sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Parabéns, Isabel do Carmo

 

Por estar viva, após a passagem pelo túnel, pelo seu testemunho e alerta, como sempre objectivos e lúcidos, pela sua gratidão aos nossos médicos e ao nosso Serviço Nacional de Saúde, a quem estou igualmente grata, por motivos vários de saúde familiar - pelo que procurei na Internet a notícia sobre o SNS, que coloco no fim, para que lhe conheçamos os inícios.

Uma história extraordinária esta, de Isabel do Carmo, a que não faltou o suspense, nem a seriedade, nem a ironia, habituais na ilustre lutadora, nem os seus achegas políticos, de quem sabe mais. Obrigada, Isabel do Carmo. Todos devíamos lê-la. E meditar – também para irmos prevenidos, se nos chegar a vez.

Notícias do túnel

A médica ISABEL DO CARMO esteve internada dez dias com covid-19 em Santa Maria. Este é o seu testemunho, que é também um alerta e um gesto de reconhecimento.

ISABEL DO CARMO

PÚBLICO, 29 de Janeiro de 2021

Eu, médica, observadora diferenciada, estive internada com o diagnóstico de covid-19 durante dez dias nas enfermarias do Hospital de Santa Maria e penso que o meu testemunho pode servir de alerta e de um enorme reconhecimento. Alerta para o risco real e actual (rastrear e confinar é preciso). E dar graças à vida pela existência do nosso SNS.

Estive a trabalhar e a ver doentes até ao dia 23 de Dezembro, com todo o cuidado, e não foi por aí que o vírus entrou. No dia 24, juntámo-nos seis adultos e três crianças e, apesar das máscaras e das distâncias, alguma imprudência abriu por momentos a porta ao invisível. Contaminámo-nos todos e, fiados na falsa segurança do teste simples, alguns de nós multiplicaram o contágio. Os mais jovens mantiveram a sua energia transbordante, os de idade intermédia tiveram muitos sintomas, mas trataram-se em casa, os mais velhos reagiram de acordo com os factores de risco. E foi assim que ao décimo dia de febre e outras queixas o meu colega do Centro de Saúde me ordenou, e bem, que fosse à urgência covid. Se não tivesse ido tinha morrido e esse é o primeiro alerta a manifestar.

Há um momento, determinado empiricamente, em que se conclui, por estatística, que é assim. Não vale a pena correr contra as probabilidades. Claro que foi muito incómodo, muito frio, muito desaconchegado, esperar por ser chamada no pequeno telheiro improvisado no piso das entradas. Fica melhor quem está dentro das ambulâncias, que têm suporte de oxigénio e macas ou cadeiras. Esta condição de espera, este ponto de entrada, seria possível melhorar fisicamente? Talvez. Mas os doentes chegam e não podem ser mandados para trás. Seria possível desviar um meteorito que caísse em cima das nossas cabeças? Só para os encartados e teóricos comentadores, que, eles, preveriam tudo.

Resolveu-se: agora temos o hospital de campanha. Todavia, foi por ali que me salvei. Quando finalmente dei entrada no Covidário, ganhei direito a um cadeirão, a uma máscara de oxigénio e à segurança de ter entrado no circuito. Desde esse momento fui sempre a senhora Isabel, idêntica a todos os outros e nunca, e bem, a médica da casa. Algumas horas depois entrei numa box, com WC e uma porta com grande janelão de vidro. As dimensões comparei-as com outras de outras “boxes” de há muitos anos. Idênticas, mas o janelão e o calor humano pertencem a outro universo. Fiz então uma TAC num dispositivo colocado no Covidário. E é aí o extraordinário. Nunca ao longo de tantos anos de clínica tive conhecimento de tal quadro – os meus pulmões estavam infiltrados de alto a baixo e dos dois lados com múltiplos focos de inflamação, que não deixavam o oxigénio atravessar os alvéolos e passar para o sangue, onde ele é necessário à vida. Sintomas? Poucos. Mas lá estava o oxímetro a mostrar níveis baixos. Aqui reside um grande risco. Esta “hipoxemia feliz” mata. Assim morreu o pai de uma colega minha com 50% de saturação e poucos sintomas. Foi, a partir do nada ou da experiência inicial da China, que os protocolos foram sendo estabelecidos. De madrugada saí do Covidário e fui rapidamente internada nas enfermarias covid, Medicina 2C. Fizeram-me aquilo que está protocolado que se faça: oxigénio, corticóides, broncodilatadores, antibiótico se necessário. Para os meus companheiros de enfermaria, alguns hemodialisados, diabéticos, transplantados, cada protocolo era diferente. No mesmo piso, para além da porta de separação havia mais enfermaria covid, havia a zona dos intensivos e havia a zona dos intermédios com máscara permanente de oxigénio, onde ficou o Carlos Antunes e donde partiu para sempre no dia 19 de Janeiro.

Aquilo a que assisti de serenidade, de eficácia, de competência, ficará para sempre marcado como um momento muito alto da minha vida. Sei que as pessoas todas juntas não somam inteligências, multiplicam. É um fenómeno que faz parte da natureza humana, assim a humanidade sobreviveu. Observei a entrada regular e harmoniosa das assistentes operacionais, dos enfermeiros, dos fisioterapeutas, dos jovens médicos internos e das chefes seniores. Cada um sabe o gesto que tem que fazer, o equipamento em que tem que mexer, o registo necessário, a colheita de sangue a horas, a administração do medicamento. E… sabe também informar. Explica o que vai fazer e porquê.

Os meus colegas não estão desesperados, nem aflitos, estão profundamente preocupados, esgotados também. Quando lançam o alarme cá para fora não é um pedido de socorro para eles. É dizer que só o confinamento melhora o problema. E há uma linha vermelha que percorre este chão e é móvel – a das mortes evitáveis

O meu conhecimento dos espaços das urgências cresceu comigo organicamente. Fiz urgências nos bairros pobres de Lisboa, fiz no Hospital do Barreiro actos clínicos que não passavam pela cabeça de uma miúda de vinte e poucos anos, antes da classificação de Manchester andei de papel na mão a fazer triagem na sala de espera, vi crescer o Serviço de Observações das Urgências de Santa Maria com a Teresa Rodrigues a decidir os gestos urgentes. E lá continua ela a salvar gente. Sofri com os “directos” e culpabilizei-me. Vi o Carlos França instalar finalmente os Cuidados Intensivos. Vi tudo? Não. Não vi nada. Porque bastou o ano de 2020 e o inimigo ultra invisível para perceber que há uma coisa que de facto é um “milagre”: a capacidade de auto-organização, rápida, eficaz, criativa, serena. Era possível fazer tudo isto com requisição civil? Tenho dúvidas. É a cultura que está para trás que explica o “milagre”.

Com as minhas amigas enfermeiras conversávamos por vezes sobre os “territórios”. Pois o milagre também desenhou territórios. Quer isto dizer que reina a paz nos serviços de urgência do Serviço Nacional de Saúde? Não. Esta onda organizada de espaços e de recursos humanos palpita como um corpo que pede respiração. O director da Medicina, Lacerda, vai buscar enfermarias a todo o lado possível, converte serviços e adapta-os. A Sandra Brás supervisiona como um arcanjo os vários espaços e equipamentos covid-19. Os meus colegas dos Cuidados Intensivos, com 85% de lotação, estão no limite, ou seja, na zona das necessárias e rápidas escolhas. Estes doentes não são pneumonias habituais. Têm mais demora de cama (quanta?), têm uso de equipamentos que não existiam antes.

Os meus colegas não estão desesperados, nem aflitos, estão profundamente preocupados, esgotados também, a situação é dinâmica, é preciso fazer opções técnicas. Quando lançam o alarme cá para fora não é um pedido de socorro para eles. É dizer que só o confinamento melhora o problema. É explicar que quanto mais infectados, mais sintomáticos. Entre estes aumentam os de risco e quanto mais risco mais cuidados intensivos. E há uma linha vermelha que percorre este chão e é móvel – a das mortes evitáveis.

Na minha enfermaria, por sinal toda de afrodescendentes, senti no mais fundo da noite que alguém abandonava a Montanha Mágica. Com serenidade. Sem obstinação. É também uma escolha. No dia seguinte a animada Inalda, assistente operacional de São Tomé (já sou efectiva!), a enfermeira Ana, a enfermeira Marta, nos doentes o Sr. C. que ficou meu amigo e é de Cabo Verde, a Dona A., de Luanda, o Sr. D. que também é de Luanda e já venceu muitas coisas, corpos que já foram desejados, já se reproduziram, são a humanidade que ali está. A médica de Medicina Interna, Dra. Patrícia Howell Monteiro, que ainda foi contratada em exclusividade (2008/2009?), é o pilar sólido e sustentável que orienta o Henrique Barbacena, o Renato e o Francisco, que hão-de fazer o exame da especialidade proximamente. Para onde irão? O Renato está a sofrer nos cuidados intensivos, a dar o máximo. O Henrique é também professor de Farmacologia, tive o privilégio que me explicasse coisas sobre vírus. E ausculta à velha maneira, como eu. Conseguimos ter um momento para conversar e a propósito da vida e do ultra invisível contou-me como lera apaixonadamente a Estranha ordem das coisas, do Damásio, livro que a chefe Patrícia lhe ofereceu. Há muitos anos, o António Damásio também foi da nossa incubadora, o Hospital de Santa Maria. E, a propósito, eu e o Henrique conversámos sobre a dinâmica da vida, a necessidade de não fazer classificações mecanicistas. E reganhei a grande esperança do aviso da tal frase do Abel Salazar: “Um médico que só sabe Medicina, então não sabe Medicina.” Estes sabem Medicina e são uma das estruturas do SNS.

Médica, professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, membro do grupo Estamos do Lado da Solução

Médica; professora da Faculdade de Medicina de Lisboa; activista política

COVID-19  SAÚDE  HOSPITAIS  MEDICINA  SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE  MÉDICOS  ENFERMEIROS

 

NOTA DA INTERNET:

Saiba como nasceu o Serviço Nacional de Saúde e quais os desenvolvimentos dos últimos 40 anos

No dia 15 de Setembro de 1979 foi publicada, em Diário da República, a Lei nº 56/79 que criou o Serviço Nacional de Saúde (SNS), concretizando o direito à protecção da saúde, a prestação de cuidados globais de saúde e o acesso a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social, nos termos da constituição.

Nos últimos 40 anos, o SNS gerou ganhos em saúde que colocaram Portugal num lugar cimeiro no que se refere à qualidade de vida de milhões de cidadãos e reduziu muitas das desigualdades na sociedade portuguesa.

Ao longo destas quatro décadas, Portugal manteve-se entre os países da OCDE com menores taxas de internamento por problemas de saúde sensíveis aos cuidados de saúde primários e à diminuição da incapacidade permanente. Temos assistido ao aumento da esperança de vida saudável à nascença para homens e mulheres, à diminuição da percentagem de pessoas que consideram não ter as suas necessidades de saúde satisfeitas, bem como ao aumento da percentagem de portugueses que classificam a sua saúde como boa ou muito boa.

 

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