terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O segundo


Mais uma análise de confronto de devoções – a da religião católica, mais antiga e amordaçante, na sua auto-responsabilização ditada por dogmatismos - didácticos, é certo, e bem-intencionados - para purificação íntima. A devoção tribalista da nova cartilha dogmática, fundada numa aparência de bondade pela libertação do preconceito sobre as novas temáticas do politicamente correcto - com condenação do preconceito - a padronizar o prefixo anti. João Miguel Tavares os equipara.

OPINIÃO

Pequeno ensaio sobre o tribalismo – parte 2

Talvez por não frequentarem a missa ao domingo, estes autoproclamados progressistas não têm a menor noção de quão próximos estão dos beatos mais devotos.

JOÃO MIGUEL TAVARES

PÚBLICO, 31 de Dezembro de 2020

No início da missa, há uma fórmula conhecida como acto penitencial, em que o crente declara ter pecado “por pensamentos, palavras, actos e omissões”, por sua “culpa”, sua “tão grande culpa”. Essa oração tem como objectivo a purificação interior, permitindo ao católico participar condignamente na eucaristia. O acto penitencial invoca, claro está, Deus, a Virgem Maria, os anjos e os santos, mas se nós expurgarmos dele as entidades cristãs, aquilo com que ficamos é a descrição perfeita da postura que hoje nos é exigida pelos devotos da cultura woke, sejam eles anti-racistas, feministas, activistas queer ou qualquer outro sacerdote das causas sagradas da contemporaneidade ilustrada.

Talvez por não frequentarem a missa ao domingo, estes autoproclamados progressistas não têm a menor noção de quão próximos estão dos beatos mais devotos. A sua capacidade para encontrar um pecado em cada esquina; a vigilância sobre a consciência e sobre a linguagem; a obsessão com as palavras; a intransigência farisaica; o cultivo dos tabus; a postura dogmática; tudo isto é uma importação de velhas estruturas religiosas e dos seus métodos de vigilância das almas, agora ao serviço de novos deuses.

Eu, homem, branco, ocidental, heterossexual, cisgénero, não racializado, peco diariamente por pensamentos, por palavras, por actos e por omissões, devido a uma miríade de causas, muitas das quais inconscientes: seja por não estar suficientemente sensibilizado para a profundidade ontológica dos meus preconceitos, seja por não vislumbrar diariamente o machismo escondido nos livros, ou a homofobia oculta nas palavras, ou o racismo estrutural camuflado nos interstícios da sociedade. Já não chega esforçar-me para ser decente e tratar bem os outros – eu tenho de reconhecer a inabalável indecência do sistema em que vivo e os privilégios inerentes à minha existência. Tenho o dever de expurgar de mim o pecado original.

Há uma campanha que corre nas redes sociais em que figuras públicas declaram ser “um racista em desconstrução” ou “um machista em desconstrução”. Essa campanha faz-se acompanhar de textos de autocrítica que em nada diferem de uma ida ao confessionário. Ninguém imagina aquelas pessoas a exporem os seus pecados numa igreja – mas vão fazê-lo para os murais do Facebook. Rui Unas, um dos desconstruídos, declarou a esse propósito: “Há muito racismo não consciente e não voluntário que precisa de ser alvo de reflexão.” Assumirmo-nos como pecadores inconscientes e involuntários já vai além do próprio acto de contrição – é um abastardamento psicanalítico e uma estrutura de pensamento do tipo inquisitorial: confessa tudo, mesmo aquilo de que não sabe ter a culpa.

Este novo tipo de activismo é uma forma de fundamentalismo, que alimenta o tribalismo dos nossos dias. Milhões de indivíduos secularizados, mas evangelizados pelas novas causas justas, acabam a adoptar a mentalidade do cruzado, mergulhando naquilo a que chamei a luxúria da virtude: a adesão a uma concepção do mundo tão nobre e cheia de si que se torna profundamente intolerante para com o pensamento divergente. Não há espaço para a troca livre de argumentos e toda a palavra heterodoxa invade um território tabu, sacralizado e impermeável ao debate de ideias.

Infelizmente, o excesso de pureza sempre foi um íman irresistível para a falta de decoro. E daí o aparecimento de tantos discursos despudorados na política contemporânea.

Toda a Justine tem o seu Marquês de Sade.

COMENTÁRIOS

Carlos AF Costa INICIANTE: Tenho por principio ético não ofender ninguém. Muito menos nestes espaços cobardes anónimos das redes sociais. Mas ainda há alguém com sentimentos democráticos e dignidade humanista que ouça este senhor? Vivi tempos da ditadura, vivi tempos da liberdade democrática, compreendi os fenómenos sociológicos que originam os pensamentos e comportamentos reaccionários e pidescos. Este senhor é anacrónico, é bafiento. 01.01.2021       Rebelde INFLUENTE: Nota-se que é uma pessoa de princípios anacrónicos e bafientos.     Rui Leite de Castro INICIANTE: Explique lá porquê. 02.01.2021            Carlos AF Costa INICIANTE: Trata-se de um ignorante muito pretensioso. Precisamos de pessoas cultas que saibam pensar e reflectir nos problemas da nossa sociedade. Nem todos poderão ser como o Eduardo Lourenço, mas na verdade temos muitos e bons pensadores. Os jornais não solicitam os seus trabalhos, porque acham que os leitores são todos ignorante e não sabem ler, leia-se interpretar textos com ideias. Jornalistas com pretensões intelectuais mas sem qualquer pensamento próprio e interessante e que regurgitam banalidades reaccionárias dispenso. Leio, entre outros, o António Guerreiro porque o seu pensamento é sempre surpreendente, poupa-nos ás banalidades repetidas. 02.01.2021          GMA EXPERIENTE: Cito do texto o auto retrato perfeito do Sr. JMT, que parece conhecer bem a técnica do raciocínio motivado. "Talvez por não frequentarem a missa ao domingo, estes autoproclamados progressistas não têm a menor noção de quão próximos estão dos beatos mais devotos. A sua capacidade para encontrar um pecado em cada esquina; a vigilância sobre a consciência e sobre a linguagem; a obsessão com as palavras; a intransigência farisaica; o cultivo dos tabus; a postura dogmática; tudo isto é uma importação de velhas estruturas religiosas e dos seus métodos de vigilância das almas, agora ao serviço de novos deuses." 01.01.2021           DNG. MODERADOR: Devo realçar a qualidade da crónica, contudo não subscrevo a tolerância circular pedagógica. Tentar persuadir Ventura com argumentos é um acto em vão, de resto, por que razão um liberal se há-de inflamar com quem sente repúdio pelas ideias do Chega sem que esse repúdio se enquadre na catequese do politicamente correcto? Catalogar movimentos de oposição ao Chega de tribalismo com tiques estalinistas é um acto falhado em matéria de interpretação sociológica. Muitas das conquistas que regulam a nossa vida social foram aquisições penosas. Afrontar com veemência quem as coloca em causa é perfeitamente legítimo. Ou já é proibido se indignar à luz da tolerância liberal de JMT? 01.01.2021           Por bom caminho e segue EXPERIENTE: Excelente maneira de acabar o ano. Comece o próximo assim, Tavares. É preciso acabar com todo o tipo de fundamentalismo.      Luis Rocha INICIANTE: Muito bem, concordo. Só acrescento uma coisa como Português de dupla cidadania nos EUA. É interessante que em Portugal as pessoas se vejam como "brancos, ocidentais." Nem é preciso ler Hitler para perceber a nossa dimensão Hispânica, basta sair para o norte da Europa (que nos vê PIGS) e para os EUA. Aliás, como Vitorino Nemésio se definiu e a minha experiencia confirma: "Eu sou, ao mesmo tempo e acima de tudo, português, açoriano, europeu, americano e brasileiro e, por tudo isto, romântico, hispânico e ocidental e gostava de ser homem de todo o mundo." Por estas e por outras, fico sempre decepcionado quando o pessoal importa o wokenismo americano sem pensamento crítico--e sem beatismo. Existe realmente desconstrução que todos temos que fazer, mas tem que partir do nosso contexto. JPR_KapaEXPERIENTE: Reli este texto e continuo mais convencido que, apesar dos argumentos inteligentes que aqui expressa, JMT não o faz por convicção mas por gozo intelectual - está no seu direito, mas eu podia usar o mesmo registo para mostrar as virtudes do socialismo, do liberalismo ou de outra coisa qualquer. No fundo, é demasiado relativista e parcial, além de excessivo: ao dar ao alvo tal abrangência, de facto, está a dizer que esboçar p. e.x., a condenação do racismo é tribalismo. Responde com o excesso e no mesmo plano, aos que radicalizam estas manifestações e que sempre existiram. Além disso JMT tem dado vários exemplos do seu tribalismo, no seu bullying mediático, o que não deixa de ser curioso. Ou seja, "tribalismo" existe há muito tempo, não é de agora, e não veste só estas roupagens.           Luis_Morgado EXPERIENTE: O tribalismo é um dos grandes problemas no debate público actual. O conforto e a segurança que se procuram quando se adere a uma identidade e se é aceite num grupo conduzem quase sempre à necessidade de radicalizar as discussões para que não se seja visto como um traidor ao clube. Os grupos definem-se por oposição a outros grupos e o diálogo deixa de ser uma forma de construção de pontes e de novas ideias, mas antes um combate onde se vence ou se é derrotado. Os factos e a realidade passam a ser vistos pelo filtro da doutrina e do dogma. O preconceito é o ponto de partida. Concordo com o João Miguel Tavares. Desejo a todos um bom ano e um debate saudável e não tribalizado.           cedcerqueira INICIANTE: E no entanto, o racismo, o machismo e a homofobia continuam. Tudo culpa, claro, da woke culture, que obriga os intolerantes a uma maior intolerância ao combater essa intolerância... Eu, confesso, estava convencido que o problema estava nos racistas, machistas e homofóbicos.         Rebelde INFLUENTE: O problema está nos fundamentalismos que acabamos a apoiar sem querer e sem nos apercebermos de que estamos a ser manipulados. 01.01.2021         joaquim pocinho INICIANTE: Encostar os meninos incultos e radicais a sacristia, que eles tanto odeiam, além de ser verdadeiro, dá um gozo enorme. Ainda para mais quando esses meninos nem percebem o quão estão a ser gozados. Brilhante!      Félix Carlos EXPERIENTE: Boa crónica de uma série que se espera descortique ainda mais males lusitanos e por que não, mundiais. Eu, falso beato, anseio por regressar à igreja e em comunidade, até lá e enquanto puder laboro a nível familiar. Concordo que muita gesticulação político-social terá a ver com a religiosidade ofuscada no nosso cérebro racional. Para terminar confesso (?) que uso camisola interior o que segundo critérios actuais e factuais diz bem da minha inata parolice. Bom Ano ou como profetiza o Bartoon quotidiano, “à cautela nada”.         A2 EXPERIENTE: 1) JMT não deveria presumir que é o único português a conhecer as palavras da missa; vá ver os números de católicos dos últimos censos. 2) Nesta pequena redacção, acaba por cair no relativismo cultural de que a esquerda é por vezes acusada, mas numa versão amoral: para JMT, racismo e anti-racismo, machismo e feminismo, injustiça e justiça, equivalem-se, e se os primeiros se consideram a evolução natural, o progresso da humanidade, então os seus opostos têm toda a legitimidade para existir, e com a mesma preponderância; como se fosse inevitável o imobilismo, como se o velho do Restelo é que fosse o maior português de todos os tempos. Ora isso é simplesmente absurdo!        jmtavares EXPERIENTE: O meu argumento não é esse. É o de que: 1) exactamente porque o anti-racismo é superior ao racismo ele pode ser defendido com argumentos e não com a criação de interditos temáticos; 2) o combate ao anti-racismo deve ser um combate acerca de actos e gestos concretos, e não um combate psicanalítico para extirpar restos de homem branco colonial que alegadamente há dentro de cada um de nós. Se eu quiser fazer psicanálise, vou a um consultório. Não a faço no espaço público.       cedcerqueira INICIANTE: Sim, o argumento é esse e na sua essência está correcto. O racismo e intolerância combatem-se com argumentos e não com interditos. JMT não quer fazer psicanálise em público (está no seu direito), mas como liberal não devia entender/aceitar que outros o façam? Entre o combate ao politicamente correcto e o combate ao racismo e intolerância, por vezes, há que escolher o alvo.      Tiago INFLUENTE "Se eu quiser fazer psicanálise, vou a um consultório. Não a faço no espaço público." - João, eu até concordo que por vezes o activismo que refere assume graus insuportáveis (ex: "tem de matar o homem branco", "fetos são um punhado de células", "só os trans e afeminados é que lutam pela igualdade de direitos"), mas o racismo, o machismo e a homofobia não acontecem há séculos em espaço público e não são igualmente insuportáveis para quem é vítima deles? Não está assim a dizer que o racismo, machismo e homofobia devem ter liberdade total de expressão em espaço público, mas a natural reacção deveria ser limitada a salas de terapia que o racista, o machista e o homofoboo nem sequer entendem necessitar? Qual a lógica disso? Liberal só para alguns? A meu ver, a 3ª lei de Newton explica melhor.       cidadania 123 EXPERIENTE: Caro JMT, excelente análise. Faltou incluir na descrição dos " pecadores" serem cristãos, omnívoros, casados e fiéis, pai, policia, empresário , político ou banqueiro, e politicamente não da esquerda radical (situação que o purgaria de qualquer pecado). Quando indicou branco já não necessitaria de mencionar indivíduo não racializado pois como bem sabe o racismo só existe nos brancos....           Novo Humbo EXPERIENTE: Tal e qual.       Rui Fernandes INICIANTE: Obrigado mais uma vez por expressar os meus pensamentos           AAA_ INICIANTE: Lapidar!!! Parabéns, JMT!         Mario Coimbra EXPERIENTE: Excelente. Não podia concordar mais. 31.12.2020

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