terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Do geral para o particular: o terceiro texto

 

Conclusivo. Exemplificativo da tese do tribalismo ditatorial. Pelos gerais ataques que recebeu, da esquerda exemplar, JMT é, de facto, o centro deste debate que procurou. Apesar de André Ventura ser o pretexto. Coloco apenas dois comentários mais substanciais. Continuo a achar que o pensamento de JMT é equilibrado e certeiro.

OPINIÃO

Pequeno ensaio sobre o tribalismo – parte 3

Não é possível desarmadilhar o tribalismo enquanto não for rompida a esparrela do confronto entre justos e deploráveis, e enquanto enchermos o espaço público com palavras-cianeto, que matam o interlocutor à primeira dentada.

JOÃO MIGUEL TAVARES

PÚBLICO, 2 de Janeiro de 2021

Em tempos politicamente moderados, quem discorda de mim é meu adversário. Em tempos politicamente extremados, quem discorda de mim é meu inimigo. E em tempos de crescimento acelerado do tribalismo, as conversas vão-se tornando cada vez mais difíceis, até se tornarem impossíveis. O Outro deixa de ser reconhecido como um interlocutor válido, e num confronto entre justos e deploráveis não há plataforma mínima de entendimento. Para citar Mamadou Ba, num cristalino artigo no Expresso: “Uma ponte supõe duas margens, e qual a margem para acomodar a indignidade?”

Qual, de facto? Não existindo ponte, o meio da ponte é um lugar inabitável. Quem se recusa a pertencer a qualquer um dos extremos é inimigo de ambos os lados. Ou, se tiver sorte, vai sendo colocado num ou no outro extremo consoante o recheio das suas intervenções. É este (inevitável) empurrão para dentro das trincheiras que gostaria hoje de analisar aqui, com recurso ao exemplo que tenho mais à mão – eu próprio. Em 2020 escrevi vários artigos sobre André Ventura, acusando-o de contradições patéticas, de fazer sugestões escabrosas e de ser uma má ideia fortalecer a direita radical só para chatear a esquerda. Mas, aquando da coligação dos Açores, e mais tarde quando duas candidatas presidenciais sugeriram a ilegalização do Chega, defendi que o partido tinha os mesmos direitos constitucionais que os restantes partidos, e que o PSD tinha toda a legitimidade para se coligar com quem bem lhe apetecesse. Chamei ainda a atenção para o facto de a política ser uma escolha entre males menores, e não uma escolha entre bens maiores.

Isso significa que durante os primeiros dez meses de 2020 fui atacado pelos simpatizantes do Chega por ofensas ao partido, e durante os últimos dois meses de 2020 fui acusado de estar a promover o Chega e, com ele, a normalizar o fascismo. Dizer que Ventura tem direito à existência política é ser amigo de Ventura. Dizer que o PSD tem direito a coligar-se com o Chega é ser amigo de Ventura. Dizer que à esquerda não faltam tomadas de posição igualmente abjectas é ser amigo de Ventura. A única forma de não se ser amigo de Ventura é dizendo de Ventura aquilo que a esquerda nos manda dizer. Ou seja, só se saltarmos para a trincheira que é – obviamente, claramente e sem quaisquer dúvidas – habitada pelas pessoas de bem.

Mais uma vez, minamos a vida pública com um número absurdo de interditos, que impossibilitam o debate. Há coisas que não se discutem, e basta querer discuti-las para entrar na trincheira inimiga. Ventura é fascista – como debater com fascistas? Ventura é racista – então como debater com racistas? Não é possível desarmadilhar o tribalismo enquanto não for rompida a esparrela do confronto entre justos e deploráveis, e enquanto enchermos o espaço público com palavras-cianeto, que matam o interlocutor à primeira dentada.

Para acabar com o neotribalismo, é preciso recuperar a capacidade de defender publicamente os nossos melhores valores, o que é radicalmente diferente de os sacralizarmos (dizemos “não se toca”, e já está); é fundamental resistir à invasão puritana das consciências, recordando a liberdade negativa de Isaiah Berlin e o direito fundamental a ser deixado em paz; e é necessário repelir a técnica do empurrão para a trincheira, que impede a existência de meios-tons e de caminhos alternativos ao pensamento único – porque todo o pensamento único, ainda que grávido das melhores intenções, só dá à luz cabeças ocas.

Jornalista

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COMENTÁRIOS

DNG. MODERADOR: Por acaso esses "delatores fundamentalistas", aqueles que ficam na história no combate contra o conservadorismo, o religioso a favor do laicismo, contra as monarquias e ditaduras a favor da latitude democrática, os que se insurgiram a favor dos direitos do trabalho, os que libertaram e libertam as mulheres, os que se in dignaram contra o racismo, a xenofobia, os que lutaram a favor dos direitos dos homossexuais, os tolerantes enfim, são liberais de esquerda. Enquanto a esquerda pós - moderna se revê no politicamente correcto, a direita, sem ideias retrocessa e encontra no instinto e nas causas fracturantes de que o Chega é o exemplo o seu tribalismo, a sua trincheira, enfim o perder a vergonha de assumir sem preconceitos a sua verdadeira identidade. 02.01.2021

cisteina EXPERIENTE: Aquilo que hoje se chama esquerda nada tem a ver com a esquerda decente que aponta no seu comentário, DNG, estamos no séc. XXI, não podemos justificar o presente com o passado, a sociedade mudou nos últimos 50 anos mais do que desde o séc. XVII até 1950, temos hoje um radicalismo indecente, ignorante por desconhecer a história, tanto à direita como às esquerda, mais utópico que nunca, a mim me parece o espaço ideológico decente está no seu equilíbrio, mais ou menos ao centro, todos os revolucionários radicais acabaram no cadafalso ou foram expulsos. É por isso que este capitalismo continua mais selvagem que nunca, será um problema de tempo e não de espaço geográfico ou não. 02.01.2021 12:38

 

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