Que
importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao
fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao
ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Mas desta vez, não para valorizar os
ruídos e a matéria da civilização moderna que tão estridentemente os cria, mas para
justificar a apatia de todo um povo face à sua própria língua propositadamente destruída,
não pelo povo iletrado mas pelos senhores aparentemente da nossa cultura, no
intuito de a simplificar e expandir, democraticamente por esse povo iletrado, ou
sabujamente, na subserviência por outros povos mais ricos, de idêntica esfera
linguística, e que se estão marimbando para isso, outras as suas preocupações
em relação às suas próprias línguas vicejantes.
Mas sim, Maria
do Carmo Vieira, tem toda a razão no seu manifesto intitulado «A Língua Portuguesa também deveria interessar aos
candidatos à Presidência». Manhosamente, por indiferença ou ignorância, tanto dos
entrevistadores como dos entrevistados, a questão não é abordada nas
entrevistas – e se fosse também passaria despercebida, na apatia descrente dos
ouvintes. Salvo das pessoas como Maria
do Carmo Vieira, para quem essa é questão fulcral, pela indignidade
que o tal AO representa, como ela tão bem esclarece, mas que
afinal não aquenta nem arrefenta, habituados que estamos a isso - à indignidade.
OPINIÃO
A Língua Portuguesa também deveria
interessar aos candidatos à Presidência
Será uma
exigência a discussão da Língua Portuguesa e do AO 90 nos vossos debates, caros
candidatos à Presidência da República. Os Portugueses, de quem se dirão
representantes, desejam-na.
MARIA DO CARMO
VIEIRA
PÚBLICO, 10 de
Janeiro de 2021
Todos
os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos objectivamente sobre actos do
Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Governo e outras
autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos. N.º 2 do Artigo
48.º da Constituição
Em
qualquer eleição que se realize, não há candidato que não justifique a sua
candidatura, invocando o desejo de bem servir o país e o povo, ou que não
alerte e incentive para a necessidade de, em democracia, ser benéfica a
intervenção dos cidadãos por que forma de a sustentar e fortalecer. Palavras
que conduzem ao significado etimológico de Política e que é, ou não, do
conhecimento dos candidatos. Inicialmente, congratulámo-nos com a bondade
dessas palavras, depois conhecemos a desilusão, mas na complexidade que
caracteriza todo o ser humano, apesar de desiludidos, incitamo-nos continuamente
a teimar, a recomeçar, como uma espécie de sobrevivência espiritual.
Redigido
o preâmbulo, dirijo-me agora a todos os candidatos presidenciais cujos
encontros a dois já se iniciaram nas televisões, em princípio, para que os
cidadãos conheçam as suas ideias relativamente aos vários temas que
caracterizam e tecem a vida de uma sociedade. Relevante será o papel dos
jornalistas que moderam os debates e a quem se exige conhecer e estar atento a
esses temas essenciais: saúde, educação, cultura, trabalho, migração,
economia, política externa, etc.
Forçosamente,
incidirá a minha atenção sobre a Língua Portuguesa, património privilegiado em
duas áreas íntimas entre si – Educação e Cultura – que são substanciais no
desenvolvimento de um país e na formação espiritual dos seus cidadãos. Duas mais-valias que não podem ser interpretadas na
perspectiva do lucro imediato, mas a médio e a longo prazos. Assim acontece com
a Natureza que
requer tempo para criar e que o Homem tem destruído, com uma rapidez
estonteante, movido pela ganância do lucro rápido, bem evidente na proliferação
de culturas intensivas e na construção desenfreada, com a consequente
destruição da biodiversidade e da extinção de espécies (serra de Carnaxide,
barragens a eito para depois serem vendidas ou aeroportos sem um sério estudo
de impacto ambiental …), numa miríade de exemplos que poderiam ser
identificados.
Mencionar a Língua Portuguesa,
património identitário que “gerações dos nossos maiores” pacientemente trabalharam, enriqueceram e valorizaram,
implica forçosamente pensar na sua ortografia, relíquia que nos conta a
história das múltiplas influências geográficas e linguísticas, ao longo dos
tempos. Uma ortografia que disputas políticas, negociatas, sucessivas
aventuras e irresponsabilidades várias têm vindo a lesar impunemente. E
chegamos ao cerne da questão: o Acordo Ortográfico de 1990 que
nos foi imposto e cuja discussão nunca foi abertamente feita, com a lamentável
cumplicidade da Comunicação Social, na sua generalidade, que se tem recusado
abordar o tema quando nesse sentido contactada.
Senhores candidatos à
Presidência da República, tendo
em conta os ideais democráticos que vos orientam, ou deveriam orientar, e o
respeito pela Constituição, no dever de defesa e de preservação do nosso património
cultural (artigo 78.º, n.º 1) em que se integra a Língua Portuguesa, será
intolerável que não discutam, nos debates em que intervirão, e a par de outros
temas, a polémica que se arrasta há anos relativamente ao AO 90
(independentemente de serem a favor ou contra) e cujas nefastas consequências
são visíveis no dia-a-dia, com uma repercussão fortemente negativa na qualidade
do Ensino e da Cultura. São
indesmentíveis a instabilidade e o caos que este acordo trouxe, e não há quem
não os presencie, seja na aplicação dos hífens ou na existência das
facultatividades ou na supressão de acentos, ou nas novas palavras, como
“receção” ou “conceção”… que em flagrante contrariam a impossível “unidade
ortográfica” ou ainda na avalancha diária de “corrutos”, “sutis”, “núcias”,
“patos”, “impatos”, “contatos”, “convição”, “batérias”, “infeciologia”,
“fatos”, “putrefato”, “manânimo”, exemplos que se desdobram numa listagem
infindável de palavras inventadas que a Associação Portuguesa de Tradutores,
entre outros, tem rigorosamente registado. A própria pronúncia das palavras
está a ser atingida por esta voracidade e por isso mesmo ouvimos amiúde, na
televisão e na rádio, a euforia de “infeção” (com a vogal fechada) e
“infeciologia” (aqui com o “e” aberto, mas falhando um “c”, ao arrepio das
próprias regras deste acordo que o mantém porque “pronunciado”).
Tendo
ainda em conta que:
Os portugueses são, na sua maioria,
contrários a este AO, e manifestaram-se não só na Petição “Manifesto contra o Acordo
Ortográfico”, cujo primeiro signatário foi Vasco Graça Moura, e que
entre 2008 e 2009 reuniu mais de 120 mil assinaturas, mas também na Iniciativa
Legislativa de Cidadãos Contra o Acordo Ortográfico (ILC-AO),
entregue na AR em Abril de 2019, com mais de 21 mil assinaturas, sendo os
sucessivos atrasos e adiamentos na sua discussão inaceitáveis, mesmo tendo em conta
o ano atípico que se viveu em 2020;
Os próprios mentores do AO 90, do
lado português e brasileiro, afirmaram, respectivamente, “ser sensível”, entre
outros aspectos polémicos, “à não acentuação do verbo parar, admitindo o recuo”
- Prof. Malaca Casteleiro, e Evanildo Bechara que “O Acordo ortográfico não
[tem] condições para servir de base a uma proposta normativa, contendo
imprecisões, erros e ambiguidades” (2008);
A opção pelo “critério da pronúncia”,
que subjaz a este AO 90, não é científica e põe em causa o carácter normativo
da ortografia, traduzindo igualmente um evidente menosprezo pela vertente
etimológica, como se pode verificar no texto da “Nota Explicativa ao Acordo
Ortográfico de 1990”;
O processo desenvolvido pelo poder
político ignorou a totalidade dos pareceres negativos de especialistas e
entidades consultadas pelo Instituto Camões (25 em 27), relevando-se os
pareceres muito críticos da Direcção-Geral de Educação do Ensino Básico e
Secundário (1990) e o da Associação Portuguesa de Linguística (2005) cujo
conteúdo só foi desvendado aos portugueses, em 2008, e porque solicitado;
O parecer da Comissão Nacional de Língua Portuguesa
(CNALP) ao anteprojecto do AO (1989) foi arrasador. Órgão consultivo do
Governo, estranhamente foi extinto em 1992. Era seu presidente o Professor Vítor
Aguiar e Silva que então afirmou: “Há pontos escandalosos do ponto de vista técnico-linguístico, como o
da facultatividade ortográfica, que coloca grandes problemas de natureza
pedagógico-didáctica.” Insigne estudioso da Cultura, da Língua e da
Literatura Portuguesas, Aguiar e Silva recebeu a edição do Prémio
Camões de 2020 tendo afirmado: “O novo
acordo ortográfico tem normas que necessitam urgentemente de uma revisão. A sua
aplicação resulta numa língua desfigurada nas suas raízes latinas e românicas”;
A história do processo relativo ao AO
90, desenvolvida com a participação activa de Governos e da Assembleia da
República, deveria ser honestamente recontada. Não só o Tratado
Internacional foi gravemente ferido no seu conteúdo com a aprovação do Segundo
Protocolo Modificativo (2004), definindo a
entrada em vigor do AO 90 com a ratificação de apenas 3 Estados, em lugar dos 7 anteriormente apontados,
como é inadmissível a confusão de datas que baralham diferentes momentos do
processo. Para uma melhor compreensão dos dois aspectos mencionados,
aconselha-se a leitura de dois artigos
do jornalista Nuno Pacheco que, rigorosa e aturadamente, se tem envolvido nesta
causa: “A ortografia do português e a estranha história do
prédio pintado de roxo” e “Querem datas giras para duvidar
da validade do Acordo Ortográfico? Aqui vão algumas”.
Creio,
na base do que enumerei, repetindo vozes em número infindável, que será uma
exigência a discussão deste tema, nos vossos debates, caros candidatos à
Presidência da República. Os Portugueses, de quem se dirão representantes,
desejam-na. Termino com palavras de António Emiliano, conhecendo as nefastas
experiências dos professores com o uso forçado do AO 90 e certa de que serão
também motivo de reflexão:
“A
ortografia não é apenas património cultural do Povo português […] é a
ferramenta que dá acesso a todas as áreas do saber. A estabilidade ortográfica
é um bem que importa preservar: pôr em causa a estabilidade ortográfica é
atentar contra a qualidade do ensino, contra a integridade do uso da língua e
contra o desenvolvimento cultural e científico do povo português.”
Professora
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