sábado, 23 de janeiro de 2021

Mais uma lição com humor

 

Mais uma lição com humor

E amor, sem dúvida. De Jaime Nogueira Pinto, que oxalá continue a esclarecer-nos, amando-nos assim, à falta de outras armas de correcção…

A festa da Democracia / premium

Podem ser os socialistas e as esquerdas aliadas que nos governam mas são “os fascistas” os culpados de todos os males portugueses, passados, presentes e futuros.

JAIME NOGUEIRA PINTO, Colunista do Observador

OBSERVADOR, 22 jan 2021

Mais que uma escolha – que, aparentemente, está feita –, a eleição presidencial de Domingo vai ser uma sondagem geral à opinião pública portuguesa para avaliar o sentido actual da sua percepção político-ideológica (se é que de percepção “político-ideológica” pode agora falar-se). Embora as sondagens valham o que valem, o voto de protesto vá contar e a abstenção no meio desta muito maltratada e mal gerida Pandemia possa ser uma incógnita perturbadora e perturbante, o mais certo é que o actual Presidente seja reeleito à primeira volta.

As esquerdas festivas

Por isso, neste “tempo de reflexão”, para educar e exercitar a percepção político-ideológica e espairecer dos vírus que nos atormentam, nada como uma boa comédia, como a que vi recentemente.

A Festa, um filme de 2017, de Sally Potter, com um elenco excepcional, é uma divertida charge ao pensamento correcto chique e menos chique. Ao vê-lo, não pude deixar de pensar nas várias esquerdas que por aqui andam. Não falo das pessoas – embora seja quase só disso que agora se fala ou possa falar, tão pobres são as ideias, ou melhor, a falta delas, e tão estreito e rasteiro é o verdadeiro espaço de debate –, falo da cartilha delirante e simplista que, sob a capa de sofisticação intelectual, se apresenta como ideário único e inquestionável.

Ora, melhor ou pior, já existiram ideias em Portugal e na política portuguesa – à esquerda, à direita e até ao centro. Salazar tinha ideias e convicções políticas; Cunhal também; Soares, à sua maneira, tinha um ideário; e mesmo nos partidos do Centrão havia ideias; bem como nas múltiplas extremas-esquerdas – estalinistas, trotskistas, maoístas, utópico-depressivas, utópico-esfusiantes –, ainda que fossem ideias que, caso vingassem, acabariam por transformar este rectângulo numa espécie de Albânia onde, na melhor hipóteses, nos internariam num campo de concentração do tamanho de dez Tarrafais para sermos endoutrinados na boa-nova marxista-leninista e podermos depois morrer em paz, já devidamente seviciados, arrependidos e confessados.

Nesses tempos de albânicas possibilidades, cheguei a imaginar para mim um futuro como bibliotecário de Peniche, depois de reeducado num qualquer Lager, isto no mais benigno dos cenários, num regime comunista moderado, estabilizado e brando, assim ao modo do Leste europeu em fim de ciclo. Agora a reeducação faz-se ao domicílio e, de preferência, sem livros nem ideias.

Porque as extremas-esquerdas, aparentemente, já não as têm, ou esqueceram-nas: esqueceram Lenine, Mao, Estaline, Trotsky, até Gramsci e  Marcuse. Mas continuam a deter a verdade e a ter uma agenda. Uma agenda de causas aparentemente pequenas, benignas e inócuas mas uma agenda. E uma agenda “antifascista” – sendo o fascismo um conceito/insulto/arma de arremesso infinitamente elástico, definido ao minuto e à la carte para ser usado contra todo e qualquer “herege”. Também, não há como censurá-los: não podem ser anticapitalistas, porque já não há capital em Portugal; não podem ser antieuropeus, porque é da Europa que vêm as vacinas e há-de vir a Bazuca com os ansiados dinheiros; não podem sequer ser anti-socialistas, porque os contornos do socialismo que nos governa são imprecisos e fugidios e porque são os socialistas que distribuem o tempo de antena e o dinheiro e abrem espaço às suas agendas fracturantes.

Então o que são? São anti-populistas, anti-racistas, anti-machistas, anti-homofóbicos, anti-transfóbicos, enfim, “antifascistas”. Podem ser os socialistas e as esquerdas aliadas que nos governam mas são “os fascistas” os culpados de todos os males portugueses, passados, presentes e futuros, os responsáveis últimos por tudo o que, entre nós, correu mal, corre mal e pode correr ainda pior.

Os falecidos ex-mestres das extremas-esquerdas – Estaline, Mao, Trotsky – jazem esquecidos, um com os seus campos de concentração, outro com os seus Saltos em Frente, o último com aquele fascinante comboio blindado que aparece no Dr. Jivago e no Reds. São, evidentemente, coisas do passado. Trotsky escrevia bem (“A Minha Vida” é um grande livro de Memórias) e eram belos os seus ideais… subsidiariamente também nos mataria a todos, se nos apanhasse a jeito, como fez aos Russos Brancos e aos “desviacionistas”, mas isso pouco importa porque isso já lá vai. Já lá vai, diluído na fluidez de género, de identidade e de pertença, num mundo de infinita tolerância e consumo; um mundo de todas as cores e de mãos dadas, em que a saltitante vida animal é consagrada e a morte humana encorajada (para quê ver sofrer e socorrer e acompanhar quem sofre, quando se lhes pode dar “um direito”?).

Mas se o leninismo, o estalinismo, o maoismo, o trotskismo  estão mortos e enterrados e deles ficaram só as flores, o fascismo permanece com todos os seus espinhos e horrores – todos e mais alguns.

E as Direitas?

Politique d’abord, dizia Charles Maurras, intelectual e político da direita nacionalista e tradicionalista que renovou o pensamento conservador na Europa Ocidental nos princípios do século XX. Mas não há política sem ideias e, em Portugal, tem havido poucas – também pela despolitização que o Estado Novo incutiu às direitas portuguesas, pela importação, depois do 25 de Abril, de um liberalismo economicista anglo-saxónico como alternativa ao socialismo herdado do PREC, e por outros males que vêm de longe, como o deslumbramento e seguidismo das elites. Assim, a Direita tende a responder ao agressivo folclore correcto das esquerdas ora com uma contrição cooperante, ora com um basismo e um primarismo que podem justificar-se – e justificam-se – numa fase de denúncia e de protesto, mas que terão de ser corrigidos e endireitados para que os resultados políticos sejam consequentes. Ou seja, o protesto, a antítese, terá de progredir para a síntese, e depressa.

Porque há um pensamento de direita, nacional e euro-americano, com base nos valores do cristianismo, do patriotismo, da família, da propriedade dentro da justiça social e do bem comum; o de uma direita nacional e social, aberta em economia mas justicialista e solidária.

E se a Direita quiser alguma vez voltar a ter poder, terá de seguir (politicamente e não pessoalmente) o lema pas d’ennemis à Droite, pas d’amis à Gauche. Excluindo, bem entendido, desse “à Droite”, os verdadeiramente racistas, os paranóicos, os loucos das teorias da conspiração, os suspeitos do costume, que existem em todas as latitudes. Os da esquerda, dada a raiz puritana e totalitária dos “socialismos reais”, a reivindicação do monopólio da verdade e da vida intelectual e a capacidade dissuasora da reductio ad Hitlerum, concentram a sua paranóia inquisitória na diabolização do inimigo – elaborando eternamente sobre aquilo a que o Dr. Cunhal, por táctica calculada, chamava “o nazi-fascismo de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar”, como se fosse tudo a mesma coisa. Os da direita, infelizmente, mais à semelhança dos da antiga esquerda, concentram a sua paranóia autofágica no inimigo interno, nos outros da “sua direita” ou nos das “outras direitas” – nos traidores, nos desviacionistas, nos cobardes, nos vendidos.

Hoje, mais do que nunca, a defesa da liberdade de pensar, falar e escrever tem de ser uma das causas primordiais e principais da Direita. Há bons exemplos na Europa: o Vox, aqui ao lado, ou os Fratelli d’Italia, de Giorgia Meloni.

Para agir, passado o tempo do protesto – e o protesto é fundamental e convém que fique bem vincado –, é preciso construir nas ideias e trazer ideias com asas, capazes de actuar na realidade, de ser práticas. E como dizia um filósofo francês do século passado, nada mais prático que uma boa teoria.

Votem bem e sem contágios.

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COMENTÁRIOS:

Paulo Guerra: Parece que o Fauci nos EUA também se sente como um libertado. Mas curiosamente parece que não é de Estaline. No século XXI, no ano da graça de 2021, continua a ser mais fácil falar de Estaline que de Trump para o JNP. Mais esclarecedor era impossível.            Leonardo d'Avintes > Paulo Guerra: Que alucinado! Comparar Trump a Estaline é de uma monstruosidade só justificável à luz da mais profunda ignorância, ou do mais puro fanatismo.       Paulo Guerra > Leonardo d'Avintes: Era mais uma questão de atualidade. Mas lá está, a alucinação é tanta...            Graciete Madeira: Brilhante texto.          Isabel Santos: Com tantos casos diários, como é que não prepararam as coisas, para quem testou positivo depois do dia 17 poder votar. É isto uma democracia? Ou será que dá jeito a alguém? É vergonhoso e não entendo como é que nenhum jornalista fala disto!           Rui Jacinto: Com o respeito natural por um analista politico, também naturalmente sei mais da vida influenciada por os políticos. Não só na idade, sobretudo na vivência. Os políticos, quais fazedores da história, tentam moldar a sociedade a seu jeito, só que não há forma de o fazer. Mário Soares sofreu as agruras do desterro em São Tomé, eu sei, havia a guerra do Biafra, eu estava lá, na Pousada, ele um pouco masa à frente, mas ambos comíamos os camarões da roça e íamos a banhos na baía azul. A grande diferença é que eu começava a trabalhar às 7:30 e não dormia a sesta. 30 anos depois eu reclamava no DN as tropelias de Sócrates na Expo98 e continuava a trabalhar 50 horas por semana e não ter direito a sesta. Isto para dizer que há diferentes formas de viver a democracia, e eu sou mais feliz do que os políticos, com uma vantagem, não vivi de cunhas ou de sacos azuis. Reclamam agora os Socialistas da postura de Ventura, mas só existe André Ventura porque o Povo tem vergonha de um Primeiro Ministro mentiroso que faz alastrar o roubo e compadrio como nunca antes, nem mesmo no tempo de Salazar ou Caetano.            Joaquim Moreira: De facto, a democracia é uma festa! Que serve muito bem a quem à pala dela vive bem. E neste particular, a esquerda tem muitas lições a dar. Não conheço nenhum defensor do socialismo e do comunismo que, sem nenhum desdém, não queira salvar o que tem. Sem que para tal tenha muito que se esforçar. Já, devo confessar, tenho visto muito militante de direita que se farta de trabalhar, para ter algum bem ao luar. Pelo que, com o devido respeito pela teoria e por Jaime Nogueira Pinto em particular, estou convencido que estas pessoas, de quem estou a falar, estão pouco preocupadas em teorizar. O que é muito diferente das elites, de esquerda e de direita, que se sabem muito bem aproveitar. Por isso, sendo dos que gosta de teorizar, acredito, ou melhor, quero acreditar, que o mais importante é mesmo educar. A maioria das pessoas a pensar, para não se deixarem enganar, por quem se diz de esquerda ou de direita, conforme o que está a dar. Até porque muitos vivem e viveram no mesmo lar. À espera da sua oportunidade para "governar", ou seja, para do poder todo o proveito tirar. Não é o caso de Jaime Nogueira Pinto, que muito admiro, defendendo que continue a teorizar, para muitos ensinar!          Paulo Alexandre: Podem ser os socialistas e as esquerdas aliadas que nos governam mas são “os fascistas” os culpados de todos os males portugueses, passados, presentes e futuros... JNP a fazer de conta que desconhece os efeitos estruturais e de longa duração, exercidos sobre a cultura de um povo (normas, valores, tradições, perspectivas, posições, atitudes, comportamentos, etc.) por parte de certos instrumentos ideológicos (políticos, confessionais, económicos, sociais, etc.), efeitos esses que perduram nos processos de socialização, na consciência dos indivíduos e nas práticas sociais dos mesmos! JNP sabe que sabe aquilo a que eu me tenho referido! Mas também sabe que a esmagadora maioria dos seus leitores não sabe isso e que olham para a realidade social e cultural como uma "coisa natural" e não como aquilo que é, uma "coisa artificial"; que encaram essa realidade como uma "essência" quando, em boa verdade, é um "produto". Um produto produzido por alguns e imposto a muitos com a máxima perversidade de conseguir que aqueles muitos que "reproduzem" o "produto", encarem o dito cujo como "a natureza das coisas". “A violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita daqueles que a sofrem e também, frequentemente, daqueles que a exercem na medida em que uns e outros são inconscientes de a exercer ou de a sofrer”. (Pierre Bourdieu) “O que denomino de violência simbólica ou dominação simbólica, ou seja, formas de coerção que se baseiam em acordos não conscientes entre as estruturas objectivas e as estruturas mentais”. (Pierre Bourdieu) Muitos mortos que se encontram enterrados há décadas ou mesmo séculos, estão bem vivos, continuando passear-se no meio de nós, enquanto impõem critérios moralistas sobre a forma como uma mulher se deve vestir ou que partes do corpo pode esta desnudar em público, sobre a forma como dois seres humanos podem ou não manifestar os seus sentimentos em público um pelo outro (se for um homem e uma mulher, como mandam as tradições e as regras da santa madre Igreja, podem andar de mão dada, podem beijar-se e até podem acariciarem-se em público... se forem duas mulheres ou dois homens...), sobre a socialmente injusta forma como a riqueza nacional é distribuída, sobre as desigualdades no acesso à Educação ou à Saúde, etc, etc..            Fernando Manuel Almeida: A esquerda no seu conjunto dá um excelente exemplo do que é a "ética republicana", como a da primeira república-  cada um para seu lado, na maior anarquia, na maior incoerência estratégica, ou melhor, sem estratégia nenhuma para alcançar um bom resultado. Um saco de gatos canhotos que pode bem dar origem a um enorme dissabor político. Se o resultado de André Ventura fôr superior ao de Ana Gomes, está o "baile armado" e apolítica portuguesa pode entrar numa espiral de grande instabilidade. Os políticos portugueses não aprendem nada com os erros históricos do passado e depois vêm a terreiro dizer que os alunos não podem ficar sem aulas porque lhes faz muita falta. Se for para aprenderem o mesmo que aprenderam os candidatos da esquerda à presidência da República, mais vale não irem à escola.            Alberto Pereira:: Excelente texto. Obrigado Professor Nogueira Pinto!        Zé Costa: Mais uma vez brilhante Dr. JNP. Obrigado.          Carminda Damiao: Excelente texto. Parabéns.          josé maria: Segundo a mais recente sondagem da Universidade Católica, se a eleição legislativa fosse hoje, o PS voltaria a ganhá-la, de forma destacada, com 39% dos votos e, juntamente com as esquerdas aliadas, daí resultaria novamente o predomínio parlamentar de toda a esquerda, com, pelo menos, 52% dos votos. Mas será que Jaime Nogueira Pinto ainda não entendeu as duas razões principais porque os portugueses continuam a manifestar a sua confiança na actual correlação de forças? A primeira razão: mesmo com todos os erros cometidos, o balanço é feito essencialmente entre 2015 e 2020 em comparação com o país que Passos nos deixou em 2015 e as trapalhadas da sua governação. Passos deixou de merecer confiança, Costa não. Rio não convence. São factos objectivos, que ninguém consegue refutar. A segunda razão: as direitas portugueses são tão más, tão más, que não conseguem constituir alternativa, minimamente credível ao actual governo. Devem ser as piores direitas do mundo e presumo que deva ser extremamente frustrante, a JNP, bater-se por elas.                 Pedro Ferreira > josé maria: Mas o Passos de Coelho ainda te deixa com as pernas a tremer senão não estavas a falar dele constantemente, nem inventavas tanta aldrabice. ……………………………….

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