10.01.2021 orion EXPERIENTE: Pouca atenção dá
à condição concreta da vida das pessoas, no caso particular dos EUA .E os
sucessivos relatórios de Piketty et al. têm assinalado que, sendo este país dos
mais ricos, as desigualdades nos rendimentos são as mais marcantes, de tal
forma que 1% dos adultos mais privilegiados em 2014 arrecadaram 20,2% do total,
quando 50% dessa população de adultos, dos mais desfavorecidos, quedou-se em
12,5%. Teresa de Sousa, não esqueçamos, é economista e, com todo o respeito,
enche a sua crónica de argumentos político-ideológicos, esquecendo a base da
vida: as condições materiais quotidianas das pessoas e as desigualdades
observadas. No resto, estamos de acordo: os EUA estão envolvidos numa bolha de
luta política. Biden, como disse ontem no espaço de Barreto, não vai chegar
para isto. Pedro de Souza EXPERIENTE: Os sistemas
políticos estão a mundializar-se, a convergir como a economia e a cultura
popular; essa a marca do nosso tempo. Os regimes democráticos tendem para o
populismo e autoritarismo, enquanto os ditatoriais, vão, mal ou bem, tendo de
prestar mais atenção às aspirações populares. Obviamente cada país parte de uma
herança, e a dos EUA é pesada: a escravatura no seu solo, e o racismo, de que é
um corolário. O mundo dos negócios não ajudou, ao transferir boa arte da
indústria para o Oriente. As pessoas se preocupam mais com as origens e
identidade quando não têm razões para acreditar no futuro. fernando jose silva EXPERIENTE: Lemos pouco,
muito pouco, tão pouco que nos transformamos numa colónia americana, nós e a
Europa, que nunca mais conseguiu livrar-se da derrota da última guerra. Essas
iluminárias da colina democrática que é o sol do mundo, como outro sol de que
já ouvimos falar, é um mito alicerçado sobre mortes e guerras e crimes no médio
oriente, e pelo mundo, um tira e põe policial do poder de interesses próprios
,que resultou no que é hoje, perante uma Europa sem poder e sem opinião. O
extermínio dos índios ainda está na
mente duma boa parte da América e esse é ainda um sonho americano. Deus nos
livre desta América ou da sua sociedade atrasada e decrépita onde deus é o
dinheiro ! Joao MODERADOR: Ah Ah tem razão,
eu já nem consigo reagir a essas parangonas que apontam como “farol” os que
exterminam, conquistam, matam, roubam, mentem desde o início os nativos até aos
cristãos e muçulmanos no Médio Oriente, passando pelos filipinos, cubanos,
asiáticos, russos, e por aí fora, todos os que resistem a ceder os seus
recursos. Mathias Mecking Weigl INICIANTE: A questão que se
põe a esta análise é a seguinte: mas qual "Centro", qual
"moderação". O Centro, em particular na América, nada mais é que a
defesa sensaborona dos interesses das elites, que os trumpismos e derivados
acabam por fazer de uma forma mais "espectacular". Enquanto a
democracia estiver longe dos cidadãos, enquanto estiver sujeita aos ditames do
poder económico, podemos no máximo sonhar com um ciclo de extremismos e de
centrismos que nada resolvem. O que importa é tornar as democracias efectivas, seja
isto na garantia dos direitos democráticos dos cidadãos, incluindo a
participação destes na política, seja no rearranjo da sociedade, socialmente e
economicamente, de forma a que os cidadãos livres possam, efectivamente, fazer
alguma coisa com a sua liberdade. correiaramos INICIANTE: De salientar este
trecho: "Com a culpa repartida pelas forças políticas moderadas, incapazes
de resistir à radicalização do discurso, pela vertigem da comunicação social em
busca de audiências e de “casos”, tornando qualquer compromisso uma possibilidade
cada vez mais remota." Para além disso, será o centro político, e a classe
média que governa o país, a fazer aquilo que é necessário para combater a
extrema-direita: reduzir as desigualdades, promover o mérito, combater o
enriquecimento ilícito/corrupção e dar prioridade às questões sociais e
económicas em detrimento das questões fracturantes. Mathias Mecking Weigl INICIANTE: Mas o perigo é
que precisamente as classes médias foram sempre a base dos regimes fascistas e
afins. O ressentimento contra os ricos aliado ao medo e desprezo pelos pobres
sempre foi um terreno fértil para estas ideologias. JPR_Kapa EXPERIENTE: Concordo com
quase tudo menos com facto de não referir que o "centro" político,
que a globalização marcada pela ideologia neoliberal, capturou, tornando-o
amorfo e ineficaz perante o agravamento desmedido das desigualdades, com o
rendimento líquido do crescimento, onde e quando houve, a ir 90% para os 10%
mais ricos, aumentando a precaridade e reduzindo direitos a quem trabalha,
fazendo o marketing do mérito e da ganância e a promoção do tilltertainment (a
teta do entretenimento, como forma de alienação ou lavagem ao cérebro), tornou-nos
simultaneamente mais indignados e iletrados, presa fácil do consumismo e do
novo fenómeno das redes sociais - só um centro que reestabeleça diferenças
democráticas e possa restaurar essa confiança, como cá, pode afastar-nos dessa
praga, sem radicalismos.
Mathias Mecking Weigl INICIANTE: Ora nem mais, o
centro não existe. Rui Dinis INICIANTE: Excelente artigo
e uma análise muito objectiva da política actual. 10.01.2021
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