Pesquisa e organização de JOSÉ
CARLOS FERNANDES, seguido, nesta III Parte, dos comentários de prazer e
gratidão gerais, por um trabalho de grande interesse, tanto mais que a história
que nos foi contada, quando estudantes, pouco mais abrangia que o mundo ocidental
– e meridional, no que nos competia. JOSÉ CARLOS FERNANDES lança-se,
corajosamente, em cavalgada ilustrada, pelo universo planetário, em fraternal e
arguta leitura, até chegar, com optimismo, ao nosso tempo de covid, que uma
vacina rapidamente obtida, graças ao progresso científico, talvez debele, mas
outros flagelos virão, da nossa fatalidade?
Da queda do Império Romano à Covid-19:
quais foram os piores anos da História? /premium
JOSÉ CARLOS FERNANDES OBSERVADOR,
01 jan 2021
1914: I Guerra Mundial
A
Europa, que, se exceptuarmos a Guerra Franco-Prussiana de 1870, não
conhecera conflitos internos de grande escala desde 1820, tinha
vindo a acumular tensões que se libertaram subitamente no Verão de 1914,
empurradas por uma desvairada corrida aos armamentos e por um clima de
nacionalismo exacerbado, atiçado pela imprensa tablóide dos diversos países.
A
guerra durou quatro anos e três meses, o que não é muito longo pelos
padrões das guerras de antanho, mas envolveu massas de soldados nunca
vistas, foi combatida com intensidade inaudita (graças às inovações
tecnológicas introduzidas na viragem dos séculos XIX/XX) e foi a primeira a ser
verdadeiramente mundial, envolvendo beligerantes de todos os continentes e
disputando-se nos mais diversos teatros, do Mar do Norte a Moçambique, dos
desertos do Médio Oriente aos Alpes, no solo, no mar e, pela primeira vez, no
ar.
Para
se ter uma ideia da ferocidade (e da obstinação irracional) com que a I Guerra
Mundial foi disputada, a aldeola belga de Passchendaele (também grafada Passendale) serve de
exemplo: era um
povoado rural insignificante, não era um importante nó de comunicações, não
albergava nenhuma indústria vital, não tinha significado simbólico para nenhum
dos beligerantes. Todavia, entre 31 de Julho e 10 de Novembro de 1917, 50
divisões aliadas (britânicas, canadianas e francesas) e 77 a 83 divisões alemãs
disputaram a sua posse com tal empenho que sofreram centenas de milhares de
baixas – as estimativas são muito variáveis, mas 250.000 para cada lado é um
valor plausível e corresponde aproximadamente a um morto por polegada (2.54 cm)
de terreno. Não foi o
término do banho de sangue em Passchendaele, pois os alemães, que tinham
sido forçados a retirar, reocupariam a aldeia na Batalha de La
Lys, em Abril de 1918, novamente com
pesadas baixas para ambos os lados. Em O
horror da guerra: 1914-1918 (The pity of war: 1914-1918), Niall
Ferguson apurou que “enquanto
às potências da Entente [França, Grã-Bretanha, Rússia, etc.] matar um
soldado a combater pelas Potências Centrais [Alemanha, Áustria-Hungria,
Turquia, etc.] custou 36.485
dólares, a estas custou apenas 11.344,77 dólares matar um soldado a combater pela Entente”. Ferguson fez também os cálculos inversos, isto é, o prejuízo
sofrido por cada país com a morte de um soldado seu: 1444 dólares por alemão,
1354 dólares por britânico ou americano e 700 dólares por russo, pelo que chegou
à trágica conclusão de que “não havia soldado que valesse tanto quanto custava
matá-lo” (ver A
Grande Guerra foi, afinal, um Grande Piquenique?).
A
contabilização das vítimas destes quatro anos e três meses aponta para cerca de
10 milhões de soldados mortos, 20 milhões de soldados feridos e cerca de 8
milhões de mortos civis.
1918: Gripe pneumónica
O
ano de 1918 pode ser
visto como ambivalente do ponto de vista da dicotomia mirabilis/horribilis:
por um lado foi o ano em que terminou a carnificina da I Guerra Mundial, mas por
outro foi o ano em que se declarou a
pandemia de gripe pneumónica.
Ponderando
o armistício de 1918 com a vantagem da visão retrospectiva, sabemos que a paz
alcançada foi insatisfatória: algumas tensões geopolíticas ficaram por resolver
e foram criadas novas razões de agravo e algumas condições impostas pelos
vencedores criaram terreno propício à germinação de rancores pela parte dos
derrotados – e foi assim que, 20 anos após o término da “guerra para acabar com
todas as guerras”, a Europa se viu outra vez a ferro e fogo. Por outro lado, é preciso considerar que a gripe
pneumónica faria mais vítimas em cerca de dois anos – Fevereiro de 1918
a Abril de 1920 – do que a guerra em cerca de quatro anos: as estimativas
oscilam entre 17 e 100 milhões de mortos, com a maioria das estimativas a cair
entre os 20 e os 40 milhões.
A gripe pneumónica tirou partido de o
mundo do início do século XX estar servido por uma rede de transportes bem mais
eficaz e rápida do que as dos séculos precedentes e de a guerra mundial em
curso obrigar à constante movimentação de centenas de milhares de soldados a
longas distâncias e ao seu aquartelamento em condições de máxima proximidade e
mínimas condições de higiene – condições ideais para a propagação de uma nova
doença infecto. Vale a pena
lembrar que 1918 foi também o ano em que ganhou intensidade e abrangência
geográfica a Guerra Civil Russa, que se iniciara com a Revolução
Bolchevique de Outubro de 1917 e que opôs o Exército Vermelho a uma
confederação desconexa de facções com diversos credos políticos e motivações,
que também se guerreavam entre si.
Para aumentar a confusão, o conflito envolveu também regiões russas com
aspirações independentistas, senhores da guerra sem outro objectivo para lá da
glória e do enriquecimento pessoal e uma constelação de uma trintena de
potências estrangeiras (que tendiam a apoiar quem quer que lutasse contra os
bolcheviques). Este emaranhado de conflitos arrastou-se até 1923 e
destruiu a estrutura produtiva e as infra-estruturas do país, contribuindo
decisivamente para agravar os efeitos da seca de 1921, que levou a uma fome
generalizada em 1921-22, que terá causado cinco milhões de mortos. Somando a estes os 4 milhões de mortos da guerra
propriamente dita,
1933: O NSDAP chega ao poder
Em 1933
não ocorreu nenhuma catástrofe
tonitruante: não se registou uma erupção vulcânica maciça ou um sismo de grande
intensidade e os conflitos entre nações limitaram-se a escaramuças entre
Colômbia e Peru, que disputavam uma remota parcela de impenetrável floresta
amazónica, e entre Bolívia e Paraguai, que disputavam uma região semi-árida e
despovoada conhecida como Gran Chaco. A economia e a sociedade estavam a
braços com a Grande Depressão, mas nos EUA, o presidente Franklin Roosevelt, que tomara posse a 4 de Março de 1933, implementara
um vasto e vigoroso conjunto de medidas de revitalização da economia e de apoio
aos mais desfavorecidos, que conseguiu pôr a economia americana novamente no
caminho ascensional.
O
evento que leva a classificar 1933 como annus horribilis parece, visto de longe, apenas um episódio
corriqueiro de jogo político num regime parlamentar em funcionamento regular:
um político conservador desejava, a qualquer custo, ser chefe de Governo, mas o
Presidente da República, também ele conservador, rejeitou a sua pretensão,
alegando, com razão, que o dito político não dispunha do apoio do número
necessário de deputados no parlamento. O político conservador propôs
então ao Presidente que desse posse a um governo de coligação formado por um
partido conservador e por um partido populista de extrema-direita. Nesta
proposta de governo, a grande maioria das pastas e o cargo de vice-chanceler
cabiam aos conservadores, ficando os populistas com apenas duas pastas, mas com
o cargo de chanceler. A ideia desagradou ao presidente, que não tinha confiança
no líder populista de extrema-direita – uma criatura estridente, quezilenta,
inflamada por convicções messiânicas e que se tornara conhecido pelos seus
discursos de ódio contra minorias étnicas, alicerçados em teorias conspirativas
– e até jurara que, enquanto fosse presidente, o histriónico político nunca
seria chanceler. Porém, o
político conservador argumentou que o seu parceiro de governo era, sob a sua
postura agressiva e bombástica, um pobre tolo, e que seria capaz de manipulá-lo e de domesticar o
seu radicalismo, pelo que o presidente acabou por aceder, relutantemente, a que
o governo de coligação tomasse posse, o que ocorreu a 30 de Janeiro.
Um
detalhe, que se revelaria muito relevante, na constituição do governo de
coligação entre o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães
(NSDAP, na sigla alemã) e os conservadores do Partido Popular Nacional Alemão
(DNVP, na sigla alemã) é que o NSDAP fizera questão de ficar com as duas pastas
relativas à Administração Interna. O cargo de Ministro do Interior
da Prússia, confiado a Göring, entregava a este o controlo das principais forças
policiais do país e, embora, teoricamente, o Ministro do Interior da Prússia
estivesse subordinado ao Reichskomissar para a Prússia, cargo que Franz von
Papen acumulava com o de vice-chanceler, na prática Göring agiu sem prestar
contas a este. Não satisfeito com o controlo das forças policiais
regulares, Göring criou a categoria de “polícia auxiliar” (Hilfspolizei),
que foi integralmente preenchida com 50.000 “camisas castanhas” (pertencentes
às SA, a milícia nazi). Quando, a 27 de Fevereiro, um incêndio consumiu
o edifício do Reichstag, Hitler
atribuiu o sinistro a uma conspiração
comunista, fez aprovar um decreto que suspendeu as liberdades civis e iniciou a
perseguição à oposição – e o controlo nazi das forças policiais foi crucial
para a implementação destas acções.
A
tomada do poder pelos nazis foi consolidada com a dissolução do parlamento e a
convocação de novas eleições, a 5 de Março, que (com a ajuda da violência e
intimidação exercidas pelas milícias nazis durante a campanha eleitoral) se
traduziram no crescimento do NSDAP e na estagnação ou queda de todos os outros
partidos. O domínio do NSDAP ficou ainda mais confortável com a expulsão do
Reichstag de todos os 81 deputados eleitos pelo seu opositor mais tenaz, o
Partido Comunista Alemão (KPD), e com a prisão de 24 dos 130 deputados eleitos
pelo Partido Social-Democrata (SPD). A 24 de Março, com o apoio do NSDAP, do
DNVP, dos católicos do Zentrum e dos restantes pequenos partidos conservadores,
num total de 444 votos favoráveis, e tendo como votos contrários apenas os 94
deputados remanescentes do SPD, o governo de Hitler viu aprovada a Lei de
Concessão de Plenos Poderes.
A nova lei permitiu a Hitler governar
sem necessidade de ouvir o Reichstag e sem estar limitado pela constituição,
deixando-o, menos de dois meses depois de ter tomado posse como chanceler, com
as mãos livres para assumir o controlo absoluto da máquina do Estado e eliminar
qualquer forma de oposição – na verdade, dois dias antes da aprovação da Lei de
Concessão de Plenos Poderes, já entrara em funcionamento, em Dachau, o primeiro
campo de concentração nazi, concebido originalmente para albergar prisioneiros
políticos, mas que acabaria por receber todo o tipo de pessoas julgadas
indesejáveis pelos nazis.
Franz
von Papen, o político astuto que julgara ser capaz de manobrar Hitler e amansar
as suas inclinações radicais, viu, a 10 de Abril, os nazis extinguirem o seu
cargo de Reichskomissar para a Prússia, que passou para as mãos de Göring,
com o novo título de Ministerpräsident. O papel de Papen como vice-chanceler foi ficando cada vez mais
esvaziado, o que tentou contrariar, em Maio de 1934, pressionando o agonizante
(e também cada vez mais irrelevante) presidente Paul von Hindenburg a redigir e
assinar um testamento político que repunha o poder de Papen e dos conservadores
– e que não produziu efeito algum. Quando
da Noite das Facas Longas (um “ajuste de contas” dentro do NSDAP, visando, em
particular, a liderança das SA), entre 30 de Junho e 2 de Julho de 1934, o
gabinete de Papen foi devassado e pilhado pelas SS, três colaboradores seus
foram executados sumariamente e o próprio vice-chanceler foi colocado sob
prisão domiciliária. Quando foi libertado, alguns dias depois, e se
dirigiu à chancelaria, descobriu que já não tinha lugar nas reuniões do
gabinete e apresentou a demissão. Hitler aceitou-a e o cargo de vice-chanceler
foi extinto.
O
presidente Hindenburg faleceu a 2 de Agosto de 1934 e, sem perder tempo, Hitler promoveu um referendo, a 19 de Agosto,
perguntado aos alemães se desejavam que os cargos de presidente e de chanceler
fossem fundidos num só – 90% dos votantes responderam que sim. Com a
ajuda de “idiotas úteis” como como Papen, Hitler era agora o senhor absoluto da Alemanha.
Com
o mundo ainda a braços com a Grande Depressão e com os países europeus preocupados com a ascensão
dos nazis na Alemanha, poucos
terão dado pelo que, em 1933, se passava na Ucrânia. Stalin, o senhor absoluto da URSS, estava determinado a reformar de alto a baixo a
estrutura da economia soviética e, no início dos anos 30
desinvestiu da produção agrícola em favor da indústria pesada e promoveu a
colectivização forçada da agricultura, que, naturalmente, suscitou o
antagonismo dos proprietários rurais.
A deportação de 5 milhões de kulaks, isto é “camponeses ricos”,
aniquilou, de forma brutal, parte da resistência, mas nalgumas regiões, como a
Ucrânia e o Cazaquistão, os pequenos proprietários continuaram a opor-se à
colectivização, pelo que Stalin decidiu submetê-los pela fome: embora o ano agrícola tivesse sido pouco pujante, em
resultado da falta de chuva, os camponeses ucranianos foram confrontados com a
imposição de quotas de produção irrealistas, que seria impossível cumprir mesmo
no mais generoso dos anos, e com a requisição pelo Estado de grandes
quantidades de cereais. O resultado foi que, embora 1932-33 tenha sido um
período de fome em toda a URSS, esta manifestou-se com muito maior intensidade
na Ucrânia, onde terá causado entre
3.5 e 7.5 milhões de vítimas.
As fomes generalizadas foram
recorrentes na história russa (e na do resto do mundo), mas a fome de 1932-33
na Ucrânia foi diferente: foi uma fome “artificial”, criada deliberadamente
pelo regime soviético para eliminar a resistência à colectivização da
agricultura e para suprimir as aspirações independentistas que a Ucrânia tinha
alimentado desde a Revolução Bolchevique. Mesmo sem conflitos bélicos ou
catástrofes naturais grande envergadura, o ano de 1933 foi, indubitavelmente,
um dos mais sinistros da história.
1939: II Guerra Mundial
Há
historiadores, com indisfarçado apreço pela extrema-direita, que defendem que,
até 1 de Setembro de 1939, quando a Alemanha invadiu a Polónia, o regime nazi
foi “um regime como outro qualquer”. Não
é verdade: o regime nazi entre 1933 e 1939 não
poderia, em caso algum, confundir-se com uma democracia e tinha diferenças assinaláveis
em relação aos outros regimes autoritários de direita que emergiram na Europa
no período entre guerras (Espanha,
Portugal, Grécia, Jugoslávia, Polónia, Hungria, Estados Bálticos, Roménia,
Bulgária, para lá, claro, de Itália, que fora
pioneira).
Desde
que ascendera ao poder, Hitler
retirara a Alemanha da Sociedade das Nações, galvanizara os alemães com as suas
arengas coléricas sobre a necessidade de vingar as afrontas sofridas após a
derrota na I Guerra Mundial, conquistar “espaço vital” (Lebensraum) e arranjar
uma solução para o “problema judaico”; inculcara
nas massas (e em particular nos jovens) um espírito militarista,
ultra-nacionalista, racista e fanático; pusera em prática um amplo programa de
rearmamento, contornando ou atropelando as limitações estabelecidas pelo
Tratado de Versailles; redireccionara a economia alemã de forma ficar ao
serviço do esforço de guerra; reocupara
zonas desmilitarizadas; e multiplicara as exigências territoriais, as pressões
e as ameaças sobre os países vizinhos (e, como bully que era, garantia
sempre que a exigência em questão era a derradeira que faria).
Somando
esta conjugação de actuações com o tenebroso programa explanado em Mein
Kampf, seria fácil deduzir que,
independentemente dos esforços de apaziguamento/contenção empreendidos pela
Grã-Bretanha e pela França, a Alemanha desencadearia uma guerra de conquista,
mais cedo ou mais tarde.
O que era menos fácil de prever,
antes de Setembro de 1939, é que essa guerra seria conduzida pelos nazis com
uma crueldade, desumanidade e ausência de escrúpulos inauditas, o que, aliado a
um extraordinário progresso na tecnologia bélica, explica que, ao longo de seis
anos, a II Guerra Mundial tenha causado cerca de 60 milhões de mortos (20
milhões de soldados e 40 milhões de civis).
Todas
as guerras correm o risco de incluir, por força do stress, da erosão dos
padrões éticos e de uma escalada de represálias entre beligerantes, vários
episódios bárbaros, mas a guerra que os alemães iniciaram em 1939 distingue-se
por a
barbárie ter sido longamente premeditada, meticulosamente planeada e
sistematicamente exercida. Veja-se o caso da invasão da Polónia: foi a
primeira acção da guerra e os alemães (e os soviéticos) esmagaram os polacos
com facilidade; e, todavia, ainda os combates não tinham cessado e já estava em
curso a Operação Tannenberg, um programa de extermínio sistemático das elites
polacas (militares, políticos, intelectuais, professores), que estavam
identificadas numa lista de 60.000 nomes que a Gestapo começara a compilar em
1937. A Operação Tannenberg não foi uma represália ou uma reacção extemporânea,
era consequência natural da mundividência racista, desapiedada e hegemónica dos
nazis.
1958: Grande Salto em Frente
Se
alguma coisa distingue os regimes ditatoriais de extrema-esquerda dos de
extrema-direita, não é certamente o respeito pela vida e dignidade humanas, que
ambos desprezam e consideram uma ficção criada por intelectuais burgueses de
coração mole: é que as ditaduras de extrema-direita tendem a cultivar um expansionismo
agressivo e a trucidar os povos vizinhos, enquanto as ditaduras de
extrema-esquerda tendem a causar mais mortos entre os seus. Dos muitos desmandos e erros grosseiros cometidos por Mao
Tse-Tung, nenhum foi tão catastrófico como
o Grande Salto em Frente, que pretendia converter uma China agrária em que a
maioria da população vivia como na Idade Média, numa nação industrial de
primeira linha, apenas pela força de decretos.
A colectivização forçada da
agricultura, a tentativa de fazer nascer uma indústria siderúrgica em cada
comunidade rural, a construção de sistemas de irrigação ineptamente planeados e
ainda mais ineptamente construídos, a campanha de extermínio de pardais (que
visava proteger as colheitas, mas acabou por potenciar as pragas de insectos,
produzindo o resultado inverso) e uma
série de medidas igualmente arbitrárias e/ou obtusas, resultaram numa forte
quebra da produção de cereais, que passou de 200 milhões de toneladas em 1958
para 144 milhões em 1960. Como se, por
si só, este decréscimo não fosse terrível para um país que há séculos vivia no
limiar da subsistência, em 1959, Mao, recusando-se a aceitar o
fracasso dos seus planos e num gesto de bravata para com o mundo, O resultado
deste insensato programa que se estendeu até 1962 foram cerca de 15 a 55
milhões de mortes por subnutrição, o que faz dele o mais mortífero episódio de
fome da história da humanidade. O que o
diferencia de outros episódios de fome de grande magnitude é que esses tiveram
origem, essencialmente, em causas naturais (tempo invulgarmente seco, chuvoso
ou frio), eventualmente agravadas pela inoperância ou indiferença dos
governantes, enquanto a Grande Fome Chinesa de 1959-61 foi obra da
estupidez, malevolência e incompetência do governo chinês e do seu Grande
Timoneiro.
Kofi Annan, secretário-geral da ONU, num discurso a 21 de Dezembro, declarou que “não há
dúvida de que este foi um ano particularmente difícil e estou aliviado por
este annus horribilis estar a chegar ao fim”. A afirmação é enigmática, pois
2004 não tinha registado nenhum conflito ou desastre natural de grandes
proporções e tem sido interpretada como uma alusão não ao estado do Mundo (como
se esperaria de um secretário-geral da ONU), mas a acusações de corrupção ao
seu filho, Kojo, que estaria envolvido no desvio de fundos do programa da ONU
Petróleo por Alimentos. Porém, é pouco prudente fazer balanços do ano antes
de este ter chegado ao seu termo e, cinco dias depois, 2004 revelar-se-ia efectivamente horribilis, quando um
sismo submarino com epicentro a norte de Sumatra, seguido de tsunami, causou
228.000 mortos e 1.7 milhões de desalojados nas costas do Índico, com os
efeitos a fazerem sentir-se tão longe quanto Madagáscar e o Yemen.
Nem
todos os eventos funestos são notados nas suas manifestações iniciais, pois só
produzem consequências muitos anos depois – é disso exemplo a criação, a 4 de
Fevereiro de 2004, por dois estudantes da Universidade de Harvard, de um
website destinado a exibir os perfis dos estudantes do Harvard College que se
registassem. A versão anterior do website, surgida em 2003 e visando o
apuramento dos elementos mais sexy do corpo discente, tinha sido encerrada pela
administração da universidade, por envolver quebras de segurança e violação de
privacidade, mas o novo website, por só apresentar perfis de quem se inscrevia,
não teve esses problemas e cresceu rapidamente em popularidade, de forma que, em
Março, já se estendera às universidades de Columbia, Stanford e Yale. Em Setembro de 2006, saltou para fora do mundo
universitário e tornou-se acessível a qualquer pessoa com mais de 13 anos e a
empresas e em 2008 alcançou um milhão de utilizadores – em Julho de 2020
registava 2700 milhões de utilizadores activos.
A
extraordinária popularidade deste formato de interacção “social” mediada pela
Internet, levou ao aparecimento de “redes” análogas e, hoje, o Facebook
(é dele que falamos) tem a concorrência do WhatsApp (2000 milhões de
utilizadores), WeChat (1200 milhões), Instagram (1160 milhões), TikTok (690
milhões), Weibo (520 milhões), Snapchat (430 milhões), Pinterest (420 milhões)
ou Twitter (250 milhões).
Ao promover o egocentrismo, o narcisismo, a vaidade, o consumismo, a
superficialidade, a reacção impulsiva e indignada, a “mentalidade de rebanho”,
o tribalismo e a proliferação de teorias conspirativas e de turbas de
linchamento digital, e ao constituir-se como fonte privilegiada para obtenção
de dados pessoais que são postos ao serviço da manipulação política e
comercial, as redes (ditas) sociais são hoje uma das mais poderosas forças dissolventes
da Humanidade – e tudo começou em 2004 com um inócuo website destinado a
facilitar o “engate” entre estudantes universitários.
2020: Covid-19
O
primeiro paciente infectado com um doença causada por um tipo de coronavírus
novo para a ciência foi identificado a 1 de Dezembro de 2019, pelo que, quando,
a 11 de Fevereiro de 2020, a OMS conferiu nome oficial à doença, associou-a a
2019 – todavia, a pandemia só se manifestou em 2020 e é a este ano que ficará
associada. 2020 também teve incêndios florestais de gigantescas proporções na
Austrália e na Costa Oeste dos EUA e uma escaramuça entre a Arménia e o
Azerbaijão em torno do enclave de Nagorno-Karabakh; as guerras civis na Síria,
Líbia e Yemen prosseguiram em lume brando e começou uma nova na Etiópia; a
temporada de furacões no Atlântico registou um número recorde de 31 tempestades
tropicais (13 dos quais atingiram o estatuto de “furacão”), o que levou ao
esgotamento dos nomes começados por letras do alfabeto latino e obrigou a
recorrer ao alfabeto grego para baptizar o resto da temporada. Porém, para quem
não foi afectado directamente por estes eventos, é claro que a razão para
considerar 2020 annus horribilis é a pandemia de covid-19.
Na
coluna positiva do balanço de 2020, é provável que um pouco mais de metade dos
americanos e a grande maioria dos habitantes do resto do mundo que acompanham a
política internacional coloquem o resultado das eleições presidenciais
americanas. Não tanto a vitória de Joe Biden, mas a derrota de Donald Trump, e
não tanto por, no confronto ideológico entre Republicanos e Democratas, estarem
inequivocamente com os segundos, mas por uma questão de carácter, já que Trump,
revelando um entendimento estritamente pessoal e narcísico do seu cargo, nunca
esteve à altura deste (na verdade, comportou-se mais como um decadente
imperador romano) nem revelou outro interesse do que a perpetuação no poder, se
necessário à custa do atropelo das instituições democráticas americanas, da
revogação unilateral de compromissos internacionais e do envenenamento das
relações dos EUA com o resto do mundo (incluindo os seus aliados). Porém, a
derrota do mais autocrático, errático e incompetente presidente americano das
últimas décadas não pode ser inscrita como um saldo integralmente positivo, já
que a polarização da sociedade, o radicalismo, a intolerância e as teorias
conspirativas e atoardas que promoveu incansável e despudoradamente ao longo de
quatro anos não serão apagados magicamente a 20 de Janeiro de 2021.
Um exercício de história alternativa
Quanto
à covid-19, a sombra que projecta pode tornar-se menos opressiva se se fizer o
exercício de a colocar na perspectiva histórica: se fosse ela a ter surgido em
1918, no lugar da gripe pneumónica, o mundo de então não lhe teria dado grande
atenção. Por um lado porque, naquela época, a esperança média de vida à
nascença era de 35 anos (média global), oscilando entre pouco mais de 50 anos
nos países desenvolvidos e 25 anos na Índia, o que significa que a covid-19
encontraria poucas pessoas com mais de 70 anos, que são as suas vítimas
preferenciais (recorde-se que a esperança média de vida global é hoje de 72
anos, com a maior parte dos países desenvolvidos a exceder os 80 anos). Por outro lado, em 1918, a subnutrição estava muito
mais difundida do que a obesidade, que é um dos principais factores de risco da
covid-19. Na verdade,
a obesidade generalizada é um
problema tão recente que é difícil encontrar dados sobre ela anteriores à
década de 1960, mas não tem cessado de aumentar vertiginosamente desde então:
nos EUA, a prevalência da obesidade nos adultos em 1962 era de 13%, em 2002
era de 33% e em 2018 de 42% (com a obesidade grave a representar 9%), o que
leva a que, actualmente, morram por ano 300.000 americanos devido a problemas
de saúde associados à obesidade. A nível global, a OMS estima que
ocorram 2.8 milhões de mortes/ano devido à obesidade, enquanto a contagem de vítimas da covid-19 se aproxima
de 1.8 milhões – a obesidade é, feitas as contas, uma pandemia mais mortífera
do que a covid-19, mas, como a percepção de risco pelo cidadão comum é
gravemente enviesada, não causa “alarme social” nem sequer é percebida como um
problema.
Outro factor de peso que levaria a que a comoção causada pela covid-19 em 1918 fosse
reduzida tem a ver com a atitude da sociedade perante a morte: em 1918, não só
a morte de alguém com 75 ou 80 anos era encarada com fatalismo, como a Europa
estava a sair de uma guerra que, durante mais de quatro anos, trucidara sem
remorso a fina-flor dos seus jovens – matando 10 milhões e ferindo 20 milhões,
como se referiu acima – sem que as massas esboçassem um gesto de oposição a
esta carnificina vã.
Para
mais, em 1918 a ciência médica encontrava-se num estádio incipiente e embora a
existência de vírus já fosse postulada, passariam ainda alguns anos até que o
desenvolvimento do microscópio electrónico os tornasse visíveis; os primeiros
medicamentos anti-virais apenas surgiram na década de 1960 e seriam precisas
muitas décadas mais até que se ganhasse a capacidade de sequenciar o genoma dos
vírus e de criar testes para identificar a sua presença. Uma vez que não seria possível detectar o SARS-CoV-2
através de testes e que a maioria dos infectados não apresentaria sintomas ou
manifestaria sintoma muito ligeiros, indistinguíveis dos que estão associados a
constipações e gripes, as autoridades de saúde de 1918 não teriam noção da
propagação do vírus na comunidade, nem seriam capazes de apurar quais das
mortes nos escalões mais idosos se deveriam à covid-19 ou a outras doenças.
Atendendo
a que as mortes por covid-19 seriam relativamente poucas numa sociedade cuja
pirâmide etária que afunilava fortemente a partir dos 70 anos, é pouco provável
que os governos e as autoridades de saúde de há 100 anos se dispusessem a
combater a doença impondo medidas de confinamento ou de restrição à circulação
e menos provável ainda seria que os cidadãos as acatassem ou as adoptassem por
sua iniciativa, pelo que o funcionamento da sociedade e da economia
prosseguiria sem grandes alterações. Assim, a covid-19 espalhar-se-ia
rapidamente por todo mundo e a “imunidade de grupo” seria atingida ao fim de pouco tempo. A
“factura” desta “Imunidade de grupo” seria uma mortalidade acrescida nos
escalões etários mais idosos, pois a medicina de 1918 seria completamente
impotente para tratar a covid-19 – também os ventiladores e outros sistemas de
suporte de vida estavam ainda muito distantes no tempo e o desenvolvimento de
uma vacina poderia exigir muitas décadas de investigação –, mas estas mortes
seriam vistas como inevitáveis e aceites com resignação. Felizmente, a valoração da vida humana e, em
particular, da vida dos elementos mais idosos da sociedade, alterou-se
drasticamente nos últimos 100 anos e as sociedades e a opinião pública de hoje
(sobretudo nos países mais desenvolvidos e mais democráticos) tornaram-se muito
menos tolerantes à morte, advenha ela de doenças, guerras ou catástrofes
naturais – daí que boa parte da sociedade de 2020 tenha aceite restringir a
sua liberdade de circulação a fim de defender a saúde dos mais vulneráveis.
Os últimos 100 anos também trouxeram progressos formidáveis nas ciências
médicas, pelo que, apenas um ano após a primeira ocorrência registada da
covid-19, foi possível criar, testar e fazer entrar em produção em massa uma
mão cheia de vacinas diferentes, que, nalguns países, já começaram a ser
administradas. É uma perspectiva que ajuda a tornar menos lúgubre o
ano de 2020.
COMENTÁRIOS:
Maria Carreira: Muito bom. Aprendi e relembrei
muito. Parabéns. Paulo Alves: Artigo espectacular e verdadeiramente interessante,
obrigado! João Massano: Excelente texto, muito obrigado! A reflexão final sobre os efeitos
potenciais da COVID-19 na sociedade de 1918 está muito bem delineada, assim
como a mudança de mentalidade ao longo do tempo relativamente à
"tolerância" social à morte nas faixas etárias mais elevadas.
Parabéns! Pedro Queirós:
Excelente. Os
meus parabéns. Enriqueci e muito os meus conhecimentos históricos.
A súmula final é
brilhante. Obrigado Y H W H:
2020: não foi certamente... atente-se
aos números estimados para os anos de peste negra na idade média, ou para os
anos das grandes guerras do século XX, ou para os longos e mortíferos conflitos
europeus anteriores ao século XX, ou para 1755... José Afonso: É tempo de aprender, pois a
pandemia do Covid19 é leve face ao que poderia ter ocorrido ou poderá ocorrer
futuramente noutras pandemias.
bento guerra: A diferença é que, desta vez, são os governantes que deitam as suas
próprias economias para baixo. Talvez porque temos "três graças" a
mandar na Europa
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