Cá por mim, o que faz imporem-se certas
gentes, é um fenómeno de galvanização, como na Alemanha de Hitler. Trump impôs-se como plutocrata a quem tudo foi
permitido, por tentar repor uma ordem de comando antiga, num país farto de
agressão exterior, eldorado para esses que nele se iam infiltrando desalmadamente.
Também Hitler tivera
discursos galvanizantes de reposição do poder e com retaliações futuras, de um
povo desejoso de recuperar prestígio antigo, diminuído por duras perdas de uma
primeira guerra. Galvanização, é o que é, para gente de acção. Por aqui, a
galvanização é em função da doutrina, sem energia para mais, habituados que
estamos à promessa do Reino dos Céus. Sem luta: “Deixai vir…”
OPINIÃO
Perceber
Não são as virtudes da democracia e das esquerdas e dos
social-democratas e dos democratas-cristãos que fazem os Trump e os seus piores
regimes. São os seus defeitos, os seus erros e a sua crescente miopia.
ANTÓNIO
BARRETO PÚBLICO, 9 de
Janeiro de 2021
Foi
uma semana inesperada e de consequências desconhecidas. Foi um dia intenso de
emoções. Ainda não se sabe muito bem como reagirão, no futuro, a opinião e os
cidadãos. Aos acontecimentos inéditos correspondem sempre sentimentos
singulares. O
Capitólio tomado de assalto, mal protegido e defendido com balas reais, é imagem
inesquecível. Avistar uns
labregos desalinhados nos gabinetes dos mais altos responsáveis políticos
parlamentares, assim como hordas de selvagens a tomar conta das salas de sessões, deixa recordações para o resto da vida. Ver a
polícia incapaz de defender a instituição, sem saber como reagir, recorrer a
armas verdadeiras com balas a sério, cria uma sensação de vulnerabilidade
insólita. Se a mais pujante democracia do mundo revela esta fragilidade, que
pensar de todos os outros parlamentos e de todas as outras instituições que
asseguram a democracia por esse mundo fora? Como sentir força e segurança,
num tempo em que a democracia perde espaço ou recua na maior parte dos continentes, se soubermos que os outros são ainda mais frágeis e
inseguros?
Como
perceber o que se passou?
Como compreender as circunstâncias e os factos ocorridos esta semana na capital
do país mais rico e poderoso do mundo? O mais fácil é concluir que a tentativa
de “golpe” falhou. E afirmar, com vaidade e sentimento de superioridade, que
o Presidente Trump é um fascista, autoritário e narcisista como raramente se vê
na história política, eventualmente comparável a Nero, Calígula, Hitler ou
Gaddafi. Que é um manipulador demagogo, grosseiro e exibicionista de
raro calibre. Que a personagem literária mais parecida com ele será talvez o
Rei Ubu. Que se trata do mais evidente exemplo de capitalista, especulador,
adepto da supremacia branca, racista, xenófobo e machista. Que agiu sempre na defesa
dos seus interesses e da sua fortuna, da sua estranha família, dos seus
obedientes amigos e de todos quantos se dispusessem a festejá-lo. Que tocou a
corda sensível de tantos americanos com saudades da sua hegemonia, de tantos
machistas, racistas e xenófobos, de tantos capitalistas que detestam os
impostos e de tantos americanos cansados de perder ou não ganhar no Vietname,
no Líbano, no Irão, no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, na Síria ou na
Venezuela. Tudo isto poder ser verdade, mas não chega para compreender.
Multidão
invadiu símbolo da democracia norte-americana. Sem máscara, armados e
incentivados por Donald Trump, os manifestantes furaram barreira policial e
pedem recontagem dos votos. Quatro pessoas morreram.
Não
impressiona o facto de ver que muitos ricos desejem ficar mais ricos, que
muitos brancos queiram ser mais brancos, que muitos machistas não desistam de o
ser, que os autoritários tudo façam para continuar a sê-lo e que muitos
fanáticos das armas ambicionem ter ainda mais armas. Também não é novidade ver
que há gente que despreza os pobres, esquece os velhos, detesta os doentes, é
indiferente aos desempregados, repele os deficientes, condena os sem-abrigo,
odeia as mulheres e abomina as minorias. Nada disso basta para perceber Trump.
Nada disso responde às verdadeiras e incómodas perguntas. Como foi possível que
um personagem como este tivesse sido eleito Presidente dos Estados Unidos? Como
se compreende que uma das diplomacias mais competentes, a defesa mais
eficiente, um dos serviços de informação mais capazes, a administração fiscal
mais poderosa e o sistema universitário mais avançado do mundo tenham
permitido, suportado, apoiado, obedecido e convivido com esta figura
extravagante?
Como
foi possível? Como compreender que dezenas e dezenas de milhões de pessoas
tenham eleito este senhor, tenham votado neste homem e na sua política, apoiem
a sua acção, considerem (como ele próprio diz) que foi o melhor Presidente da
América, aceitem que foi a mais gloriosa presidência da história e estivessem
dispostos a renovar o mandato, o que quase conseguiram? São todos estúpidos?
São todos capitalistas paranóicos e narcisistas? São todos racistas, machistas
e xenófobos? Se a resposta for afirmativa, temos um problema muito sério: são
perto de cem milhões, foram maioria, são quase maioria, podem voltar a ser,
fazem parte da democracia americana e mundial. Se a resposta for negativa, o
que é mais provável, então temos piores problemas. Como foi possível? E como se
pode evitar que seja novamente possível?
Esse
é o verdadeiro problema. Gente como esta, programas como este e políticas como
esta só são possíveis, em democracia, porque os democratas deixam, porque a
democracia tem tantos ou mais defeitos, porque os democratas e as esquerdas se
transformam em figuras detestáveis de arrogância e suficiência. Porque os
democratas decretam e protegem os seus privilégios e nunca se esquecem de
defender os seus.
Não são os democratas que fazem os
fascistas, os comunistas, os terroristas, os arrogantes, os populistas… Mas são
os seus erros, os seus defeitos e os seus vícios que inevitavelmente conduzem à
destruição da democracia. Trump faz
parte do mundo que nós criámos. Fomos nós que o fizemos
Trump
e outros como ele são possíveis porque os democratas-cristãos, os socialistas e
os sociais-democratas estão disponíveis para fechar o regime político, diminuir
as liberdades públicas, defender os funcionários de Estado, proteger as
minorias amigas, aumentar infinitamente os impostos, coarctar a iniciativa
privada, oprimir a liberdade económica e empresarial e desprezar os reflexos de
grande parte da população relativamente a problemas de cultura, religião e
comportamento. Não! Não
são as virtudes da democracia e das esquerdas e dos social-democratas e dos
democratas-cristãos que fazem os Trump e os seus piores regimes. São os seus
defeitos, os seus erros e a sua crescente miopia.
As
esquerdas democráticas que não se libertam das amarras estalinistas. Os
democratas que permitem a corrupção. Os políticos que protegem os políticos e
seus funcionários. A democracia que defende os privilegiados e permite a
desigualdade. É incapaz de realizar a justiça e deixa correr a corrupção.
Protege os amigos e persegue os adversários. Ataca a educação privada, a fim de
evitar a comparação. Cerca a saúde privada, por que receia o paralelismo.
Aumenta sistematicamente os impostos. Acarinha a função pública, em detrimento
dos trabalhadores das empresas privadas. Deixa correr os offshores na
convicção de que os seus beneficiários apoiarão um dia a democracia. Privilegia
sempre os negócios escuros, os capitalistas instantâneos, os especuladores, os
vendedores de empresas e os compradores de favores. Recusa e combate a
igualdade de direitos e deveres entre público e privado, nas leis laborais, na
educação e na saúde.
Não
são os democratas que fazem os fascistas, os comunistas, os terroristas, os
arrogantes, os populistas… Mas são os seus erros, os seus defeitos e os seus
vícios que inevitavelmente conduzem à destruição da democracia. Como se
sabe há muito, esta cai por dentro, não por via de assalto exterior.
Trump
faz parte do mundo que nós criámos. Fomos nós que o fizemos.
Sociólogo
TÓPICOS
AMÉRICA DONALD TRUMP PARTIDO REPUBLICANO EXTREMA-DIREITA DEMOCRACIA
HISTÓRIA POPULISMO
COMENTÁRIOS:
Adolfo-Dias EXPERIENTE: A lucidez de António Barreto é sempre extraordinária!
09.01.2021 Paulo J. H. Dantas da Costa INICIANTE: Caro Sr. António Barreto, que grande lucidez, muito
obrigado. Portugal já quase não tem Estadistas, mas o senhor é uma referência.
Por favor, enquanto puder, não deixe de iluminar. Obrigado maivone.897019 INICIANTE: Mas os EUA não têm ricos a pedir para pagarem mais
impostos? Têm assim tantos funcionários públicos e são tão privilegiados ou têm
dos piores serviços públicos , tal como o Brasil, por exemplo? Andei a ler os
jornais errados! mpro EXPERIENTE: Grande trauma o AB, deve ter tido na sua passagem pelo
governo, e outras instituições por onde passou. A culpa é das esquerdas e, da
democracia, não das pessoas que a coberto nestas instituições, não cumpriram e,
não foram castigados. Os vigaristas, os oportunistas, os fascistas, os
xenófobos, os populistas têm razão de o ser. A culpa será de alguém, menos deles
e da direita que não cumpre o seu desígnio democrático e civilizado. Grande
pensamento. O AB, já pensou em definir-se como cidadão? Normalmente a
psicanálise trata estes problemas. Adolfo-Dias EXPERIENTE: Se o que o senhor leu no artigo de António Barreto foi
uma desculpabilização da direita, então não sabe ler... E já dizia o slogan:
"Quem não lê é como quem não tem visão" Alexandre Viegas Maniés INICIANTE: A minha casa é uma casa de portas abertas. Assim
também é o meu entendimento da sociedade. Há um contínuo devir,
acção-consequência. Nada me estranha todos estes movimentos, da ocupação do
Senado, ou outros que ocorrem nos países ditos democráticos, como vão sendo
notícia. Políticas xenófobas, discriminatórias. Há muitas interpretações sobre
abrangência e poderes da democracia. António Barreto no seu 7.º parágrafo dá um
grande salto, da análise à Presidência de Trump grande defensor dos interesses
privados passa para uma análise da política e sociedade nacional (meu
entendimento). Então a culpa é nossa, cidadãos eleitores que permitimos que o
estado ataque tudo o que é privado. Então as parcerias público-privadas que
levam milhões do erário público, apoios a escolas e hospitais privados? mamaciel INICIANTE: Mais um excelente artigo de opinião do Senhor António
Barreto. viana EXPERIENTE: Mundo que o António Barreto criou e continua a
defender hipocritamente. "A democracia que defende os privilegiados e
permite a desigualdade." Então defende a igualdade?... "Ataca a
educação privada (...) Cerca a saúde privada" Mas então agora já defende
que deve haver educação e saúde de 1a e de 2a, ou seja desigualdade no acesso à
educação e aos cuidados de saúde? Não? Então porque critica o aumento de
impostos, reconhecidamente o único modo de diminuir a desigualdade num sistema
Capitalista?! "Acarinha a função pública, em detrimento dos trabalhadores
das empresas privadas." Então defende as 35h no sector privado? Ah, afinal
não?... "Deixa correr os offshores(...) os especuladores, os vendedores de
empresas e os compradores de favores." Soa a comunista! Tem noção da sua
incoerência?... Colete
Amarelo EXPERIENTE: Muito bem! Isto de democratizar a culpa é uma das
muitas maneiras de desfocar o que está realmente na origem dos trumps deste
mundo. É o raciocínio próprio de quem se sente impotente por estar livremente
preso numa esfera política incapaz de condenar os trumps deste mundo directamente.
Excluo-me deste nós invasivo. Tornou-se
um vício de pensamento culpar a Democracia, pelo que está mal a nível político
e económico. Os erros da Democracia não definem por si o que é a Democracia.
Estes erros têm agentes, que são mais o fruto de culturas - cultura de classe -
que do ADN do regime democrático. Não são os democratas que enfraquecem a
Democracia, isso é ilógico, mas os anti-democratas, que vivem em regime
democrático. Conhece algum?:
leonelucas.943072 INICIANTE: Muito bem!: Jose MODERADOR: AB é um projecto de democrata falhado. Talvez por isso
tenha o topete de escrever que o crime de Trump fez não foi ele mas foram os
democratas. Trump é a terceira geração, numa família de capitalistas que
cresceram encostados ao aparelho da administração dos USA. Foram eles que se
fizeram como foram e foi Trump que se fez como é criminoso à margem da lei e
finalmente assaltante do Capitólio. A justiça tem de lhe cair em cima já antes
que faça pior ou repita o mesmo. O Capitalismo existe não em abstracto, não nos
livros, não em lendas de audazes, mas no corpo e alma dos Trump's deste mundo!
São esses monstros quem manda nas democracias e pagam aos Estados para reprimir
os Povos. São esses monstros que fazem as desigualdades, o colonialismo,
ingerência, racismo. Não há desculpa! Luís Pires INICIANTE: AB ainda não se curou. Tem razão quando realça que é
necessário tentar compreender as razões do apoio mentecapto a líderes funestos.
Mas a sua falsa "equidistância" (permanente) fá-lo cair na miopia que
quer denunciar. Só falta começar a aceitar a mentira dos trumpistas de que não
foram eles a invadir o Capitólio. Foi a "esquerda mascarada" ... AB
não consegue sair do esquema mental "nem, nem" que o enclausura há
anos. Ao menos a sua amiga Bonifácia já transpôs o Rubicão... Homem, assuma que
é tudo igual, a direita e a esquerda, e que a Iluminação Pura é propriedade...
sua... orion EXPERIENTE: Claro, parece que toda a gente fala das consequências
e ignoram-se as causas. E o cronista aponta-as. Neste aspecto, subscrevo. Trump
não nasceu de geração espontânea. E, esquecendo as causas remotas elencando as
causas próximas, não podemos deixar de falar na passividade e colaboração de
dois presidentes democratas, Clinton e Obama, no reforço das desigualdades e no
ascenso dos escandalosos 1% de hiper-ricos. E a questão social na América não
está solucionada: é quase patético pensar que com a neutralização de Trump o
problema desaparece. O aceno de simpatia de Hillary Clinton à Wall Street, os
seus deploráveis, leva-nos a crer que o mal estava instalado e não vai
desaparecer por mero ilusionismo. Os quase 50% de Trump poderão ser herdados
por qualquer Bannon disponível. E não há Biden que chegue. Jorge Macedo Rocha INICIANTE: Estas coisas acontecem porque a democracia se dedica
ao que o autor aqui fez com evidente prazer: a autoflagelação. Joao MODERADOR: Credo, nesta o Barreto perdeu as estribeiras, cacetada
na função pública, cacetada nos comunistas e por aí fora à boleia de
"perceber" ... fiquei quase quase a acreditar que 70 milhões de
comunistas é que votaram no Trump. Isabel F. INICIANTE: É
inacreditável. Então, a culpa é da "esquerda "? É sua a
responsabilidade pela perda da decência, da honestidade intelectual, do
respeito pelas instituições de milhões de seguidores de Trump? É
responsabilidade da esquerda que grande parte da direita tenha perdido o
respeito por si própria? Um artigo como este mostra que a manipulação
intelectual não é um exclusivo de Trump e dos seus seguidores declarados. Há
uma direita que divergirá nos fins, mas converge nos meios. Nuno Silva EXPERIENTE: Também "não sabias de nada"... Fowler Fowler INICIANTE: Também é importante perceber por que razão o sr.
Barreto decidiu adjectivar Trump só após a eleição de Biden. A omissão deste
parlapatão durante o mandato do “rei Ubu” nos EUA e no mundo e as farpas que
aqui deixa para consumo interno revela bem o carácter deste Steve Bannon de
trazer por casa, com algum sucesso, diga-se, na criação da PAF, apesar de a ter
adjectivado de “cobarde” quando percebeu que aquele governo de Passos não tinha
coragem para assumir como suas as mudanças que, nessa altura, a direita radical
pretendia introduzir em Portugal. Por cá, Trumps há muitos! Só que alguns falam
baixo, ouvem música clássica e têm maneiras à mesa. cidadania 123 EXPERIENTE: análise com a qual concordo, e infelizmente muitos do
nossos jornalistas activistas, políticos, ainda não entenderam o seu papel activo
no crescimento desses personagens. Não percebem que o que eles vêem como
políticas humanistas, protecção de minorias, valorização de carreiras, são
vistos por outras faixas da sociedade como injustiças, mais impostos, mais
desemprego. Por bom
caminho e segue EXPERIENTE:
Absolutamente de acordo. Quem diz um
Trump diz, à escala, um Ventura. Continuem bem instalados, desprezem metade do
país, e inevitavelmente acabarão por ter uma crise que a todos os democratas
submergirá.
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