quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

À deriva?

 

Teresa de Sousa, combinando a sua subjectividade com o aprumo de uma competência jornalística de inspiração documental, pela leitura crítica de opiniões do jornalismo essencialmente europeu e norte-americano, mostra bem quanto sente a saída de Angela Merkel da presidência do Conselho europeu, em que a sua parceria com Emmanuel Macron contribuiu para um certo equilíbrio na defesa dos valores democráticos pretendidos, firmados com o auxílio monetário de que nós, portugueses, tanto pudemos usufruir, sem que, aparentemente, conseguíssemos dinamizar um maior desenvolvimento económico, que era o que se pretendia com tais empréstimos - para mais reforçados hoje com a oferta generosa de muitos milhões a fundo perdido. É certo que a covid proporcionou tanta dessa solidariedade,  hoje, embora com a discordância de muitos deputados, mas não é isso que parece incomodar Teresa de Sousa, que traça um retrato muito favorável de Makron, não só na sua parceria anterior com a chanceler alemã, mas no seguimento de uma liderança europeia mais solitária, mas corajosa, de quem não está disposto a perder. Quanto a nós… vamos discutindo infindavelmente a covid e os seus reflexos, assustados, naturalmente, que o caso não é para menos. Todavia…

ANÁLISE

Macron depois de Merkel

A saída de cena da chanceler alemã vai deixar um vazio na liderança europeia que apenas Emmanuel Macron está em condições de ocupar. Pelo menos durante algum tempo – o tempo em que também tem de preparar a sua reeleição.

TERESA DE SOUSA

PÚBLICO, 18 de Janeiro de 2021

1. “Não estamos preparados para uma Europa depois de Merkel”, escrevia Mutamba Ramna na sua mais recente coluna de opinião do Político. O colunista do site europeu acrescentava que “nem mesmo o Presidente Emmanuel Macron tem estatura para preencher o vazio deixado pela saída da chanceler alemã.” Ninguém de boa-fé negará que a saída de cena da chanceler é um motivo de preocupação para a Europa. Porque Merkel é Merkel, mas também porque lidera há quase 16 anos o país mais poderoso da União Europeia. A outra parte da observação, sobre o Presidente francês, também pode ser lida de outra maneira. Para além dele, quem? Por muitas razões, a primeira das quais é que Merkel não lidera sozinha a Europa, embora pouca coisa se possa fazer em Bruxelas contra a sua vontade. A liderança europeia coube historicamente ao eixo franco-alemão, num equilíbrio entre iguais. Tudo mudou com a queda do Muro e a Reunificação Alemã. Sem constrangimentos e com cada vez menos complexos em relação à defesa dos seus interesses nacionais, a República Federal foi ganhando o estatuto de potência europeia incontornável. A crise financeira e a crise do euro aumentaram ainda mais o seu poder como principal sustentáculo da união monetária e, portanto, com força suficiente para ditar as suas regras. Ninguém lhe conseguiu fazer frente. Nem mesmo a França, ainda mergulhada numa penosa adaptação à nova relação de poder no centro da integração europeia. Com Presidentes de esquerda ou de direita, Paris foi tentando conviver com o seu novo estatuto europeu – ainda um país fundamental, mas já não politicamente liderante, como se habituou a ser nas primeiras décadas da integração. Teve de aprender a conviver com o novo poder de Berlim, com um alargamento que colocou o centro da União mais a Norte e mais a Leste, com uma economia que dava mostras visíveis de ter mais dificuldade em adaptar-se às novas regras da globalização dos mercados.

2. Quando Emmanuel Macron fez a sua entrada triunfal no Eliseu, a 14 de Maio de 2017, havia a expectativa de que alguma coisa iria finalmente mudar. O jovem líder de um partido recém-constituído e já vitorioso era a nova face de uma França disposta a reformar-se e a regressar ao seu papel histórico na política europeia e internacional. A elite alemã suspirou de alívio. Porque tinha do outro lado do Reno um parceiro que percebia as regras da economia e dos mercados. Porque chegou a temer pelo destino da França – e da Europa –, caso Marine Le Pen ganhasse o Eliseu. Macron percebeu isso melhor do que ninguém e transformou-se na força política capaz de a derrotar. Anunciou que a França estava de regresso, embora nem sempre disposta a seguir a cartilha alemã. A lua-de-mel durou pouco

Em dois discursos feitos logo a seguir à posse, um deles na Sorbonne, em Setembro, o Presidente francês apresentou a sua visão para “uma Europa unida, soberana e democrática”, desafiando a chanceler a reagir. A resposta começou por ser um silêncio ensurdecedor. A prudente e ponderada chanceler não se entusiasmava facilmente com o jovem brilhante, ambicioso e impaciente. A reforma da zona euro foi um dos pontos essenciais dessa desconfiança. Berlim queria partilhar obrigações, mas não recursos. Macron defendia uma zona euro à imagem e semelhança das uniões monetárias convencionais, dotada de um orçamento próprio suficiente para enfrentar qualquer choque assimétrico futuro. A relação entre ambos acabou por evoluir no sentido de uma inevitável cooperação, sobretudo a partir do momento em que Berlim percebeu duas coisas: que a saída do Reino Unido desequilibrava o centro politico da União; que Donald Trump punha em causa a sua relação com Washington, um dos dois pilares em que assenta a política externa alemã desde o pós-guerra. O eixo central sobre o qual roda a Europa foi-se reconstituindo lentamente. Portugal e Espanha regressaram ao centro da política europeia, com a credibilidade reconquistada, equilibrando as coisas a favor de Paris. A influência crescente dos populismos numa maioria de países começava a ser entendida como uma ameaça à própria integração.

3. Mesmo assim, no Inverno de 2019, a Europa parecia paralisada. “O Governo alemão está paralisado por uma coligação dividida, incapaz de agir e desejosa de morrer”, escrevia o correspondente do New York Times em Bruxelas, Steven Erlander, a 1 de Novembro desse ano. “O Governo italiano é um acidente (…); os espanhóis estão a preparar-se para as quartas eleições em quatro anos; o Reino Unido continua à deriva, três anos e meio depois de ter votado pela saída da União Europeia”. Na mesma altura, Norbert Rottgen, que perdeu a corrida para a liderança da CDU da chanceler, dizia: “A Alemanha está hoje ausente em quase tudo”. O resultado, acrescentava o director do European Council on Foreign Relations, Mark Leonard,é uma mudança nas relações de poder na Europa.”À medida que a crise do euro e a crise dos refugiados vão desaparecendo, a Alemanha torna-se menos central na liderança da União Europeia.” Emmanuel Macron parecia o homem do momento, tentando dar a mão à chanceler para trazê-la para o seu lado, declarando a NATO em “morte cerebral(com alguma razão, na perspectiva de um segundo mandato de Trump, mas demasiado depressa para a maioria dos aliados), insistindo na sua ideia de “soberania europeia”. Um Conselho Europeu extraordinário a 20 e 21 de Fevereiro de 2020 para debater o orçamento plurianual para 2021-2027 ficou na memória como uma das mais agrestes reuniões dos líderes europeus. Não houve decisões. A pandemia já atingia com força a Itália e a Espanha. Tudo iria mudar na Europa nos meses seguintes.

4.Como é possível governar um país com 258 tipos de queijo diferentes?” A frase, atribuída a De Gaulle, continua a aplicar-se às mil maravilhas a quem quer reformar a França. Macron foi mais longe do que os seus antecessores, das leis laborais à política fiscal, graças à maioria avassaladora do seu partido na Assembleia Nacional e à desagregação das forças políticas tradicionais à esquerda e à direita – os socialistas de Hollande e os Republicanos de Sarkozy. O desemprego caiu acentuadamente. A economia chegou a crescer mais do que a alemã. O défice recuou. A França estatista transformou-se no paraíso dasstart-ups. O Presidente reformador recebeu como recompensa o movimento dos “gilets jaunes”, que incendiou as ruas de Paris e das grandes cidades francesas. Ganhou nas ruas o título de “Presidente dos ricos”. Respondeu à sua maneira, arregaçando as mangas e percorrendo a França para debater directamente com as pessoas os seus problemas e as suas exigências. As reformas abrandaram o seu ritmo. A extrema-direita de Le Pen tentou cavalgar a onda. Nem a esquerda nem a direita tradicionais conseguiram capitalizar o descontentamento. O equilíbrio de forças não se alterou radicalmente, mas a popularidade de Macron foi-se desgastando. Começava a recuperar quando a pandemia chegou e, com ela, a maior crise que a Europa viveu desde a II Guerra

5. O Presidente francês voltou a ser crucial quando a União esteve prestes a cair na tentação do “salva-se quem puder”. Teve um papel fundamental para sensibilizar Angela Merkel sobre o que verdadeiramente estava em causa: a própria sobrevivência da União Europeia. A proposta que ambos apresentaram em Maio de 2020 para um fundo de recuperação da ordem 500 mil milhões de euros, destinado em grande parte aos países mais violentamente atingidos nas suas economias, foi o ponto de viragem. Tudo mudou a partir dessa altura. Macron esteve à altura da sua visão da Europa – uma visão que, concorde-se ou não com ela, é europeísta, política e estratégica. Trump e a pandemia deram razão a algumas das suas ideias para uma Europa mais “soberana” do ponto de vista económico e mais “autónoma” do ponto de vista estratégico, em relação ao seu protector americano. Berlim deixou de reagir com desdém. 

A União está ainda muito longe de vencer esta crise. Macron terá uma oportunidade de afirmar a sua liderança europeia. Nada que não se lhe cole à pele, nem para que não tenha ambição suficiente. O culminar desse papel será a presidência francesa da União, durante o primeiro semestre de 2022, já sem a chanceler, com a crise sanitária debelada pela vacina, com a recuperação a ganhar ritmo e com a emergência de um mundo diferente daquele que existia em 2019. Em Washington estará, a partir do dia 20, um novo Presidente que abre as portas à renovação da aliança transatlântica, mas que será mais exigente com os aliados europeus, porque os vê como parceiros fundamentais para enfrentar os enormes desafios à ordem internacional que mais convém às democracias liberais. Não será fácil.

A peça central do pensamento estratégico de Macron é a ‘soberania europeia’”, escreveu a Economist na sequência de uma entrevista ao Presidente francês, em finais de 2019. “O corolário é que os americanos vão ter de aceitar que os europeus agirão mais por eles e para eles”, concluía a revista. Macron não foi inicialmente o maior entusiasta do acordo de investimento concluído à última hora com a China pela presidência alemã da União. Queria uma relação com Pequim mais estratégica e mais global, menos circunscrita a um acordo “para servir a sua indústria automóvel alemã”, como dizem as vozes mais críticas. Mas a França dificilmente se liberta do manto “gaullista” que cobre a sua política externa, incluindo o sonho impossível de uma Europa como “terceira força” – agora já não entre os EUA e a União Soviética, mas entre os EUA e a China. “Antes mesmo que a Administração Biden se instale, o acordo entre Pequim e Bruxelas é já um fracasso para os projectos de cooperação transatlântica que Washington vai propor aos seus aliados”, escreve o parisiense +Figaro. Macron, o voluntarista, sabe que a resposta não se encontra apenas com voluntarismo. Não vai desperdiçar a oportunidade criada pela saída de cena da chanceler e pelas “amizades duvidosas” de Boris Johnson para se guindar ao estatuto de interlocutor privilegiado do novo Presidente americano. O novo secretário de Estado, Antony Blinken, viveu e estudou em França quando era jovem. Sem deixar de ser pragmático, como lhe é habitual, terá do outro lado do Atlântico um líder muito experiente.

6. Entretanto, em Paris e a pouco mais de um ano das presidenciais (Maio de 2022), as outras forças políticas tentam colocar os seus jogadores em campo. O dilema que enfrentam é simples: como quebrar o duopólio Macron-Le Pen na primeira volta das eleições. Os socialistas parecem apostar na presidente da Câmara de Paris, Ana Hidalgo, que não esconde as suas ambições. Mas unir a esquerda costuma ser uma “missão impossível” em França. À direita, os Republicanos continuam à deriva. Há pelo menos três candidatos em liça, nenhum particularmente estimulante. “Deter a presidência europeia em plena eleição presidencial pode ser um trunfo maior”, para Macron, diz ao Monde Stéphane Séjour, líder dos eurodeputados franceses eleitos pelo partido do Presidente. Mesmo que até lá a sua vida não vá ser um mar de rosas.

A pandemia provocou uma contracção brutal da economia. Os bolsos do Estado francês não são tão fundos como os da Alemanha. Mesmo assim, o ministro da Economia, Bruno Le Maire, anunciou no Outono um pacote financeiro para o relançamento da ordem dos 100 mil milhões de euros. Diz a Economist que boa pare desse montante é para sustentar as reformas que Macron ainda não conseguiu concluir – incluindo a descida dos impostos sobre as empresas. “Um pouco acima dos 4 por cento do PIB ao longo de dois anos e pouco, o estímulo francês [para a retoma] é ligeiramente superior ao alemão, anunciado em Junho”. A revista refere que os dois países trocaram de papéis: a Alemanha visa sobretudo animar o consumo, a França afasta-se desta via, argumentando que os rendimentos pouco caíram graças a subsídios muito generosos ao emprego. “Macron quer continuar uma agenda de reformas (…), cuja peça central é um plano de redução dos impostos das empresas da ordem dos 20 mil milhões de euros”, que ainda são das mais altas da Europa.

O Presidente teve de lidar no último ano com uma conjugação de crises que foram para além da pandemia. No Outono, dois brutais atentados terroristas em Paris e em Nice mostraram como a França continua a ser um dos países ocidentais mais causticados pelo fundamentalismo islâmico. Macron sentiu ainda mais justificada a sua ideia de uma “lei contra o separatismo islâmico”, que apresentou pouco antes dos atentados, mas que incendiou de novo a polémica em torno da eterna questão francesa da laicidade e dos valores da República. Uma nova proposta de lei de “segurança global”, que dá mais poderes às polícias está a provocar uma onda de contestação, tendo já obrigado o Governo a recuar. O Presidente está a ser acusado pela ala mais à esquerda do seu partido (República em Marcha) de querer ganhar as eleições à direita. Mais tarde ou mais cedo, Emmanuel Macron terá de escolher o caminho para um segundo mandato. Até lá, não parece ter alternativa, nem em França nem na Europa.

tp.ocilbup@asuos.ed.aseret

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COMENTÁRIOS

Fernando Dias.896153 INICIANTE: Deus nos livre desse pedante, aprendiz de Bonaparte, embebido de cultura jacobino-autoritária, e sem cultura verdadeiramente democrática. A França, nas últimas duas décadas, só produziu governantes (presidentes) medíocres. A ver se conseguem algum dia eleger uma mulher equilibrada do calibre da "inshalá" e nos livrar desses machitos galos.          Democrata XXI EXPERIENTE: Ou, como manter o optimismo?          Armando Heleno EXPERIENTE: Claro que a saída de Merkle é uma baixa muito grande, enorme. Não recordo já o que se dizia e escrevia na altura que ela entrou como delfina de Khol. As pessoas e o mundo viam-na, suponho, como uma mulher com grandes qualidades e no entanto ainda não tinha feito nada. Mas veio a fazer quando começou a inteirar-se dos dossiers e a contactar com os mais velhos que já há anos conheciam os meandros do centro de decisão. É por isso que não devemos menosprezar Macron, um estadista com enorme potencial, já mais maduro e conhecedor das manhas europeias. Espero que os adversários lhe dêem algum espaço e os que se sentirem ultrapassados, o deixem trabalhar no lugar que lhe vai caber. Para bem de todos nós.            António Cunha EXPERIENTE             O establishment de Teresa de Sousa, tudo o que fuja ao que conhece é motivo de medo e incerteza. 18/1/21          Manuel Caetano MODERADOR: No capítulo da liderança o maior problema que a União Europeia enfrenta não é o de saber quem lidera a Alemanha ou a França (a liderança ao centro nestes países não está em causa e novos líderes carismáticos, mais tarde ou mais cedo, aparecerão para substituir Merkel e Macron) é que o tripé (Alemanha, França e Reino Unido) em que ela (a liderança) assentou durante 46 anos deixou de existir com a saída do Reino Unido e terá que ser (re)inventada com recurso a outros países e protagonistas (chegou o tempo de substituir o triunvirato por uma liderança mais abrangente) - a União Europeia terá que encontrar uma solução de futuro (democrática, representativa e ágil) num contexto internacional multipolar muito mais complexo e exigente (os mundos bipolar e unipolar já não existem). Não será fácil              Roberto34 MODERADOR: Aqui há tempos li um artigo sobre um novo reforço do triângulo de Weimar (Polónia, França e Alemanha). Também existe o grupo Med. Ou os Nórdicos que incluem já os Bálticos. Benelux ou Visegrado. Geometrias variáveis não faltam na UE. Resta saber como fazê-las funcionar da melhor forma, atendendo aos interesses de cada um dos países e grupos de países.

 

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