Por estar viva, após a
passagem pelo túnel, pelo seu testemunho e alerta, como sempre
objectivos e lúcidos, pela sua gratidão aos nossos
médicos e ao nosso Serviço
Nacional de Saúde, a quem estou igualmente grata, por motivos vários de
saúde familiar - pelo que procurei na Internet a notícia sobre o SNS, que coloco no fim, para que lhe
conheçamos os inícios.
Uma história extraordinária esta, de Isabel do Carmo, a que não faltou o suspense, nem a
seriedade, nem a ironia, habituais na ilustre lutadora, nem os seus achegas
políticos, de quem sabe mais. Obrigada, Isabel
do Carmo. Todos devíamos lê-la. E meditar – também para irmos
prevenidos, se nos chegar a vez.
Notícias do túnel
A médica ISABEL DO CARMO esteve
internada dez dias com covid-19 em Santa Maria. Este é o seu testemunho, que é
também um alerta e um gesto de reconhecimento.
ISABEL DO CARMO
PÚBLICO,
29 de Janeiro de 2021
Eu, médica, observadora diferenciada, estive internada com o
diagnóstico de covid-19 durante dez dias nas enfermarias do Hospital
de Santa Maria e penso
que o meu testemunho pode servir de alerta e de um enorme reconhecimento. Alerta para o risco real e actual
(rastrear e confinar é preciso). E dar graças à vida pela existência do nosso
SNS.
Estive
a trabalhar e a ver doentes até ao dia 23 de Dezembro, com todo o cuidado, e
não foi por aí que o vírus entrou. No
dia 24, juntámo-nos seis adultos e três crianças e, apesar das máscaras e das
distâncias, alguma imprudência abriu por momentos a porta ao invisível.
Contaminámo-nos todos e, fiados na falsa segurança do teste simples, alguns de
nós multiplicaram o contágio. Os mais jovens mantiveram a sua energia
transbordante, os de idade intermédia tiveram muitos sintomas, mas trataram-se
em casa, os mais velhos reagiram de acordo com os factores de risco. E foi
assim que ao décimo dia de febre e outras queixas o meu colega do Centro de
Saúde me ordenou, e bem, que fosse à urgência covid. Se não tivesse ido
tinha morrido e esse é o primeiro alerta a manifestar.
Há um momento, determinado empiricamente, em que se conclui, por
estatística, que é assim. Não vale a pena correr contra as probabilidades.
Claro que foi muito incómodo, muito frio, muito desaconchegado, esperar por ser
chamada no pequeno telheiro improvisado no piso das entradas. Fica melhor quem está dentro das
ambulâncias, que têm suporte de oxigénio e macas ou cadeiras. Esta condição de
espera, este ponto de entrada, seria possível melhorar fisicamente? Talvez. Mas os doentes chegam e não podem ser
mandados para trás. Seria possível desviar um meteorito que caísse em cima das
nossas cabeças? Só para os encartados e teóricos comentadores, que, eles, preveriam
tudo.
Resolveu-se: agora temos o hospital
de campanha. Todavia,
foi por ali que me salvei. Quando finalmente dei entrada no Covidário, ganhei
direito a um cadeirão, a uma máscara de oxigénio e à segurança de ter entrado
no circuito. Desde esse momento fui sempre a senhora Isabel, idêntica a todos
os outros e nunca, e bem, a médica da casa. Algumas
horas depois entrei numa box, com WC e uma porta com grande janelão de vidro.
As dimensões comparei-as com outras de outras “boxes” de há muitos anos.
Idênticas, mas o janelão e o calor humano pertencem a outro universo.
Fiz então uma TAC num dispositivo colocado no Covidário. E é aí o
extraordinário. Nunca ao
longo de tantos anos de clínica tive conhecimento de tal quadro – os meus pulmões estavam infiltrados de
alto a baixo e dos dois lados com múltiplos focos de inflamação, que não
deixavam o oxigénio atravessar os alvéolos e passar para o sangue, onde ele é
necessário à vida. Sintomas?
Poucos. Mas lá estava o oxímetro a mostrar níveis baixos. Aqui
reside um grande risco. Esta “hipoxemia
feliz” mata. Assim
morreu o pai de uma colega minha com 50% de saturação e poucos sintomas. Foi, a
partir do nada ou da experiência inicial da China, que os protocolos foram
sendo estabelecidos. De
madrugada saí do Covidário e fui rapidamente internada nas enfermarias covid,
Medicina 2C. Fizeram-me aquilo que está protocolado que se faça: oxigénio,
corticóides, broncodilatadores, antibiótico se necessário. Para os meus companheiros de enfermaria, alguns
hemodialisados, diabéticos, transplantados, cada protocolo era diferente. No
mesmo piso, para além da porta de separação havia mais enfermaria covid, havia
a zona dos intensivos e havia a zona dos intermédios com
máscara permanente de oxigénio, onde
ficou o Carlos Antunes e donde partiu para sempre no dia 19 de
Janeiro.
Aquilo a que assisti de serenidade, de
eficácia, de competência, ficará para sempre marcado como um momento muito alto
da minha vida. Sei que as pessoas todas juntas não somam inteligências,
multiplicam. É um
fenómeno que faz parte da natureza humana, assim a humanidade sobreviveu.
Observei a entrada regular e harmoniosa das assistentes operacionais, dos
enfermeiros, dos fisioterapeutas, dos jovens médicos internos e das chefes
seniores. Cada um sabe o gesto que tem que fazer, o equipamento em que tem que
mexer, o registo necessário, a colheita de sangue a horas, a administração do
medicamento. E… sabe também informar. Explica o que vai fazer e porquê.
Os meus colegas não estão desesperados, nem aflitos, estão
profundamente preocupados, esgotados também. Quando lançam o alarme cá para
fora não é um pedido de socorro para eles. É dizer que só o confinamento
melhora o problema. E há uma linha vermelha que percorre este chão e é móvel –
a das mortes evitáveis
O meu conhecimento dos espaços das urgências cresceu comigo
organicamente. Fiz urgências nos bairros pobres de Lisboa, fiz no Hospital do Barreiro
actos clínicos que não passavam pela cabeça de uma miúda de vinte e poucos
anos, antes da classificação de Manchester andei de papel na mão a fazer
triagem na sala de espera, vi crescer o Serviço de Observações das Urgências de
Santa Maria com a Teresa
Rodrigues a decidir os gestos urgentes. E lá continua ela a
salvar gente. Sofri com os “directos” e culpabilizei-me. Vi o Carlos França instalar finalmente os
Cuidados Intensivos.
Vi tudo? Não. Não vi nada. Porque
bastou o ano de 2020 e o inimigo ultra invisível para perceber que há uma coisa
que de facto é um “milagre”: a capacidade de auto-organização, rápida,
eficaz, criativa, serena. Era possível fazer tudo isto com requisição civil?
Tenho dúvidas. É a cultura que está para trás que explica o “milagre”.
Com
as minhas amigas enfermeiras conversávamos por vezes sobre os “territórios”. Pois
o milagre também desenhou territórios. Quer isto dizer que reina a paz nos
serviços de urgência do Serviço Nacional de Saúde? Não. Esta onda organizada de
espaços e de recursos humanos palpita como um corpo que pede respiração. O director da
Medicina, Lacerda,
vai buscar enfermarias a todo o lado possível, converte serviços e adapta-os. A Sandra Brás supervisiona como um arcanjo os vários espaços e
equipamentos covid-19. Os
meus colegas dos Cuidados Intensivos, com 85% de lotação, estão no limite, ou seja, na zona das necessárias e
rápidas escolhas. Estes doentes não são pneumonias habituais. Têm mais demora
de cama (quanta?), têm uso de equipamentos que não existiam antes.
Os meus colegas não estão desesperados, nem aflitos, estão
profundamente preocupados, esgotados também, a situação é dinâmica, é preciso
fazer opções técnicas. Quando lançam o alarme cá para fora não é um pedido de socorro
para eles. É dizer que só o confinamento melhora o problema. É explicar que
quanto mais infectados, mais sintomáticos. Entre estes aumentam os de risco e
quanto mais risco mais cuidados intensivos. E há uma linha vermelha que
percorre este chão e é móvel – a das mortes evitáveis.
Na
minha enfermaria, por sinal toda de afrodescendentes, senti no mais fundo da
noite que alguém abandonava a Montanha Mágica. Com serenidade. Sem obstinação.
É também uma escolha. No dia seguinte a animada Inalda, assistente operacional de São Tomé (já sou
efectiva!), a enfermeira Ana, a
enfermeira Marta, nos doentes
o Sr. C. que ficou
meu amigo e é de Cabo Verde, a Dona
A., de Luanda, o Sr. D.
que também é de Luanda e já venceu
muitas coisas, corpos que já foram desejados, já se reproduziram, são a
humanidade que ali está. A médica de Medicina Interna, Dra. Patrícia
Howell Monteiro, que ainda
foi contratada em exclusividade (2008/2009?), é o pilar sólido e sustentável
que orienta o Henrique Barbacena, o Renato e o Francisco, que hão-de fazer o exame da especialidade
proximamente. Para onde
irão? O Renato está a
sofrer nos cuidados intensivos, a dar o máximo. O Henrique é também professor de Farmacologia, tive o privilégio
que me explicasse coisas sobre vírus. E ausculta à velha maneira,
como eu. Conseguimos ter um momento para
conversar e a propósito da vida e do ultra invisível contou-me como lera
apaixonadamente a Estranha ordem das coisas, do Damásio, livro que a chefe Patrícia lhe ofereceu.
Há muitos anos, o António Damásio
também foi da nossa incubadora, o Hospital de Santa Maria. E, a
propósito, eu e o Henrique conversámos sobre a dinâmica da vida, a necessidade
de não fazer classificações mecanicistas. E
reganhei a grande esperança do aviso da tal frase do Abel Salazar: “Um médico que só sabe Medicina, então não
sabe Medicina.” Estes sabem Medicina e são uma das estruturas do SNS.
Médica, professora da Faculdade de
Medicina de Lisboa, membro do grupo Estamos do Lado da Solução
Médica; professora da Faculdade de Medicina de Lisboa;
activista política
COVID-19 SAÚDE HOSPITAIS MEDICINA SERVIÇO
NACIONAL DE SAÚDE MÉDICOS ENFERMEIROS
NOTA DA INTERNET:
Saiba como
nasceu o Serviço Nacional de Saúde e quais os desenvolvimentos dos últimos 40
anos
No dia 15 de Setembro de 1979 foi publicada, em Diário da República,
a Lei nº 56/79 que criou o Serviço Nacional de Saúde (SNS), concretizando o
direito à protecção da saúde, a prestação de cuidados globais de saúde e o
acesso a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e
social, nos termos da constituição.
Nos últimos 40 anos, o SNS gerou ganhos em saúde que colocaram Portugal num
lugar cimeiro no que se refere à qualidade de vida de milhões de cidadãos e
reduziu muitas das desigualdades na sociedade portuguesa.
Ao longo destas quatro décadas, Portugal manteve-se entre os países da OCDE
com menores taxas de internamento por problemas de saúde sensíveis aos cuidados
de saúde primários e à diminuição da incapacidade permanente. Temos assistido
ao aumento da esperança de vida saudável à nascença para homens e mulheres, à
diminuição da percentagem de pessoas que consideram não ter as suas
necessidades de saúde satisfeitas, bem como ao aumento da percentagem de
portugueses que classificam a sua saúde como boa ou muito boa.
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