As tais “coisas
que terei pudor de contar seja a quem for”. ESTHER MUCZNIK é uma mulher atenta, sabedora e não conformada,
revendo uma história que a todos repugna.
O homem que o povo alemão pedia
Porquê escrever, a pretexto de um dia
em memória das vítimas do Holocausto, sobre o homem responsável pelo maior
genocídio da história? Porque também hoje pululam pequenos homens cheios de
ódio, incapazes de lidar com a sua insignificância pessoal, mas cujo ego
descomunal estimulado por um contexto favorável os pode transformar em
caudilhos de populações exasperadas pelo abandono e pelo medo.
ESTHER MUCZNIK
PÚBLICO, 23 DE
JANEIRO DE 2021
Na próxima quarta-feira, dia 27 de
Janeiro, comemora-se o Dia Internacional de Memória das Vítimas do
Holocausto. Mas começo este artigo citando, não
as palavras de uma vítima, mas as de um nazi, Baldur von Schirach.
Antigo chefe das juventudes hitlerianas, Schirach escreverá em 1967, depois da
sua saída da prisão, o seguinte: “A catástrofe alemã não advém
apenas do que Hitler fez de nós, mas do que nós fizemos de Hitler. Hitler não
veio do exterior, não era, como muitos imaginam, uma besta demoníaca que se
apoderou do poder sozinho. Era o homem que o povo alemão pedia e o homem que
nós tornámos senhor do nosso destino, glorificando-o sem limites. Porque um
Hitler só surge no seio de um povo que tenha o desejo e a vontade de ter um
Hitler.”
Palavras
sábias, mas, como sabemos, tragicamente tardias. Apesar disso, são um
tema de reflexão bem actual. Nenhum homem, nenhuma mulher consegue por si só
mobilizar todo um povo, por muito carisma, força e convicção que tenha. Adolf Hitler
era um fracassado: nos seus
estudos – a sua candidatura à Academia das Belas Artes foi chumbada por duas
vezes –, um homem incapaz de se relacionar socialmente e nomeadamente com as
mulheres, sem trabalho certo nem perspectivas de futuro. Um homem ressentido,
frustrado e azedo. As únicas actividades políticas que se lhe conhecem antes da
Primeira Grande Guerra eram debates em cafés e cervejarias onde destilava a sua
cólera e ódio perante uma assistência fascinada de basbaques.
É a guerra e a derrota, a revolução
de 1918 e a República de Weimar, assim como a grande crise de 1929, que levam à
radicalização da sociedade alemã, tornando-a permeável ao discurso de ódio de
um homem que não passava de um demagogo e um propagandista de taberna. Hitler
alimentava o ódio das massas com os seus próprios ódios. Se a sua verborreia
fanática e histérica mobilizava multidões, era porque o clima de ressentimento
e cólera reinante entre a população era favorável a essas ideias. De
propagandista de cervejarias, Hitler passa assim a propagandista de comícios de
massas organizados pelo partido, o NSDAP, onde o seu tom agressivo e violento
era um autêntico “fogo-de-artifício político”. É o único que atrai multidões, sempre com os
mesmos temas: a traição de 1918, os inimigos a abater, os
exploradores e especuladores, o governo corrupto, os judeus, sempre os judeus… Começa nessa altura o culto de Hitler, a sua
adulação, um líder incontestado, “o líder que a Alemanha aguardava”, como
escreveu, na altura, o jornal anti-semita Volkisher Beobachter…
É na prisão, no seguimento da tentativa frustrada de um golpe de Estado em
1923, que Hitler começa a reflectir e a pôr no papel – o Mein Kampf– as suas ideias, a sua missão
política no final da pena e, sobretudo, a construção da sua própria imagem como
líder absoluto que esperava vir a ser, o salvador da Alemanha. Apesar de não se poder ler nos dois tomos do Mein
Kampf uma política concreta da “solução final” tal como será posta em prática,
no Outono de 1941, no seguimento da invasão nazi da URSS e delineada na conferência
de Wannsee, em Janeiro de 1942, os seus escritos já contêm as bases
do genocídio: a
relação entre a aniquilação dos judeus e a salvação nacional já está na mente
de Hitler, embora ainda não na forma de um programa concreto. Para o obreiro da
pior tragédia do século XX, o judeu não é um simples bode expiatório, mas um
inimigo a derrotar, um inimigo mortal da humanidade contra o qual esta tem de
travar um combate radical como forma de sobrevivência. Hitler é o missionário
desta guerra sem tréguas, apresentada como uma guerra defensiva.
Como?
Ele explica: para ganhar esta guerra e destruir “o bacilo
dissolvente da humanidade”, é necessário conquistar as massas e
“nacionalizá-las”, despertando nelas a consciência alemã. Para isso é preciso uma propaganda adequada
limitando-se a alguns pontos centrais e fórmulas estereotipadas, porque “a
faculdade de assimilação da grande massa é restrita e de entendimento ainda
menor”. Para Hitler, o movimento nazi só pode ser antidemocrático quer na
sua organização, quer nos seus princípios. “Quem acredita
ainda que o progresso humano, mesmo mínimo, possa surgir do cérebro das
maiorias e não da cabeça de um homem? Quando o princípio parlamentar da
autoridade das maiorias se sobrepõe ao princípio da autoridade de um só e
substitui o chefe pelo número e pela massa, ele vai contra o princípio
aristocrático da natureza.”
Continua
Hitler, “A força de um partido não reside de forma alguma na
inteligência e independência de espírito de cada um dos seus membros, mas na
obediência e espírito de disciplina com os quais estes seguem o comando
espiritual”. Para ele, a conquista das grandes
massas não se faz num parlamento, faz-se na grande reunião pública, no grande
comício – único meio capaz de exercer nas multidões uma influência real, porque
pessoal e directa. “A grande massa do povo submete-se sempre ao poder das
palavras incendiárias atiradas para o seio das massas – nunca pelos jactos de
limonada de literatos estetizantes ou de heróis de salão”.
Em suma, o ódio ao judeu e a
sua erradicação como forma de salvação não apenas da Alemanha, mas da
humanidade, a rejeição violenta do bolchevismo e da social-democracia, atrás
dos quais está sempre o “criminoso” judeu, a exaltação mística, fanática e
messiânica da pátria e do sangue alemão, o culto do chefe, messias-salvador da
massa bruta e ignorante, tudo isto e muito mais que irá alimentar a guerra e o
genocídio, está contido no Mein Kampf de Hitler. Infelizmente, os seus
opositores na época não levaram a sério os seus escritos, muitos
ridicularizaram-nos ou desvalorizaram-nos. Cometeram um erro de consequências
trágicas…
Porquê
escrever, a pretexto deste dia de memória das vítimas, sobre o homem
responsável pelo maior genocídio da história e por uma guerra que destruiu
milhões de vidas humanas, marcando para sempre a Europa e o mundo? Porque
também hoje e em todo o mundo pululam pequenos homens cheios de ódio,
incapazes de lidar com a sua insignificância pessoal, o seu fracasso e
mediocridade, mas cujo ego descomunal estimulado por um contexto favorável os
pode transformar em caudilhos de populações exasperadas pela pobreza e pela
desigualdade, pelo abandono e pelo medo. E porque se há uma lição
a reter é que devemos levar a sério o que dizem.
A 30 de Janeiro, às 11h da manhã de 1933, Adolf Hitler foi nomeado
chanceler do Reich. “Hitler
é o chanceler do Reich. Exactamente como num conto de fadas”, comentou
Goebbels. Ou “um salto na escuridão”, como o classifica um jornal católico. O
que se passou nessa escuridão já todos sabemos…
Estudiosa de temas judaicos
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