Foi o que me trouxe esta crónica de Ricardo Pereira, que oxalá servisse de estímulo à
leitura, nestes tempos de alienação materialista, que faz que se passe ao largo
de um sentido de vida mais amplo de enriquecimento espiritual, forjador de
bem-estar, infelizmente na opinião de uma minoria, o homem possuindo cada vez mais
ferramentas de diversão que pouco se enquadram na quase utopia deste discurso
de apelo a um tipo de recreação que lembra a aurea mediocritas já propalada entre os clássicos de seiscentos. Ricardo Pereira lembra as suas leituras de prosas que distraem,
afinal, e nos ajudam a ultrapassar o silêncio de um confinamento com as suas “vozes”
que levam a conhecer-nos melhor e o mundo à nossa volta. É certo que o uso da
palavra escrita também proporciona a escrita poética e tantas vezes, como no
caso de Mário Sá Carneiro, ela é
expressiva de dores de alma, mas de uma forma de as traduzir igualmente certeira
na sua subjectividade, caso do poema “Quase”, donde extraí o título deste meu comentário, num
sentido bem diferente, é claro, do que traduz o belo poema de Sá Carneiro, expressivo este da amargura de um
sentimento de incompletude e imperfeição, resultante do nosso relativismo
terreno. Mas é num sentido de homenagem de gratidão por este seu texto
formativo que transcrevo o belo poema do poeta do Orpheu.
OPINIÃO : Porquê ler os clássicos no confinamento?
Necessitamos das palavras para viver.
Sem elas, a existência não passa de um vastíssimo silêncio destituído de
significados. Não há confinamento quando se abre um livro.
RICARDO PEREIRA PÚBLICO, 21 de Janeiro de 2021
A
singularidade da Odisseia,
segundo Italo Calvino, reside no
facto de Ulisses ser mais próximo das pessoas comuns que dos
heróis clássicos, cheios de virtudes militares e aristocráticas. É um protagonista que sofre às mãos da Fortuna,
padece de solidão, sente saudade de casa, da esposa, do filho. Será o
nosso olhar distinto do olhar de Ulisses quando contempla o poente? Quando
imagina Ítaca, a pátria perdida, ao longe, além da linha do horizonte? Eis o
tremendo poder dos clássicos: eles são mantas para os dias frios, não impedem o
bafo gélido da morte mas levam algum calor aos corações carentes. Necessitamos
das palavras para viver. Sem elas, a existência não passa de um vastíssimo
silêncio destituído de significados. Por
isso urge recuperar o tempo da leitura, o tempo domado pelas narrativas. Não
podemos prosseguir neste ritmo alucinante, de voracidade por tudo e por todos,
da “modernidade líquida”, como disse Zygmunt Bauman, ou do silêncio que incomoda a
consciência, ilustrado pelas palavras do filósofo Gilles Lipovetsky.
Ler é um ato de liberdade mas também de
comunhão. Liberta-nos das amarras dos
estereótipos, da realidade crua do mundo. Ao mesmo tempo, a leitura enche-nos o
peito de compaixão pelos outros, a cola da civilização. Assim, comungamos das dores de parto do mundo e, mais importante,
das dores daqueles que morrem nas pequenas mortes das desilusões, das traições,
das injustiças. Podemos sofrer ao lado de
Jean Valjean, condenado por roubar um pão e perseguido por esse
ato de necessidade durante toda a vida, ou sentir a chama do inconformismo na
leitura dos textos de Charles Dickens. Imaginar utopias com a Utopia de
Thomas More,
participar numa aventura maior do que a sombra na companhia de Dom
Quixote, dar a volta ao mundo em oitenta
dias, escoltado pela narrativa de Júlio Verne. Hemingway
faz falta ao mundo contemporâneo, principalmente pelo
papel de denunciar as injustiças. As suas páginas transportavam o olhar dos
leitores para o âmago dos conflitos. Não era possível alegar indiferença nem
desconhecimento. A Guerra e Paz de Tolstoi não revela o verniz que é a
civilização, despedaçada pelos instintos indomáveis da natureza humana? Os clássicos são livros abertos
para as profundezas da alma. Não é possível fechá-los depois de abertos.
O Memorial do
Convento é um
memorial aos pobres, aos trabalhadores, aos injustiçados, aos miseráveis mas
também aos sonhadores e, sobretudo, à resiliência das mulheres. Memória de Elefante, da autoria
de António Lobo
Antunes, transporta-nos
para uma guerra em África que se comuta numa batalha contínua entre o homem e
os fantasmas, conflito que perpetua a luta primordial do crepúsculo com a
bruma. Afinal, somos pedaços de luz cercados pelas sombras. O humor de Mark Twain representa uma vitória pírrica sobre as hostes da
morte. Há passagens em Dom Quixote
que invertem a ordem do mundo e a prosa de Camilo Castelo Branco deixava o adversário mais abalado com os golpes das
palavras do que com os socos que o escritor gostava de distribuir na baixa
portuense. E Dante? Um
homem que desce aos infernos para revisitar o rosto do amor platónico, esse
Orfeu italiano que fez da sua Eurídice uma Beatrice imortal. Adoro uma
frase de Teixeira de Pascoaes,
escrita na obra O Pobre Tolo: “Os
deuses não morrem, adormecem.” Eis o
derradeiro sonho humano: que a morte seja um sono com possibilidade de
despertar. Quer o confinamento se prolongue por cem dias ou por Cem Anos de Solidão teremos sempre os
livros e as palavras. É assim que
se tece os fios da imortalidade, com releituras e leituras até que as histórias
se tornem tão familiares como o rosto surpreendido pelo reflexo ao espelho no
livro Aparição, de Vergílio
Ferreira. O Imperador Tibério tinha o hábito de embaraçar os
senadores romanos com perguntas complexas. Certo dia, perguntou-lhes qual a
música cantada pelas sereias a Ulisses. Não souberam responder. Ninguém sabe o
que cantavam as sereias ao herói da Odisseia. É esse o motivo para ler os
clássicos, ou seja, em cada resposta (em cada página) existe um novo trilho
repleto de perguntas. Não há confinamento quando se abre um livro.
Historiador
e investigador do Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e
Memória (CITCEM)
TÓPICOS: OPINIÃO LIVROS LITERATURA CULTURA CONFINAMENTO PANDEMIA
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QUASE
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...
Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh’ alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo ... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar.
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