domingo, 10 de janeiro de 2021

Histórias do nosso tempo

 

Cá por mim, o que faz imporem-se certas gentes, é um fenómeno de galvanização, como na Alemanha de Hitler. Trump impôs-se como plutocrata a quem tudo foi permitido, por tentar repor uma ordem de comando antiga, num país farto de agressão exterior, eldorado para esses que nele se iam infiltrando desalmadamente. Também Hitler tivera discursos galvanizantes de reposição do poder e com retaliações futuras, de um povo desejoso de recuperar prestígio antigo, diminuído por duras perdas de uma primeira guerra. Galvanização, é o que é, para gente de acção. Por aqui, a galvanização é em função da doutrina, sem energia para mais, habituados que estamos à promessa do Reino dos Céus. Sem luta: “Deixai vir…”

OPINIÃO          Perceber

Não são as virtudes da democracia e das esquerdas e dos social-democratas e dos democratas-cristãos que fazem os Trump e os seus piores regimes. São os seus defeitos, os seus erros e a sua crescente miopia.

ANTÓNIO BARRETO PÚBLICO, 9 de Janeiro de 2021

Foi uma semana inesperada e de consequências desconhecidas. Foi um dia intenso de emoções. Ainda não se sabe muito bem como reagirão, no futuro, a opinião e os cidadãos. Aos acontecimentos inéditos correspondem sempre sentimentos singulares. O Capitólio tomado de assalto, mal protegido e defendido com balas reais, é imagem inesquecível. Avistar uns labregos desalinhados nos gabinetes dos mais altos responsáveis políticos parlamentares, assim como hordas de selvagens a tomar conta das salas de sessões, deixa recordações para o resto da vida. Ver a polícia incapaz de defender a instituição, sem saber como reagir, recorrer a armas verdadeiras com balas a sério, cria uma sensação de vulnerabilidade insólita. Se a mais pujante democracia do mundo revela esta fragilidade, que pensar de todos os outros parlamentos e de todas as outras instituições que asseguram a democracia por esse mundo fora? Como sentir força e segurança, num tempo em que a democracia perde espaço ou recua na maior parte dos continentes, se soubermos que os outros são ainda mais frágeis e inseguros?

Como perceber o que se passou? Como compreender as circunstâncias e os factos ocorridos esta semana na capital do país mais rico e poderoso do mundo? O mais fácil é concluir que a tentativa de “golpe” falhou. E afirmar, com vaidade e sentimento de superioridade, que o Presidente Trump é um fascista, autoritário e narcisista como raramente se vê na história política, eventualmente comparável a Nero, Calígula, Hitler ou Gaddafi. Que é um manipulador demagogo, grosseiro e exibicionista de raro calibre. Que a personagem literária mais parecida com ele será talvez o Rei Ubu. Que se trata do mais evidente exemplo de capitalista, especulador, adepto da supremacia branca, racista, xenófobo e machista. Que agiu sempre na defesa dos seus interesses e da sua fortuna, da sua estranha família, dos seus obedientes amigos e de todos quantos se dispusessem a festejá-lo. Que tocou a corda sensível de tantos americanos com saudades da sua hegemonia, de tantos machistas, racistas e xenófobos, de tantos capitalistas que detestam os impostos e de tantos americanos cansados de perder ou não ganhar no Vietname, no Líbano, no Irão, no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, na Síria ou na Venezuela. Tudo isto poder ser verdade, mas não chega para compreender.

Multidão invadiu símbolo da democracia norte-americana. Sem máscara, armados e incentivados por Donald Trump, os manifestantes furaram barreira policial e pedem recontagem dos votos. Quatro pessoas morreram.

Não impressiona o facto de ver que muitos ricos desejem ficar mais ricos, que muitos brancos queiram ser mais brancos, que muitos machistas não desistam de o ser, que os autoritários tudo façam para continuar a sê-lo e que muitos fanáticos das armas ambicionem ter ainda mais armas. Também não é novidade ver que há gente que despreza os pobres, esquece os velhos, detesta os doentes, é indiferente aos desempregados, repele os deficientes, condena os sem-abrigo, odeia as mulheres e abomina as minorias. Nada disso basta para perceber Trump. Nada disso responde às verdadeiras e incómodas perguntas. Como foi possível que um personagem como este tivesse sido eleito Presidente dos Estados Unidos? Como se compreende que uma das diplomacias mais competentes, a defesa mais eficiente, um dos serviços de informação mais capazes, a administração fiscal mais poderosa e o sistema universitário mais avançado do mundo tenham permitido, suportado, apoiado, obedecido e convivido com esta figura extravagante?

Como foi possível? Como compreender que dezenas e dezenas de milhões de pessoas tenham eleito este senhor, tenham votado neste homem e na sua política, apoiem a sua acção, considerem (como ele próprio diz) que foi o melhor Presidente da América, aceitem que foi a mais gloriosa presidência da história e estivessem dispostos a renovar o mandato, o que quase conseguiram? São todos estúpidos? São todos capitalistas paranóicos e narcisistas? São todos racistas, machistas e xenófobos? Se a resposta for afirmativa, temos um problema muito sério: são perto de cem milhões, foram maioria, são quase maioria, podem voltar a ser, fazem parte da democracia americana e mundial. Se a resposta for negativa, o que é mais provável, então temos piores problemas. Como foi possível? E como se pode evitar que seja novamente possível?

Esse é o verdadeiro problema. Gente como esta, programas como este e políticas como esta só são possíveis, em democracia, porque os democratas deixam, porque a democracia tem tantos ou mais defeitos, porque os democratas e as esquerdas se transformam em figuras detestáveis de arrogância e suficiência. Porque os democratas decretam e protegem os seus privilégios e nunca se esquecem de defender os seus.

Não são os democratas que fazem os fascistas, os comunistas, os terroristas, os arrogantes, os populistas… Mas são os seus erros, os seus defeitos e os seus vícios que inevitavelmente conduzem à destruição da democracia. Trump faz parte do mundo que nós criámos. Fomos nós que o fizemos

Trump e outros como ele são possíveis porque os democratas-cristãos, os socialistas e os sociais-democratas estão disponíveis para fechar o regime político, diminuir as liberdades públicas, defender os funcionários de Estado, proteger as minorias amigas, aumentar infinitamente os impostos, coarctar a iniciativa privada, oprimir a liberdade económica e empresarial e desprezar os reflexos de grande parte da população relativamente a problemas de cultura, religião e comportamento. Não! Não são as virtudes da democracia e das esquerdas e dos social-democratas e dos democratas-cristãos que fazem os Trump e os seus piores regimes. São os seus defeitos, os seus erros e a sua crescente miopia.

As esquerdas democráticas que não se libertam das amarras estalinistas. Os democratas que permitem a corrupção. Os políticos que protegem os políticos e seus funcionários. A democracia que defende os privilegiados e permite a desigualdade. É incapaz de realizar a justiça e deixa correr a corrupção. Protege os amigos e persegue os adversários. Ataca a educação privada, a fim de evitar a comparação. Cerca a saúde privada, por que receia o paralelismo. Aumenta sistematicamente os impostos. Acarinha a função pública, em detrimento dos trabalhadores das empresas privadas. Deixa correr os offshores na convicção de que os seus beneficiários apoiarão um dia a democracia. Privilegia sempre os negócios escuros, os capitalistas instantâneos, os especuladores, os vendedores de empresas e os compradores de favores. Recusa e combate a igualdade de direitos e deveres entre público e privado, nas leis laborais, na educação e na saúde.

Não são os democratas que fazem os fascistas, os comunistas, os terroristas, os arrogantes, os populistas… Mas são os seus erros, os seus defeitos e os seus vícios que inevitavelmente conduzem à destruição da democracia. Como se sabe há muito, esta cai por dentro, não por via de assalto exterior.

Trump faz parte do mundo que nós criámos. Fomos nós que o fizemos.

Sociólogo

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AMÉRICA  DONALD TRUMP  PARTIDO REPUBLICANO  EXTREMA-DIREITA  DEMOCRACIA  HISTÓRIA  POPULISMO

COMENTÁRIOS:

Adolfo-Dias EXPERIENTE: A lucidez de António Barreto é sempre extraordinária! 09.01.2021      Paulo J. H. Dantas da Costa INICIANTE: Caro Sr. António Barreto, que grande lucidez, muito obrigado. Portugal já quase não tem Estadistas, mas o senhor é uma referência. Por favor, enquanto puder, não deixe de iluminar. Obrigado      maivone.897019 INICIANTE: Mas os EUA não têm ricos a pedir para pagarem mais impostos? Têm assim tantos funcionários públicos e são tão privilegiados ou têm dos piores serviços públicos , tal como o Brasil, por exemplo? Andei a ler os jornais errados!         mpro EXPERIENTE: Grande trauma o AB, deve ter tido na sua passagem pelo governo, e outras instituições por onde passou. A culpa é das esquerdas e, da democracia, não das pessoas que a coberto nestas instituições, não cumpriram e, não foram castigados. Os vigaristas, os oportunistas, os fascistas, os xenófobos, os populistas têm razão de o ser. A culpa será de alguém, menos deles e da direita que não cumpre o seu desígnio democrático e civilizado. Grande pensamento. O AB, já pensou em definir-se como cidadão? Normalmente a psicanálise trata estes problemas.         Adolfo-Dias EXPERIENTE: Se o que o senhor leu no artigo de António Barreto foi uma desculpabilização da direita, então não sabe ler... E já dizia o slogan: "Quem não lê é como quem não tem visão"        Alexandre Viegas Maniés INICIANTE: A minha casa é uma casa de portas abertas. Assim também é o meu entendimento da sociedade. Há um contínuo devir, acção-consequência. Nada me estranha todos estes movimentos, da ocupação do Senado, ou outros que ocorrem nos países ditos democráticos, como vão sendo notícia. Políticas xenófobas, discriminatórias. Há muitas interpretações sobre abrangência e poderes da democracia. António Barreto no seu 7.º parágrafo dá um grande salto, da análise à Presidência de Trump grande defensor dos interesses privados passa para uma análise da política e sociedade nacional (meu entendimento). Então a culpa é nossa, cidadãos eleitores que permitimos que o estado ataque tudo o que é privado. Então as parcerias público-privadas que levam milhões do erário público, apoios a escolas e hospitais privados?              mamaciel INICIANTE: Mais um excelente artigo de opinião do Senhor António Barreto.             viana EXPERIENTE: Mundo que o António Barreto criou e continua a defender hipocritamente. "A democracia que defende os privilegiados e permite a desigualdade." Então defende a igualdade?... "Ataca a educação privada (...) Cerca a saúde privada" Mas então agora já defende que deve haver educação e saúde de 1a e de 2a, ou seja desigualdade no acesso à educação e aos cuidados de saúde? Não? Então porque critica o aumento de impostos, reconhecidamente o único modo de diminuir a desigualdade num sistema Capitalista?! "Acarinha a função pública, em detrimento dos trabalhadores das empresas privadas." Então defende as 35h no sector privado? Ah, afinal não?... "Deixa correr os offshores(...) os especuladores, os vendedores de empresas e os compradores de favores." Soa a comunista! Tem noção da sua incoerência?...         Colete Amarelo EXPERIENTE: Muito bem! Isto de democratizar a culpa é uma das muitas maneiras de desfocar o que está realmente na origem dos trumps deste mundo. É o raciocínio próprio de quem se sente impotente por estar livremente preso numa esfera política incapaz de condenar os trumps deste mundo directamente. Excluo-me deste nós invasivo. Tornou-se um vício de pensamento culpar a Democracia, pelo que está mal a nível político e económico. Os erros da Democracia não definem por si o que é a Democracia. Estes erros têm agentes, que são mais o fruto de culturas - cultura de classe - que do ADN do regime democrático. Não são os democratas que enfraquecem a Democracia, isso é ilógico, mas os anti-democratas, que vivem em regime democrático. Conhece algum?:       leonelucas.943072 INICIANTE: Muito bem!:        Jose MODERADOR: AB é um projecto de democrata falhado. Talvez por isso tenha o topete de escrever que o crime de Trump fez não foi ele mas foram os democratas. Trump é a terceira geração, numa família de capitalistas que cresceram encostados ao aparelho da administração dos USA. Foram eles que se fizeram como foram e foi Trump que se fez como é criminoso à margem da lei e finalmente assaltante do Capitólio. A justiça tem de lhe cair em cima já antes que faça pior ou repita o mesmo. O Capitalismo existe não em abstracto, não nos livros, não em lendas de audazes, mas no corpo e alma dos Trump's deste mundo! São esses monstros quem manda nas democracias e pagam aos Estados para reprimir os Povos. São esses monstros que fazem as desigualdades, o colonialismo, ingerência, racismo. Não há desculpa!          Luís Pires INICIANTE: AB ainda não se curou. Tem razão quando realça que é necessário tentar compreender as razões do apoio mentecapto a líderes funestos. Mas a sua falsa "equidistância" (permanente) fá-lo cair na miopia que quer denunciar. Só falta começar a aceitar a mentira dos trumpistas de que não foram eles a invadir o Capitólio. Foi a "esquerda mascarada" ... AB não consegue sair do esquema mental "nem, nem" que o enclausura há anos. Ao menos a sua amiga Bonifácia já transpôs o Rubicão... Homem, assuma que é tudo igual, a direita e a esquerda, e que a Iluminação Pura é propriedade... sua...        orion EXPERIENTE: Claro, parece que toda a gente fala das consequências e ignoram-se as causas. E o cronista aponta-as. Neste aspecto, subscrevo. Trump não nasceu de geração espontânea. E, esquecendo as causas remotas elencando as causas próximas, não podemos deixar de falar na passividade e colaboração de dois presidentes democratas, Clinton e Obama, no reforço das desigualdades e no ascenso dos escandalosos 1% de hiper-ricos. E a questão social na América não está solucionada: é quase patético pensar que com a neutralização de Trump o problema desaparece. O aceno de simpatia de Hillary Clinton à Wall Street, os seus deploráveis, leva-nos a crer que o mal estava instalado e não vai desaparecer por mero ilusionismo. Os quase 50% de Trump poderão ser herdados por qualquer Bannon disponível. E não há Biden que chegue.        Jorge Macedo Rocha INICIANTE: Estas coisas acontecem porque a democracia se dedica ao que o autor aqui fez com evidente prazer: a autoflagelação.      Joao MODERADOR: Credo, nesta o Barreto perdeu as estribeiras, cacetada na função pública, cacetada nos comunistas e por aí fora à boleia de "perceber" ... fiquei quase quase a acreditar que 70 milhões de comunistas é que votaram no Trump.          Isabel F. INICIANTE: É inacreditável. Então, a culpa é da "esquerda "? É sua a responsabilidade pela perda da decência, da honestidade intelectual, do respeito pelas instituições de milhões de seguidores de Trump? É responsabilidade da esquerda que grande parte da direita tenha perdido o respeito por si própria? Um artigo como este mostra que a manipulação intelectual não é um exclusivo de Trump e dos seus seguidores declarados. Há uma direita que divergirá nos fins, mas converge nos meios.         Nuno Silva EXPERIENTE: Também "não sabias de nada"...         Fowler Fowler INICIANTE: Também é importante perceber por que razão o sr. Barreto decidiu adjectivar Trump só após a eleição de Biden. A omissão deste parlapatão durante o mandato do “rei Ubu” nos EUA e no mundo e as farpas que aqui deixa para consumo interno revela bem o carácter deste Steve Bannon de trazer por casa, com algum sucesso, diga-se, na criação da PAF, apesar de a ter adjectivado de “cobarde” quando percebeu que aquele governo de Passos não tinha coragem para assumir como suas as mudanças que, nessa altura, a direita radical pretendia introduzir em Portugal. Por cá, Trumps há muitos! Só que alguns falam baixo, ouvem música clássica e têm maneiras à mesa.      cidadania 123 EXPERIENTE: análise com a qual concordo, e infelizmente muitos do nossos jornalistas activistas, políticos, ainda não entenderam o seu papel activo no crescimento desses personagens. Não percebem que o que eles vêem como políticas humanistas, protecção de minorias, valorização de carreiras, são vistos por outras faixas da sociedade como injustiças, mais impostos, mais desemprego.        Por bom caminho e segue EXPERIENTE: Absolutamente de acordo. Quem diz um Trump diz, à escala, um Ventura. Continuem bem instalados, desprezem metade do país, e inevitavelmente acabarão por ter uma crise que a todos os democratas submergirá.

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