Sobre as anomalias gritantes do AO90 e as incongruências dos seus
representantes, caso de Pedro
Cegonho, como explica o autor da crónica, jovem ainda, Francisco Miguel Valada, que o Céu
proteja, e leve a bom termo numa causa que parece perdida, como só por aqui se
vê… Et pour cause.
OPINIÃO: Propaganda ortográfica na Assembleia da
República
Quando se fala de literacia, de
leitura e de escrita, está a abordar-se um assunto sério e incompatível com
propaganda política. Conviria por isso que o deputado Pedro Cegonho, da
próxima vez, se fizesse acompanhar de um estudo a quantificar os efeitos positivos
do AO90 na
aquisição/aprendizagem da língua portuguesa.
FRANCISCO MIGUEL
VALADA PÚBLICO, 25 de Janeiro
de 2021
A
Faculdade não responde pelas doutrinas expendidas na dissertação e enunciadas
nas proposições.
Regulamento da Faculdade de Medicina do Porto, 23 de Abril de 1840, artigo
155.º
No
dia 22 de Maio de 2015, cerca das nove e um quarto da manhã, a cidadã M… tomava
o seu cafezinho na sala de estar do apartamento, descansada da vida e sem
incomodar ninguém, quando subitamente recebeu uma chamada telefónica. Atendeu o
telemóvel e do outro lado disseram-lhe: «acabo de ler no Diário da República que
foste despedida por fato que te é imputável». A chávena de café tremia na mão da cidadã M….
Pousou-a na mesinha de apoio e perguntou incrédula: «fato que me é imputável? Desde quando é que fatos me são imputáveis ou imputados… – aliás, desde quando
são imputados fatos»? «Não acreditas?», retorquiu o interlocutor, «então,
consulta o Diário da República, há fatos de todos os tamanhos e feitios». Anos antes, no dia 13 de Março de 2012, pouco passava das 9 e meia da manhã, o cidadão P…
recebera um aviso semelhante: fora despedido por «fato imputável ao trabalhador». Bem-vindos a Portugal, um país em que “fatos imputáveis”
são motivo para despedimento, mas ninguém se incomoda com isso.
Há
dias, dei por mim a ler a dissertação inaugural apresentada, em 1913, por Miguel Pinto Vallada à Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. A
frase na epígrafe aparece quer na dissertação de Pinto Vallada, quer em
diversos documentos coevos, sendo aquilo a que os anglófonos chamam disclaimer e nós, falantes de português, chamamos ressalva ou cláusula de desresponsabilização. As ressalvas deste tipo, como é sabido, têm o
objectivo de proteger uma instituição que publique um determinado conteúdo,
desvinculando-a das ideias do autor e dos prováveis impactos negativos dessas
ideias. Todavia, há dias, assistimos na Assembleia da República a uma variante
perversa destas ressalvas, com os próprios autores e responsáveis
pela publicação do conteúdo a desresponsabilizarem-se dos impactos negativos do
Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) por eles criado, virando o bico ao prego com
retórica política e atirando areia para os nossos olhos com propaganda.
Com
efeito, o deputado socialista Pedro Cegonho interveio recentemente no Plenário da Assembleia da
República, para mais uma machadada do poder político português no
progresso científico do país. Sabemos, há
algum tempo, que este senhor deputado é educado e ouve
argumentos. No entanto, adopta exactamente a atitude de tantos dos
seus companheiros de profissão: ouve, mas no fundo, bem lá no
fundo, está-se nas tintas, porque o resultado final, já se sabe, será o
previsto desde o início, continuando a ser ignoradas críticas, chamadas de
atenção e, principalmente, provas de as coisas não estarem a correr bem. Esta tem sido a atitude adoptada por quem
vota, influencia e decide assim, apesar de pareceres emitidos por quem estuda
recomendarem assado. Não repetindo
argumentos trazidos à
colação por Nuno Pacheco
(PÚBLICO, 16/01/2021), vou
centrar este meu artigo numa frase, porventura a mais importante, do discurso
de Pedro Cegonho. É grave um
deputado ter dito, em plena Assembleia da República, que «é importante
sublinhar a relevância do Acordo para a literacia: a
facilitação da aprendizagem da escrita e da leitura no vasto quadro dos
falantes de português da CPLP» e
preocupante não ter havido uma alma das que nos representam a chamar a atenção
do senhor deputado para o carácter altamente duvidoso da declaração acabada de
proferir.
Quando
se fala de literacia, de leitura e de escrita, está a abordar-se um assunto sério
e incompatível com propaganda política, como recordei
em recente polémica (cf. PÚBLICO, 27 de Abril de 2020). Conviria
que Pedro Cegonho, da próxima vez,
se fizesse acompanhar de um estudo a quantificar os efeitos positivos do AO90
na aquisição/aprendizagem da língua portuguesa. Por
exemplo, um estudo a indicar a existência de contributo positivo do AO90 para,
entre 2011 e 2016, a média dos alunos portugueses do 4.º ano de escolaridade
ter descido 13 pontos na avaliação da literacia em leitura do PIRLS.
Esse contributo positivo poderia ser o de a média só ter descido 13 pontos, em
dez de 31 ou 113. Na ausência desse estudo, a frase essencial do senhor
deputado, além de errada (o que é grave), é perigosa (o que é gravíssimo), pois
pode haver incautos a interpretar tais palavras como fundamentadas e, em última
análise, correctas. Pedro Cegonho, em vez de responder pelas doutrinas expendidas e
enunciadas no AO90, distingue méritos e virtudes que o documento, até prova em
contrário, não tem.
Por
exemplo, quando li Pedro Cegonho a
anunciar com o AO90 “a facilitação da aprendizagem da escrita e da leitura
no vasto quadro dos falantes de português da CPLP”, lembrei-me
logo do contrário. Curiosamente, o contrário foi escrito há muitos
anos pela recentemente jubilada Professora Maria da Graça Castro
Pinto, num excelente artigo científico
em que, sobre opções de supressão de acentos e de hífenes em 1986, refere: «não será implausível dizer-se que se as
preteridas simplificações facilitam a escrita – e esta facilitação poderá ser
enganosa […] – não facilitarão a leitura e torná-la-ão mesmo muito
possivelmente de automatismo mais tardio».
Quanto à supressão de consoantes não pronunciadas e de
acentos (cf. AO90), acrescenta: «Uma
leitura correcta poderá passar então também pelo conhecimento da classe lexical
a que o vocábulo pertence e por vezes mesmo por outros conhecimentos que o
leitor possa possuir: caso de palavras em que se suprima o acento ou a
consoante muda».
Há
uns anos, neste jornal, tive a oportunidade de chamar a atenção para a
necessidade de livros de estilo portugueses começarem a indicar, como acontece
no Brasil, que “'excessão’ (com dois ss) constitui erro grosseiro” (PÚBLICO, 19/02/2014). A razão era
simples: a ausência em exceção da informação grafémica veiculada pelo
p de excepção levaria a cada vez mais ocorrências de excessão.
Como é sabido, os exemplos de excessões por exceções (e recessões por
receções) são muitos. Um dos
mais recentes ocorreu na RTP e foi denunciado pelos Tradutores Contra o Acordo
Ortográfico. Efectivamente,
entre as excessões e a «relevância do Acordo para a literacia», o fosso é
enorme. Já se sabe que a “máxima
unidade possível” prometida na Nota Explicativa do AO90 esbarra na realidade,
isto é, na criação de grafias diferentes pelo próprio AO90, fruto desse
devaneio chamado “critério fonético (ou da pronúncia)”. Gostaria de ouvir a explicação de Pedro Cegonho sobre o contributo da criação de receção, aspeto, respetivas
ou rutura na norma europeia e da manutenção
de recepção, aspecto, respectivas ou ruptura na norma brasileira (cf. PÚBLICO, 15/03/2015) para «a facilitação
da aprendizagem da escrita e da leitura no vasto quadro dos falantes de
português da CPLP».
Enquanto
escrevo estas linhas, tenho à minha frente um fenómeno criado pela adopção do AO90 e estimulado por declarações infelizes de agentes
políticos responsáveis pelo processo: o tal “processo em curso” que deveria
ter sido imediatamente suspenso (em finais de 2005), segundo os ignorados pareceres da Professora
Inês Duarte e do Professor Ivo Castro.
Esse fenómeno, já abundantemente mencionado nestas páginas, é o do fato em vez
de facto, do contato em vez de contacto e afins. Neste preciso momento,
tenho à minha frente um exemplar do Diário da República de 20 de Janeiro de
2021, com «documentos comprovativos dos fatos invocados». Todavia, este é
assunto sobre o qual o poder político português não se pronuncia, apesar de há
muitos anos o conhecer.
Sendo
Pedro Cegonho o
interlocutor mandatado pelo Grupo Parlamentar do PS para dialogar
com a Comissão Representativa da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o
Acordo Ortográfico, receio que o excelente trabalho da ILCAO, em vez de
avaliado pelos seus méritos, continue a ser vítima dos actos políticos
habituais, com pareceres e provas a esbarrarem contra uma parede de certezas
baseadas em impressões e em intuições. Esperemos que o senhor
deputado mude de atitude na sua conduta política. Basta haver vontade, pois um dos passos já
está dado: Pedro Cegonho nem sequer adopta o AO90.
Autor de “Demanda, Deriva,
Desastre: Os Três Dês do Acordo Ortográfico”
(Textiverso, 2009)
TÓPICOS: LÍNGUA PORTUGUESA ACORDO ORTOGRÁFICO PARLAMENTO DEPUTADOS DIÁRIO DA REPÚBLICA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA OPINIÃO
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