Mais uma análise de confronto de
devoções – a da religião católica, mais antiga e amordaçante, na sua auto-responsabilização
ditada por dogmatismos - didácticos, é certo, e bem-intencionados - para purificação
íntima. A devoção tribalista da nova cartilha dogmática, fundada numa aparência
de bondade pela libertação do preconceito sobre as novas temáticas do
politicamente correcto - com condenação do preconceito - a padronizar o prefixo
anti. João Miguel Tavares os equipara.
OPINIÃO
Pequeno ensaio sobre o tribalismo – parte 2
Talvez por não frequentarem a missa ao
domingo, estes autoproclamados progressistas não têm a menor noção de quão
próximos estão dos beatos mais devotos.
PÚBLICO, 31
de Dezembro de 2020
No
início da missa, há uma fórmula conhecida como acto penitencial, em que o
crente declara ter pecado “por pensamentos, palavras, actos e omissões”, por
sua “culpa”, sua “tão grande culpa”. Essa oração tem como objectivo a
purificação interior, permitindo ao católico participar condignamente na
eucaristia. O acto penitencial invoca, claro está, Deus, a Virgem Maria, os
anjos e os santos, mas se nós expurgarmos dele as entidades cristãs, aquilo
com que ficamos é a descrição perfeita da postura que hoje nos é exigida pelos
devotos da cultura woke, sejam eles anti-racistas, feministas, activistas queer ou qualquer outro sacerdote das
causas sagradas da contemporaneidade ilustrada.
Talvez por não frequentarem a missa
ao domingo, estes autoproclamados progressistas não têm a menor noção de quão próximos
estão dos beatos mais devotos. A
sua capacidade para encontrar um pecado em cada esquina; a vigilância sobre a
consciência e sobre a linguagem; a obsessão com as palavras; a intransigência
farisaica; o cultivo dos tabus; a postura dogmática; tudo isto é uma importação
de velhas estruturas religiosas e dos seus métodos de vigilância das almas,
agora ao serviço de novos deuses.
Eu,
homem, branco, ocidental, heterossexual, cisgénero, não racializado, peco
diariamente por pensamentos, por palavras, por actos e por omissões, devido a
uma miríade de causas, muitas das quais inconscientes: seja por não estar
suficientemente sensibilizado para a profundidade ontológica dos meus
preconceitos, seja por não vislumbrar diariamente o machismo escondido nos
livros, ou a homofobia oculta nas palavras, ou o racismo estrutural camuflado
nos interstícios da sociedade.
Já não chega esforçar-me para ser decente e tratar bem os outros – eu
tenho de reconhecer a inabalável indecência do sistema em que vivo e os privilégios
inerentes à minha existência. Tenho o dever de expurgar de mim o pecado
original.
Há
uma campanha que corre nas redes sociais em que figuras públicas declaram ser
“um racista em desconstrução” ou “um machista em desconstrução”. Essa campanha faz-se acompanhar de textos de
autocrítica que em nada diferem de uma ida ao confessionário. Ninguém imagina aquelas pessoas a exporem
os seus pecados numa igreja – mas vão fazê-lo para os murais do Facebook. Rui Unas, um dos desconstruídos, declarou a
esse propósito: “Há muito racismo não consciente e não voluntário
que precisa de ser alvo de reflexão.” Assumirmo-nos como pecadores
inconscientes e involuntários já vai além do próprio acto de contrição – é um
abastardamento psicanalítico e uma estrutura de pensamento do tipo
inquisitorial: confessa tudo, mesmo aquilo de que não sabe ter a culpa.
Este novo tipo de activismo é uma
forma de fundamentalismo, que alimenta o tribalismo dos nossos dias. Milhões de
indivíduos secularizados, mas evangelizados pelas novas causas justas, acabam a
adoptar a mentalidade do cruzado, mergulhando naquilo a que chamei a luxúria da virtude: a adesão
a uma concepção do mundo tão nobre e cheia de si que se torna profundamente
intolerante para com o pensamento divergente. Não há espaço para a troca livre de argumentos e
toda a palavra heterodoxa invade um território tabu, sacralizado e impermeável
ao debate de ideias.
Infelizmente, o excesso de pureza sempre foi um íman irresistível
para a falta de decoro. E daí o aparecimento de tantos discursos despudorados
na política contemporânea.
Toda a Justine tem o seu
Marquês de Sade.
COMENTÁRIOS
Carlos AF Costa INICIANTE: Tenho por principio ético não ofender ninguém. Muito
menos nestes espaços cobardes anónimos das redes sociais. Mas ainda há alguém
com sentimentos democráticos e dignidade humanista que ouça este senhor? Vivi
tempos da ditadura, vivi tempos da liberdade democrática, compreendi os
fenómenos sociológicos que originam os pensamentos e comportamentos
reaccionários e pidescos. Este senhor é anacrónico, é bafiento. 01.01.2021 Rebelde INFLUENTE: Nota-se que é uma pessoa de princípios anacrónicos e
bafientos. Rui Leite de Castro INICIANTE: Explique lá porquê. 02.01.2021 Carlos AF Costa INICIANTE: Trata-se de um ignorante muito pretensioso. Precisamos
de pessoas cultas que saibam pensar e reflectir nos problemas da nossa
sociedade. Nem todos poderão ser como o Eduardo Lourenço, mas na verdade temos
muitos e bons pensadores. Os jornais não solicitam os seus trabalhos, porque
acham que os leitores são todos ignorante e não sabem ler, leia-se interpretar
textos com ideias. Jornalistas com pretensões intelectuais mas sem qualquer
pensamento próprio e interessante e que regurgitam banalidades reaccionárias
dispenso. Leio, entre outros, o António Guerreiro porque o seu pensamento é
sempre surpreendente, poupa-nos ás banalidades repetidas. 02.01.2021 GMA EXPERIENTE: Cito do texto o auto retrato perfeito do Sr. JMT, que
parece conhecer bem a técnica do raciocínio motivado. "Talvez por não
frequentarem a missa ao domingo, estes autoproclamados progressistas não têm a
menor noção de quão próximos estão dos beatos mais devotos. A sua capacidade
para encontrar um pecado em cada esquina; a vigilância sobre a consciência e
sobre a linguagem; a obsessão com as palavras; a intransigência farisaica; o
cultivo dos tabus; a postura dogmática; tudo isto é uma importação de velhas
estruturas religiosas e dos seus métodos de vigilância das almas, agora ao
serviço de novos deuses." 01.01.2021
DNG. MODERADOR: Devo realçar a qualidade da crónica, contudo não
subscrevo a tolerância circular pedagógica. Tentar persuadir Ventura com
argumentos é um acto em vão, de resto, por que razão um liberal se há-de
inflamar com quem sente repúdio pelas ideias do Chega sem que esse repúdio se
enquadre na catequese do politicamente correcto? Catalogar movimentos de
oposição ao Chega de tribalismo com tiques estalinistas é um acto falhado em
matéria de interpretação sociológica. Muitas das conquistas que regulam a nossa
vida social foram aquisições penosas. Afrontar com veemência quem as coloca em
causa é perfeitamente legítimo. Ou já é proibido se indignar à luz da
tolerância liberal de JMT? 01.01.2021 Por bom caminho e segue EXPERIENTE: Excelente maneira de acabar o ano. Comece o próximo
assim, Tavares. É preciso acabar com todo o tipo de fundamentalismo. Luis Rocha INICIANTE: Muito bem, concordo. Só acrescento uma coisa como
Português de dupla cidadania nos EUA. É interessante que em Portugal as pessoas
se vejam como "brancos, ocidentais." Nem é preciso ler Hitler para
perceber a nossa dimensão Hispânica, basta sair para o norte da Europa (que nos
vê PIGS) e para os EUA. Aliás, como Vitorino Nemésio se definiu e a minha
experiencia confirma: "Eu sou, ao mesmo tempo e acima de tudo, português,
açoriano, europeu, americano e brasileiro e, por tudo isto, romântico,
hispânico e ocidental e gostava de ser homem de todo o mundo." Por estas e
por outras, fico sempre decepcionado quando o pessoal importa o wokenismo
americano sem pensamento crítico--e sem beatismo. Existe realmente
desconstrução que todos temos que fazer, mas tem que partir do nosso contexto.
JPR_KapaEXPERIENTE: Reli este texto e continuo mais convencido que, apesar
dos argumentos inteligentes que aqui expressa, JMT não o faz por convicção mas
por gozo intelectual - está no seu direito, mas eu podia usar o mesmo registo
para mostrar as virtudes do socialismo, do liberalismo ou de outra coisa
qualquer. No fundo, é demasiado relativista e parcial, além de excessivo: ao
dar ao alvo tal abrangência, de facto, está a dizer que esboçar p. e.x., a
condenação do racismo é tribalismo. Responde com o excesso e no mesmo plano,
aos que radicalizam estas manifestações e que sempre existiram. Além disso JMT
tem dado vários exemplos do seu tribalismo, no seu bullying mediático, o que
não deixa de ser curioso. Ou seja, "tribalismo" existe há muito
tempo, não é de agora, e não veste só estas roupagens. Luis_Morgado EXPERIENTE: O tribalismo é um dos grandes problemas no debate
público actual. O conforto e a segurança que se procuram quando se adere a uma
identidade e se é aceite num grupo conduzem quase sempre à necessidade de
radicalizar as discussões para que não se seja visto como um traidor ao clube.
Os grupos definem-se por oposição a outros grupos e o diálogo deixa de ser uma
forma de construção de pontes e de novas ideias, mas antes um combate onde se
vence ou se é derrotado. Os factos e a realidade passam a ser vistos pelo filtro
da doutrina e do dogma. O preconceito é o ponto de partida. Concordo com o João
Miguel Tavares. Desejo a todos um bom ano e um debate saudável e não
tribalizado.
cedcerqueira INICIANTE: E no entanto, o racismo, o machismo e a homofobia
continuam. Tudo culpa, claro, da woke culture, que obriga os intolerantes a uma
maior intolerância ao combater essa intolerância... Eu, confesso, estava
convencido que o problema estava nos racistas, machistas e homofóbicos. Rebelde INFLUENTE: O problema está nos fundamentalismos que
acabamos a apoiar sem querer e sem nos apercebermos de que estamos a ser
manipulados. 01.01.2021 joaquim pocinho INICIANTE: Encostar os meninos incultos e radicais a sacristia,
que eles tanto odeiam, além de ser verdadeiro, dá um gozo enorme. Ainda para
mais quando esses meninos nem percebem o quão estão a ser gozados. Brilhante! Félix Carlos EXPERIENTE: Boa crónica de uma série que se espera descortique
ainda mais males lusitanos e por que não, mundiais. Eu, falso beato, anseio por
regressar à igreja e em comunidade, até lá e enquanto puder laboro a nível
familiar. Concordo que muita gesticulação político-social terá a ver com a
religiosidade ofuscada no nosso cérebro racional. Para terminar confesso (?)
que uso camisola interior o que segundo critérios actuais e factuais diz bem da
minha inata parolice. Bom Ano ou como profetiza o Bartoon quotidiano, “à cautela
nada”. A2 EXPERIENTE: 1) JMT não deveria presumir que é o
único português a conhecer as palavras da missa; vá ver os números de católicos
dos últimos censos. 2) Nesta pequena redacção, acaba por cair no relativismo
cultural de que a esquerda é por vezes acusada, mas numa versão amoral: para
JMT, racismo e anti-racismo, machismo e feminismo, injustiça e justiça,
equivalem-se, e se os primeiros se consideram a evolução natural, o progresso
da humanidade, então os seus opostos têm toda a legitimidade para existir, e
com a mesma preponderância; como se fosse inevitável o imobilismo, como se o
velho do Restelo é que fosse o maior português de todos os tempos. Ora isso é
simplesmente absurdo! jmtavares EXPERIENTE: O meu argumento não é esse. É o de que: 1)
exactamente porque o anti-racismo é superior ao racismo ele pode ser defendido
com argumentos e não com a criação de interditos temáticos; 2) o combate ao
anti-racismo deve ser um combate acerca de actos e gestos concretos, e não um
combate psicanalítico para extirpar restos de homem branco colonial que
alegadamente há dentro de cada um de nós. Se eu quiser fazer psicanálise, vou a
um consultório. Não a faço no espaço público. cedcerqueira INICIANTE: Sim, o argumento é esse e na sua essência está
correcto. O racismo e intolerância combatem-se com argumentos e não com
interditos. JMT não quer fazer psicanálise em público (está no seu direito),
mas como liberal não devia entender/aceitar que outros o façam? Entre o combate
ao politicamente correcto e o combate ao racismo e intolerância, por vezes, há
que escolher o alvo. Tiago INFLUENTE "Se
eu quiser fazer psicanálise, vou a um consultório. Não a faço no espaço
público." - João, eu até concordo que por vezes o activismo que refere
assume graus insuportáveis (ex: "tem de matar o homem branco",
"fetos são um punhado de células", "só os trans e afeminados é
que lutam pela igualdade de direitos"), mas o racismo, o machismo e a
homofobia não acontecem há séculos em espaço público e não são igualmente
insuportáveis para quem é vítima deles? Não está assim a dizer que o racismo,
machismo e homofobia devem ter liberdade total de expressão em espaço público,
mas a natural reacção deveria ser limitada a salas de terapia que o racista, o
machista e o homofoboo nem sequer entendem necessitar? Qual a lógica disso?
Liberal só para alguns? A meu ver, a 3ª lei de Newton explica melhor. cidadania 123 EXPERIENTE: Caro JMT, excelente análise. Faltou incluir na
descrição dos " pecadores" serem cristãos, omnívoros, casados e
fiéis, pai, policia, empresário , político ou banqueiro, e politicamente não da
esquerda radical (situação que o purgaria de qualquer pecado). Quando indicou
branco já não necessitaria de mencionar indivíduo não racializado pois como bem
sabe o racismo só existe nos brancos.... Novo Humbo EXPERIENTE: Tal e qual. Rui Fernandes INICIANTE: Obrigado mais uma vez por expressar os meus
pensamentos AAA_ INICIANTE: Lapidar!!! Parabéns, JMT! Mario Coimbra
EXPERIENTE: Excelente. Não podia concordar mais. 31.12.2020
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