Mais do que nunca, como o lagarto que continua a sê-lo, para além da cauda cortada, para relembrar Pessoa… Uma história universal sempre em movimento, cada vez mais urgente e insatisfeita … O que não acaba é a pena de morte em alguns países, horror dos horrores, numa era de aparência mais civilizada… João Diogo Barbosa e seus comentadores abrem pistas sobre as mudanças em perspectiva. Nós, desatentos…
A Europa que se perdeu /premium
A pergunta fundamental da Europa volta
a aparecer: é na entropia de Berlim ou no kitsch de Bruxelas que se resolve a
questão da identidade?
JOÃO DIOGO BARBOSA
OBSERVADOR, 31 dez 2020,
Em
1998, o jornal neerlandês NRC Handelsblad
recrutou o historiador Geert Mak
para viajar pela Europa e escrever sobre os efeitos do século XX nas suas
cidades. O trabalho foi um êxito local e os textos acabaram por ser
reunidos num livro nunca por cá editado, com o título “I Europe:
Travels Through the Twentieth Century”,
que rapidamente se tornou parte do cânone do sentimento europeísta.
A Europa que Mak encontrou era ainda uma tentativa de
ligar os pontos de um período brutal, onde a memória ocupava um espaço colossal
e incómodo. Esses
europeus já não se lembravam das vitórias que aquietaram os primeiros anos de
1900 e faziam o melhor para esquecer e construir por cima das tragédias que se
seguiram.
Naquele momento, a identidade
era um fardo; as melhores histórias da viagem são as que nos mostram como a
desilusão com as promessas do passado inclinou os países para a melancolia de
uma prosperidade sem rumo – ao
visitar Portugal, por
exemplo, Mak narra as intenções da revolução que entretanto se revelaram
tragicamente equivocadas e repara que “em
lado algum da Europa encontrei o Terceiro Mundo tão naturalmente presente como
aqui”.
Nas grandes capitais, o contraste do passado com o presente (sendo
que hoje ambos se lêem como parte do passado) é fonte de espanto. Em Viena, outrora a mais europeia das capitais, pouco
mais se passa além de uma forma de aborrecimento que agora se diria estrutural,
num arrastar impessoal e económico de vidas, que contrasta com o ambiente dos
cafés onde anos antes tinha nascido a ideia de Europa. O
espectro dessas crónicas, sempre presente mas raramente mencionado, é a União
Europeia.
Mak
é demasiado liberal para a criticar
no que importa e – como
qualquer adolescente que num interrail é poupado a dificuldades fronteiriças
– aponta-lhe sobretudo as vantagens do progresso, mas é
impossível ler esses relatos em 2020, encontrando as raízes dos problemas de
hoje, e não pensar em culpados. A perda
de propósito foi sempre uma ameaça séria à Europa e todas as tentativas de resposta parecem conduzir a um beco sem saída. Dizer que a União representa a “prosperidade” é
condená-la em tempos de crise económica e defender que se trata de uma “comunidade
de valores” (quais?) lembra-nos a atracção pelo abismo em quase
todos os Estados-membros. Não chega e não funciona.
A União
de hoje já não é pela globalização, pelos
mercados ou sequer pela prosperidade.
A ser alguma coisa, a União é agora por si, paranóica com a
sobrevivência e errada ao achar que ela se encontra nos seus gabinetes
climatizados.
Escrever nesta altura sobre
perda europeia implica falar do Brexit.
Resolvidas as negociações para o abandono pleno e “duro” do Reino Unido, a União
Europeia perde mais do que um grande Estado.
Numa
das passagens mais inspiradas do livro, Berlim é descrita como uma capital que nasceu tarde e tentou
compensar o tempo perdido ao tornar-se numa mistura arquitectónica da História
vizinha a que aspirava. Essa imagem serve a ideia romântica da Europa como
conjunto de partes, que unidas formam algo maior do que a sua soma.
A
realidade não foi por aí, com a fracção europeia de Bruxelas a tornar-se num
enxerto burocrático num país pacato, uma realidade paralela de alguns
arruamentos. A pergunta fundamental da Europa volta a aparecer: é na
entropia de Berlim ou no kitsch de Bruxelas que se resolve a questão da
identidade?
O
Reino Unido respondeu há quatro anos, destruindo a ideia de inviolabilidade da
União. A perda de um Estado-membro, no meio de uma perda de propósito, trouxe
os piores instintos do actual estado europeu, que se fechou sobre si para
tentar enfrentar o mundo.
Os britânicos decidiram que a
preservação da identidade é incompatível com a União Europeia. O tempo que passou desde o referendo deu-lhes
razão. Uma União cada vez mais centralizada e homogénea agrada a políticos e
comentadores, mas deixa os europeus com pouco. Numa
altura em que tanto da política é a luta por um propósito, a União continua
incapaz de permitir que uma resposta surja pela força que a afaste do centro. A
partir de amanhã perdemos também quem nos tentou avisar.
João
Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores
residentes do Café Europa na
Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e
Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00
e às 22h00.
CAFÉ EUROPA UNIÃO
EUROPEIA EUROPA MUNDO
COMENTÁRIOS:
Luis Teixeira-Pinto: Um acrescento: - rapidamente se perceberá que o Brexit foi uma tolice rematada e que o
Reino Unido tem de voltar ao berço original. Talvez noutros moldes, mas voltará. O isolamento (já
não há Império) e a falta de "massa" crítica, retiram qualquer
hipótese ao RU na disputa de
um lugar de comando na cena mundial. Talvez não seja tempo perdido, pois pode
obrigar a repensar a Europa, que obviamente necessita de arrepiar caminho. Luis Teixeira-Pinto: Um texto interessante, bem estruturado, mas curto
quanto a mim. Falta falar nos propósitos, nos objectivos, há que apresentar,
e abrir à discussão, alguma coisa no plano da geoestratégica. E esta, apesar da
incomodidade que pode por vezes suscitar, impõe-se pela necessidade de encarar
o mundo na sua globalidade e nas suas especificidades. Que mundo
poderemos ter daqui a 50 anos? De que modo é que a Europa se posicionará nesse mundo, que será, se nada for
feito, bipolar e onde a Europa
terá um papel menos que secundário?
Senão vejamos: - De um lado estarão indiscutivelmente os EUA, ainda, apesar das suas muitas contradições
internas, que terão a capacidade (ponto discutível, mas que admito como de
partida) de orientar e dirigir o bloco americano, de Norte a Sul, e com ele
gizar um mundo feito de complementaridades e de vantagens mútuas. Do outro lado, o bloco asiático, liderado
pela China mas onde também a Índia se
apresentará como a grande potência que já é, os dois, e seus satélites, em
associação forçada, querendo eu dizer com isto, que a necessidade de afirmação
e de disputa de um forte lugar na cena mundial imporá com pragmatismo a ideia
de que mais vale estar a favor do que contra. Ou seja, China e Índia dificilmente entrarão em confronto, apesar de não
terem quaisquer afinidades. Dominará nesse bloco asiático um certo bipolarismo
interno do género. - a China
contra todos ou quase todos, mas todos unidos no essencial da relação com o
resto do mundo. Sobram, claramente, a Europa, a Rússia e a África. Que por via disso terão necessariamente de se
associar se não quiserem, estupidamente, isolar-se e viver ao sabor dos ventos
que vierem a soprar. Manda o bom senso e diz a História, que Europa
e África estão ligadas pela via umbilical.
Se continuar a defender-se o contrário, assistiremos rapidamente a um
retalhamento de África e a sua ocupação parcial, possivelmente definitiva, pela
China. Que assim
desviará decisivamente para si o pendor do domínio dentro do bloco asiático e
mesmo no mundo. Este cenário de tão mau que é, não pode ser possível.
O que resta, na esquematização de ideias
que aqui apresento, é aceitar o que a História também diz: - que a Rússia
é parte da Europa e como tal tem de
ser encarada. A
(re)integração não será fácil, certamente, mas acredito que também não será
difícil, se houver
liderança culta e capaz. Há que
perceber a enorme vantagem de a Rússia dispor de cerca de metade da Ásia
(que se estende sobre a China) e com isso, de ser capaz de a manter em sentido. E é
muito mais o que nos une do que aquilo que nos separa. Desse modo, poderia perspectivar-se que a Europa
(Rússia incluída) com a África em desenvolvimento, formariam um bloco central,
com peso e capacidade para "impor", "discutir" e fazer-se
ouvir naquilo que diz respeito à liderança do mundo. De outro modo, não sei,
possivelmente não haverá Europa
Antes pelo contrário: Não perdemos Europa nenhuma. Recuperámos foi uma
Inglaterra diferente do resto da Europa. É
esse tipo de diferença que faz falta. Pois foi essa diversidade,
resguardando as identidades dos povos, que criou o progresso e o avanço da
Civilização. A mistura de povos no mesmo território é que sempre deu origem a
guerras e períodos de decadência.
bento guerra. A Europa está-se fazendo, não se perdeu Manuel Magalhães > bento guerra: A Europa está-se desfazendo por culpa própria, demasiada fixação nas utopias e pouca realidade, isto está muito complicado...
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