Artigos de João Miguel Tavares sobre as posições políticas extremistas – tanto as da
direita reaccionária como as da esquerda virtuosa, condenando especialmente
esta última, exemplarmente sensível às nobres causas que estão na berra.
OPINIÃO
Pequeno ensaio sobre o tribalismo – parte 1
A obsessão pela pureza da alma e pela
sacralização de certos valores é hoje a grande causa da esquerda, ajudando a
erguer dos túmulos uma velha direita reaccionária.
JOÃO MIGUEL
TAVARES,
PÚBLICO
,29 de Dezembro de 2020,
Em 2020 não tivemos só pandemia – tivemos
também o regresso em força do tribalismo, de uma forma bem mais intensa do que
nos anos da troika. Por tribalismo
entendo não apenas o desejo de pertença a uma comunidade homogénea, que exclui
todo o pensamento divergente, mas também a incapacidade (genuína) de
compreender as razões dos outros, considerados – para utilizar a famosa
expressão de Hillary Clinton – “deploráveis”.
Este neotribalismo não é apenas
português. É antes uma fortíssima
tendência política contemporânea, que na sua essência não é outra coisa senão
uma forma pervertida de religiosidade (já lá vamos), estando por isso envolta
num profundo sentimento de self-righteousness – no caso, a convicção absoluta
de se estar do lado certo da Razão e da História –, o que torna o seu combate
extremamente difícil.
Aquilo que vejo cada vez mais à minha
volta é esta espécie de luxúria da virtude – um prazer intenso em estar possuído
pela certeza do “bem”. A luxúria da virtude é o pilar moral do
neotribalismo, que como todos os tribalismos tem ainda esta consequência: não concebe a existência de vida fora da
tribo. Quem declara não querer
pertencer a uma tribo é imediatamente acusado de estar apenas a simular a
pertença à tribo dos deploráveis.
Basta
verificar como qualquer indivíduo que intervenha no espaço público é
constantemente empurrado para uma trincheira. Tentar viver fora da trincheira em
2020 foi como tentar viver na «no man’s land»durante a Primeira Grande Guerra –
impossível. Nesta pequena reflexão sobre o tribalismo
interessa-me também analisar esta mecânica de entrincheiramento
compulsivo, que complica qualquer tentativa de convocar o bom senso ou a
moderação.
Como todos sabemos, boa parte da
responsabilidade pelo actual tribalismo deve-se à forma como André
Ventura e o Chega
conseguiram dominar as conversas políticas em Portugal. Há quem considere um grande erro dar tanta atenção a
quem só tem um deputado no Parlamento. Só que, a ser um erro, é um erro inevitável,
porque o protagonismo de Ventura advém de ele ter conseguido capturar o espírito de um
tempo propenso aos mais variados tribalismos. Ventura é apenas o protagonista
português de umzeitgeist que em muito o supera, e que nós vemos espalhado por todo
o mundo.
Portanto, embora o Chega e André Ventura possam vir a ser
convocados várias vezes neste conjunto de artigos, é apenas por serem o exemplo
que temos mais à mão. A tese
que pretendo explanar aqui é menos sobre as virtudes da direita e da esquerda,
e mais sobre o problema da virtude em si, e de como a política actual está a
ser contaminada por categorias religiosas, trazendo de volta tempos de má
memória.
Esta afirmação vale para André Ventura, que anda sempre com Deus na
boca, e vale também, e provavelmente até de forma mais intensa, para a esquerda
radical e para o activismo woke, que têm uma força tremenda nas universidades e
na comunicação social – o tal “marxismo cultural” que Ventura diz querer combater. De facto, o tribalismo do século XXI está associado
a um novo puritanismo, e a uma atitude profundamente beata, que só não é
reconhecida como tal por ser praticada por uma geração secularizada, que nunca
foi à missa.
E
dá-se este notável paradoxo: a obsessão pela pureza da alma e pela sacralização
de certos valores é hoje a grande causa da esquerda, ajudando a erguer dos
túmulos uma velha direita reaccionária, que voltou finalmente a ter bons
inimigos contra quem lutar.
Jornalista
TÓPICOS
OPINIÃO
DIREITA ESQUERDA CHEGA ANDRÉ VENTURA..
PODCAST O
RESPEITINHO NÃO É BONITO
COMENTÁRIOS:
PAmaral
INICIANTE: Fala-se de André Ventura porque à
esquerda e direita estão todos amedrontados com o crescimento deste fenómeno
que a meu ver só tem a ver com a saturação das pessoas em geral com os
políticos "do sistema". Eu já não os posso ouvir, não os suporto, por
adivinhar de antemão qual vai ser o seu discurso. Não preciso sequer saber quem
são para adivinhar a sua filiação. Da corrupção, mentira e oportunismo do PS e
PSD à ingenuidade e oportunismo do BE, quem se salva? O PCP mantém no discurso
que não muda há 40 anos alguma integridade. Vamos a ver a IL mas também não
ponho a mão no fogo. Tirando o Afonso Mesquita Nunes (e nunca votei no CDS) não
há políticos interessantes. O fenómeno André Ventura tem a ver com um
sentimento de "estou tão farta que só me apetece partir a loiça
toda". 04.01.2021 José Miguel Lima da Cunha e Costa INICIANTE:
Excelente tema. A velocidade dos
soundbytes leva à superficialidade, ao esquecimento, e à preguiça mental.
Aliado à degenerescência dos princípios e da ética, só pode dar tribalismo.
30.12. José Cruz Magalhaes MODERADOR: Não me detenho na presunção de JM ao intitular o seu
texto, como Pequeno Ensaio sobre o Tribalismo, o que não deixa de ser uma
contraditória apresentação, já que a dimensão do mesmo é, desde logo, anunciada
como primeira parte, de conclusão futura. O que concentra a minha atenção é a
afirmação peregrina de ser a virtude o grande problema que submerge a nação e
que concita e convoca, o surgimento das forças antagónicas (na sua dialéctica, deveremos
chamar-lhes de anti-virtude), sendo por estas a principal responsável. Sem nos
alongarmos na análise, que deverá vir a ser desenvolvida, na segunda parte, agora
prometida, será importante adiantar que, sendo verdade que qualquer acção
determina uma reacção 29.12.2020
DNG. MODERADOR: Portanto entender que não se deve discutir de forma
circular o já discutido, que não é correcto colocar sistematicamente em questão
valores civilizacionais é, segundo o autor uma "fortíssima tendência
política contemporânea, que na sua essência não é outra coisa senão uma forma
pervertida de religiosidade (já lá vamos), estando por isso envolta num
profundo sentimento de self-righteousness – no caso, a convicção absoluta de se
estar do lado certo da Razão e da História –, o que torna o seu combate
extremamente difícil". Haja paciência. Pensa que Ventura está interessado
em saber como se chegou aos valores contra a racismo e a xenofobia por exemplo?
A Ventura apenas interessa explorar o recalcamento. Agora veja, quem não
compreende não tem que ser recalcado?! PAULO CARVALHO FREIRE INICIANTE: O que o JMT aqui diz é verdade, mas não é toda a
verdade. Acontece menos em Portugal que nos EUA. Mas mesmo nos EUA (e
Portugal), é mais uma coisa online que
algo que se passe na rua. Lá como cá, a maior parte das pessoas tem de
trabalhar e cuidar dos filhos, e não resta muito tempo para este tipo de
actividade online. A nossa personalidade online é felizmente diferente da
personalidade em outras situações. Um exemplo: se eu acreditasse
verdadeiramente nas tretas dos Qanon, provavelmente faria mais do que ir a uma
manifestação e propagar as mesmas tretas online. O facto de eles não terem
ainda recorrido à violência sugere que, felizmente, não são crenças assim tão
arreigadas como se diz.
(Dr) Sexo: Nao-Binario EXPERIENTE: Portugal não são os EUA ou o UK, houve uma tentativa
de testar as politicas da interseccionalidade com a Joacine e as coisas não
correram bem, agora em Portugal a divisão está entre o "Sistema" e o
resto, a geringonça acabou com a oposição à esquerda, Portugal vive um regime
de partido único que controla tudo e todos, e basta ver esses opinion makes e essas caixas de
comentários, para ver os grandes puritanos da esquerda e do socialismo português
que salvaram o pais de PPC, mas que ignoram, a crise por que passam muitas famílias.
29.12.2020 cidadania 123 EXPERIENTE: Caro JMT, é importante efectivamente abordar o
problema deste radicalismo fomentado sobretudo pela extrema esquerda, para quem
o mundo ficou a preto e branco. Ou se é anti-racista (tem de ver racismo em
tudo) ou se é racista. Ou se é um precário explorado ou um capitalista sem
escrúpulos. Ou se é um activista protector da natureza, vegan, vegetariano,
escravo do seu cão ou gato, ou um brutal assassino de animais, Assim, ou se é
puro, ou um adepto do Ventura, logo racista, fascista, xenófobo, capitalista,
etc. O problema é que esta suposta divisão social dos cidadãos dividiu o país
político entre quem é do chega e quem é inimigo do chega, e muitos que nunca
votariam no Ventura, mas que detestam toda essa presunção de quem se sente
iluminado, toma um anti-digestivo e lá colocam a cruzinha. 29.12.2020
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