sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Remexidamente


Mais do que nunca, como o lagarto que continua a sê-lo, para além da cauda cortada, para relembrar Pessoa… Uma história universal sempre em movimento, cada vez mais urgente e insatisfeita … O que não acaba é a pena de morte em alguns países, horror dos horrores, numa era de aparência mais civilizada… João Diogo Barbosa e seus comentadores abrem pistas sobre as mudanças em perspectiva. Nós, desatentos…

A Europa que se perdeu /premium

A pergunta fundamental da Europa volta a aparecer: é na entropia de Berlim ou no kitsch de Bruxelas que se resolve a questão da identidade?

JOÃO DIOGO BARBOSA

OBSERVADOR, 31 dez 2020,

Em 1998, o jornal neerlandês NRC Handelsblad recrutou o historiador Geert Mak para viajar pela Europa e escrever sobre os efeitos do século XX nas suas cidades. O trabalho foi um êxito local e os textos acabaram por ser reunidos num livro nunca por cá editado, com o título “I Europe: Travels Through the Twentieth Century”, que rapidamente se tornou parte do cânone do sentimento europeísta.

A Europa que Mak encontrou era ainda uma tentativa de ligar os pontos de um período brutal, onde a memória ocupava um espaço colossal e incómodo. Esses europeus já não se lembravam das vitórias que aquietaram os primeiros anos de 1900 e faziam o melhor para esquecer e construir por cima das tragédias que se seguiram.

Naquele momento, a identidade era um fardo; as melhores histórias da viagem são as que nos mostram como a desilusão com as promessas do passado inclinou os países para a melancolia de uma prosperidade sem rumoao visitar Portugal, por exemplo, Mak narra as intenções da revolução que entretanto se revelaram tragicamente equivocadas e repara queem lado algum da Europa encontrei o Terceiro Mundo tão naturalmente presente como aqui”.

Nas grandes capitais, o contraste do passado com o presente (sendo que hoje ambos se lêem como parte do passado) é fonte de espanto. Em Viena, outrora a mais europeia das capitais, pouco mais se passa além de uma forma de aborrecimento que agora se diria estrutural, num arrastar impessoal e económico de vidas, que contrasta com o ambiente dos cafés onde anos antes tinha nascido a ideia de Europa. O espectro dessas crónicas, sempre presente mas raramente mencionado, é a União Europeia.

Mak é demasiado liberal para a criticar no que importa e – como qualquer adolescente que num interrail é poupado a dificuldades fronteiriçasaponta-lhe sobretudo as vantagens do progresso, mas é impossível ler esses relatos em 2020, encontrando as raízes dos problemas de hoje, e não pensar em culpados. A perda de propósito foi sempre uma ameaça séria à Europa e todas as tentativas de resposta parecem conduzir a um beco sem saída. Dizer que a União representa a “prosperidade” é condená-la em tempos de crise económica e defender que se trata de uma “comunidade de valores” (quais?) lembra-nos a atracção pelo abismo em quase todos os Estados-membros. Não chega e não funciona.

A União de hoje já não é pela globalização, pelos mercados ou sequer pela prosperidade. A ser alguma coisa, a União é agora por si, paranóica com a sobrevivência e errada ao achar que ela se encontra nos seus gabinetes climatizados.

Escrever nesta altura sobre perda europeia implica falar do Brexit. Resolvidas as negociações para o abandono pleno e “duro” do Reino Unido, a União Europeia perde mais do que um grande Estado.

Numa das passagens mais inspiradas do livro, Berlim é descrita como uma capital que nasceu tarde e tentou compensar o tempo perdido ao tornar-se numa mistura arquitectónica da História vizinha a que aspirava. Essa imagem serve a ideia romântica da Europa como conjunto de partes, que unidas formam algo maior do que a sua soma.

A realidade não foi por aí, com a fracção europeia de Bruxelas a tornar-se num enxerto burocrático num país pacato, uma realidade paralela de alguns arruamentos. A pergunta fundamental da Europa volta a aparecer: é na entropia de Berlim ou no kitsch de Bruxelas que se resolve a questão da identidade?

O Reino Unido respondeu há quatro anos, destruindo a ideia de inviolabilidade da União. A perda de um Estado-membro, no meio de uma perda de propósito, trouxe os piores instintos do actual estado europeu, que se fechou sobre si para tentar enfrentar o mundo.

Os britânicos decidiram que a preservação da identidade é incompatível com a União Europeia. O tempo que passou desde o referendo deu-lhes razão. Uma União cada vez mais centralizada e homogénea agrada a políticos e comentadores, mas deixa os europeus com pouco. Numa altura em que tanto da política é a luta por um propósito, a União continua incapaz de permitir que uma resposta surja pela força que a afaste do centro. A partir de amanhã perdemos também quem nos tentou avisar.

João Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

CAFÉ EUROPA  UNIÃO EUROPEIA  EUROPA  MUNDO

COMENTÁRIOS:

Luis Teixeira-Pinto: Um acrescento: - rapidamente se perceberá que o Brexit foi uma tolice rematada e que o Reino Unido tem de voltar ao berço original. Talvez noutros moldes, mas voltará. O isolamento (já não há Império) e a falta de "massa" crítica, retiram qualquer hipótese ao RU na disputa de um lugar de comando na cena mundial. Talvez não seja tempo perdido, pois pode obrigar a repensar a Europa, que obviamente necessita de arrepiar caminho.               Luis Teixeira-Pinto: Um texto interessante, bem estruturado, mas curto quanto a mim. Falta falar nos propósitos, nos objectivos, há que apresentar, e abrir à discussão, alguma coisa no plano da geoestratégica. E esta, apesar da incomodidade que pode por vezes suscitar, impõe-se pela necessidade de encarar o mundo na sua globalidade e nas suas especificidades. Que mundo poderemos ter daqui a 50 anos? De que modo é que a Europa se posicionará nesse mundo, que será, se nada for feito, bipolar e onde a Europa terá um papel menos que secundário? Senão vejamos: - De um lado estarão indiscutivelmente os EUA, ainda, apesar das suas muitas contradições internas, que terão a capacidade (ponto discutível, mas que admito como de partida) de orientar e dirigir o bloco americano, de Norte a Sul, e com ele gizar um mundo feito de complementaridades e de vantagens mútuas. Do outro lado, o bloco asiático, liderado pela China mas onde também a Índia se apresentará como a grande potência que já é, os dois, e seus satélites, em associação forçada, querendo eu dizer com isto, que a necessidade de afirmação e de disputa de um forte lugar na cena mundial imporá com pragmatismo a ideia de que mais vale estar a favor do que contra. Ou seja, China e Índia dificilmente entrarão em confronto, apesar de não terem quaisquer afinidades. Dominará nesse bloco asiático um certo bipolarismo interno do género. - a China contra todos ou quase todos, mas todos unidos no essencial da relação com o resto do mundo. Sobram, claramente, a Europa, a Rússia e a África. Que por via disso terão necessariamente de se associar se não quiserem, estupidamente, isolar-se e viver ao sabor dos ventos que vierem a soprar. Manda o bom senso e diz a História, que Europa e África estão ligadas pela via umbilical. Se continuar a defender-se o contrário, assistiremos rapidamente a um retalhamento de África e a sua ocupação parcial, possivelmente definitiva, pela China. Que assim desviará decisivamente para si o pendor do domínio dentro do bloco asiático e mesmo no mundo. Este cenário de tão mau que é, não pode ser possível. O que resta, na esquematização de ideias que aqui apresento, é aceitar o que a História também diz: - que a Rússia é parte da Europa e como tal tem de ser encarada. A (re)integração não será fácil, certamente, mas acredito que também não será difícil, se houver liderança culta e capaz. Há que perceber a enorme vantagem de a Rússia dispor de cerca de metade da Ásia (que se estende sobre a China) e com isso, de ser capaz de a manter em sentido. E é muito mais o que nos une do que aquilo que nos separa. Desse modo, poderia perspectivar-se que a Europa (Rússia incluída) com a África em desenvolvimento, formariam um bloco central, com peso e capacidade para "impor", "discutir" e fazer-se ouvir naquilo que diz respeito à liderança do mundo. De outro modo, não sei, possivelmente não haverá Europa

Antes pelo contrário: Não perdemos Europa nenhuma. Recuperámos foi uma Inglaterra diferente do resto da Europa. É esse tipo de diferença que faz falta. Pois foi essa diversidade, resguardando as identidades dos povos, que criou o progresso e o avanço da Civilização. A mistura de povos no mesmo território é que sempre deu origem a guerras e períodos de decadência.

bento guerra. A Europa está-se fazendo, não se perdeu Manuel Magalhães > bento guerra: A Europa está-se desfazendo por culpa própria, demasiada fixação nas utopias e pouca realidade, isto está muito complicado... 

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