Tudo se aceita com fair play. Para isso
se fez o 25 de abril. Para a liberté,
égalité, fraternité que copiámos com fervor, aceitando, pois, todas as
fervuras – e verduras - mais ou menos exibicionistas. Por isso Ventura se passeou
e alcançou êxitos com as suas coisas. Os seus discursos e a sua beleza apolínea
que também contribuiu, pois nós vamos muito pela beleza. Apolínea e venusiana. Mas
não só, claro. Que os nossos olhos – e as nossas mãos - também se estendem para
as outras viandas do nosso sabor, mas isso serão os governos a manobrar – para nós
e para eles. Já estamos habituados, a Maria João Avillez é que ainda se aflige. Aliás, como já ia para o Tó Zé Brito nas suas confissões ao Paulo de Carvalho, coitado, coisa
antiga o nosso canto de sofrimento:
[PC] -Olá! Tu
por aqui?
[TB] -Olá, então como vais?
[PC] -Tudo vai bem?
[TB] -Tudo vai mal para mim.
[PC] -Mas tudo vai mal porquê?
Certificados /premium
Tudo tão complacente, tão trágico, tão
derisório: uma pandemia cruel, um país a cair aos bocados nem se cuida dos
vivos nem se enterram os mortos, a ausência de compaixão, a inteira falta de
horizonte
MARIA JOÃO AVILLEZ
OBSERVADOR,28 jan
2021
1Foi
um certificado. Tão claro e inequívoco que tornou o júbilo (?) da direita
perante a sua vitória (?) – onde foram buscá-la? – um episódio constrangedor:
diga-se ou escreva-se o que se quiser ou convier, a direita saiu
esfrangalhada de Janeiro de 2021 (sim, retenham a data). Não terá concerto tão
cedo: o igualmente confrangedor espectáculo da noite eleitoral – discursos
politicamente incompreensíveis, excitações indigestas, imperdoáveis
imaturidades políticas, percentagens medíocres – foi um pré-aviso de
catástrofe mesmo se já anunciada há largos meses (anos?). E os day
after, enfeitados com “cartas” sulfúricas e recados hostis, foi outro: revela o
que se suspeitava: o quadro de mediocridade é tão ressentido que o motor da
vingança começou já indisfarçavelmente a carburar. Tudo más noticias.
2A bem
dizer ganhou Marcelo Rebelo de Sousa, ponto. Veremos para quê, veremos como.
Houve um alívio açucarado que subiu aos céus do país, alguns comentadores
pareciam “au bord des larmes”, os adversários travestizaram-se de rendidos, só
faltou irem a Fátima. Agradecer o milagre que nunca esteve para não ocorrer.
Não ironizo, constato. O mérito desta vitória real e transversalmente desejada
pelo país, não me impedirá a constatação. Foi aliás um serão dominical que
apesar da sua pobreza política exigia tanta observação – não é contraditório –
que temo até que tenha passado desapercebido que os já semi-publicamente
posicionados candidatos à sucessão de Marcelo o fazem com a autorização e a
bênção do seu ícone. Eis o que não deixa de ser interessante. Tanto certificado:
depois de uma direita já certificada pela esquerda e de uma liderança de
direita à espera de ser certificada – como ajudante – pela esquerda, agora
aterraram candidatos a presidente certificados pelo próprio.
E tudo isto tão complacente, tão
trágico, tão derisório: um país a cair aos bocados, uma pandemia tão cruel onde
já nem se pode cuidar dos vivos nem enterrar os mortos, uma ausência de
compaixão, uma inteira falta de horizonte. Mas sim, houve pelo menos
alguém que esta noite compreendeu isto muito bem: o Presidente da República. Quem
atentasse no seu rosto cansado e no olhar inquieto ao discursar, na sua
linguagem gestual, nas duas máscaras, no percurso solitário por Lisboa (o Chefe
do Estado não tem motorista? Nem alguém que cozinhe para si? Assessores que lhe
tivessem evitado o quase demencial passeio pela cidade a que o país assistiu
estupefacto?) teria alcançado o tamanho da sua real aflição. Tem razão. E
sofrer sozinho dói mais. Julgo ser o caso.
3Não
sei se André Ventura escreveu às televisões ou telefonou à extrema esquerda a
agradecer a “certificação” que lhe deram através da parte considerabilíssima de
votos que lhe coube directamente remetidos por elas – media e esquerda
radical. Mas deveria agradecer: como se deixaram capturar assim por alguém
recém chegado a política e com 1% de votos? Como foi possível, por exemplo,
que devido a uma graçola apatetada de “batons”, centenas de portugueses
tivessem pintado a boca de escarlate? Quantos votos ofereceu a Ventura a
reportagem – faltam-me os adjectivos – da SIC sobre o Chega? Abrevio: poucas
vezes se viu na política uma estratégia que conduzisse ao exacto contrário
daquilo para que foi gizada, tão obsessiva foi ela na imbecilidade gratuita da
perseguição, difamação, condenação, manipulação. Ventura foi tratado como um assassino
além de que o jornalismo lidou com ele como se estivesse num tribunal, em
regime e registo acusatório — punitivo.
Nunca encarnando o papel de medianeiro que face a plateia do país questionasse
um actor político (mesmo que ele não tivesse nada para dizer). Enquanto
isto prosseguir Ventura crescerá em votos e não haverá – com as duas/três
excepções, sempre as mesmas – jornalismo nem livre, nem inteligente, nem útil. Nem
decente, que é o pior de tudo.
4Mas há pior e era aqui que eu
queria chegar (pedindo desculpa ao leitor por ter levado três parágrafos a
aterrar no meu ponto). O pior é
que tudo isto que se vive hoje politicamente no espaço à direita do PS – um
indesatável nó – ter sido tão (tão!) previsível. Não foi só a “media” nem duas
candidatas presidenciais pouco inspiradas que deram honras de cidade a Ventura. Não: a imensa responsabilidade desse
direito de cidade foi-lhe certificada, de há longuíssimos meses para cá, pelo PSD
e pelo CDS. Ainda não
tenho claro se o fizeram por inércia, por fraqueza política, por distracção (há
casos), por pura inconsciência. Inclino-me para uma preguiçosa ignorância sobre
a importância real de algumas bandeiras do Chega. Isto é, uma clamorosa
ignorância sobre a razão da escolha daquelas concretas bandeiras políticas.
Mês após mês, debate após debate,
intervenção após intervenção, Ventura tem vindo a denunciar um mal estar real
que em qualquer circunstância – repito, em qualquer circunstância – teria que
ter sido prioritariamente, obrigatoriamente (bem) acolhido pelo CDS e pelo PSD.
Em vez de definitivamente arrumado numa gaveta que dizia por fora
“politicamente incorrecto – não mexer” (dos ciganos ao “sistema”).
E assim sendo, tivemos o enlevo com
que Rui Rio tenta desastradamente dançar valsas há anos com o PS, ou que
virevolteia entre falar só para o centro esquerda ou só para a direita, numa
confusa interpretação do que sempre foi o insubstituível lugar do PSD na
política e na sociedade portuguesa. (hoje
não é nenhum, ou quase). Testemunhámos
depois a desgovernação de Assunção
Cristas no CDS: entontecida pela sua votação autárquica em Lisboa? Mal
aconselhada pelos seus pares na escolha dos pontos cardeais ideológicos do CDS?
Demasiado “ocupada” com um debate político-parlamentar exclusivo entre ela
própria e António Costa? Não sei. Mas sabemos todos que a aventura culminou na
passagem dos 15 ou 16 deputados que contava o CDS quando ela o ganhou, para os
4 ou 5 com que o deixou. Seguiu-se,
após um congresso altivo e tempestuoso, um líder jovem, promissor e
descomprometido com este passado – Francisco Rodrigues dos Santos — incapaz porém e, aparentemente, de prometer um
futuro aos seus, enquanto se debate com um presente ingrato.
Claro
que a Iniciativa
Liberal trouxe
frescura e novidade e nesse sentido pode ter atraído gente do CDS e
prejudicado o seu líder (também
ele maltratado pela media que sempre lhe preferiu barões mais mediáticos), mas
seja como for, o Chega cresceu e não só devido às ajudas “externas” e ao
talento e argúcia de quem o anima. Não: cresceu porque tinha de crescer.
Tivessem sido reflectidas, acolhidas e audivelmente discutidas as suas razões e
desfraldadas as suas bandeiras pelo centro direita e pela direita; tivesse
havido um comprometimento por parte de quem de direito perante os milhares de
portugueses que progressivamente se iam sentindo à “margem” da cidadania e sem
sombra de representação pública ou política e… outro galo teria cantado.
(Já agora uma nota a propósito,
depois posso esquecer-me: acaso este naufrágio ocorreria com Passos Coelho no PSD?
5E
finalmente: se há responsabilidades partidárias na débacle deste espaço
político, no crescimento do Chega, na falta de oposição à indecência dos abusos
do Governo socialista já só penduro em Belém, que dizer
das imensas responsabilidades da sociedade civil? Da mais abúlica, inoperante,
indolente das sociedades civis? E as (supostas) elites? As associações, os
organismos, as instituições, os movimentos ou o que for , que guardem ainda uma
réstia de fôlego independente do governo e do PS? Vendo a ausência de oposição
parlamentar desistiram do seu papel cívico? Desinteressaram-se? Não lhes
faz impressão este estado de coisas? Ou é melhor estar calado e fingir que não
se vê? Disfarçar e estar sempre de bem com Deus e com o diabo? Talvez seja
isso. Deve ser isso: em Portugal ou se vive do Estado ou se tem medo.
País submisso.
6Não é de estranhar que tenhamos
chegado ao tal indesatável nó. Sabem qual? Um dia terá de se governar com o
Chega sem se poder governar com o Chega.
PRESIDENCIAIS
2021 ELEIÇÕES
PRESIDENCIAIS ELEIÇÕES
COMENTÁRIOS:
Hugo Filipe: muito obrigado Maria João.
Carlos Quartel: Interessante
análise. A diabolização do Chega, intensa e permanente, virou-se contra os
autores das campanhas. PSD e CDS, em vez de ouvir o que é que o homem dizia
juntaram-se ao coro escandalizados pela simples existência do Chega.
Os votos no Chega não aparecem por
acaso, algumas das suas denúncias (insegurança nas periferias, bairros donde a
polícia é expulsa à pedrada, vandalismo vários) são sentidas pelas populações,
que se sentem desprotegidas, com os vândalos a serem tratados como pacíficos
jovens, momentaneamente desencaminhados.No campo, no Alentejo, a votação no
Chega diz que a questão cigana é séria e precisa de ser encarada. Há que
abandonar a visão romântica dos "filhos do vento" e pensar em
políticas sérias de integração, prevendo o uso de algum músculo, se necessário.
Antes que aconteça por aí algum drama
.....
Paulo Cardoso: Muito bem,
Maria João Avillez. Tivessem, os seus pares, as suas sagacidade, lucidez, à
vontade de escrever e o país não estaria assim.
isabel vaz: Excelente
artigo! A melhor análise da situação política que vi. Que pena não termos mais
jornalistas ao nível desta Senhora...
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