terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O primeiro de três


Artigos de João Miguel Tavares sobre as posições políticas extremistas – tanto as da direita reaccionária como as da esquerda virtuosa, condenando especialmente esta última, exemplarmente sensível às nobres causas que estão na berra.

OPINIÃO

Pequeno ensaio sobre o tribalismo – parte 1

A obsessão pela pureza da alma e pela sacralização de certos valores é hoje a grande causa da esquerda, ajudando a erguer dos túmulos uma velha direita reaccionária.

JOÃO MIGUEL TAVARES,

PÚBLICO ,29 de Dezembro de 2020,

Em 2020 não tivemos só pandemiativemos também o regresso em força do tribalismo, de uma forma bem mais intensa do que nos anos da troika. Por tribalismo entendo não apenas o desejo de pertença a uma comunidade homogénea, que exclui todo o pensamento divergente, mas também a incapacidade (genuína) de compreender as razões dos outros, considerados – para utilizar a famosa expressão de Hillary Clinton – “deploráveis”.

Este neotribalismo não é apenas português. É antes uma fortíssima tendência política contemporânea, que na sua essência não é outra coisa senão uma forma pervertida de religiosidade (já lá vamos), estando por isso envolta num profundo sentimento de self-righteousness – no caso, a convicção absoluta de se estar do lado certo da Razão e da História –, o que torna o seu combate extremamente difícil.

Aquilo que vejo cada vez mais à minha volta é esta espécie de luxúria da virtude – um prazer intenso em estar possuído pela certeza do “bem”. A luxúria da virtude é o pilar moral do neotribalismo, que como todos os tribalismos tem ainda esta consequência: não concebe a existência de vida fora da tribo. Quem declara não querer pertencer a uma tribo é imediatamente acusado de estar apenas a simular a pertença à tribo dos deploráveis.

Basta verificar como qualquer indivíduo que intervenha no espaço público é constantemente empurrado para uma trincheira. Tentar viver fora da trincheira em 2020 foi como tentar viver na «no man’s land»durante a Primeira Grande Guerra – impossível. Nesta pequena reflexão sobre o tribalismo interessa-me também analisar esta mecânica de entrincheiramento compulsivo, que complica qualquer tentativa de convocar o bom senso ou a moderação.

Como todos sabemos, boa parte da responsabilidade pelo actual tribalismo deve-se à forma como André Ventura e o Chega conseguiram dominar as conversas políticas em Portugal. Há quem considere um grande erro dar tanta atenção a quem só tem um deputado no Parlamento. Só que, a ser um erro, é um erro inevitável, porque o protagonismo de Ventura advém de ele ter conseguido capturar o espírito de um tempo propenso aos mais variados tribalismos. Ventura é apenas o protagonista português de umzeitgeist que em muito o supera, e que nós vemos espalhado por todo o mundo.

Portanto, embora o Chega e André Ventura possam vir a ser convocados várias vezes neste conjunto de artigos, é apenas por serem o exemplo que temos mais à mão. A tese que pretendo explanar aqui é menos sobre as virtudes da direita e da esquerda, e mais sobre o problema da virtude em si, e de como a política actual está a ser contaminada por categorias religiosas, trazendo de volta tempos de má memória.

Esta afirmação vale para André Ventura, que anda sempre com Deus na boca, e vale também, e provavelmente até de forma mais intensa, para a esquerda radical e para o activismo woke, que têm uma força tremenda nas universidades e na comunicação social – o tal “marxismo cultural” que Ventura diz querer combater. De facto, o tribalismo do século XXI está associado a um novo puritanismo, e a uma atitude profundamente beata, que só não é reconhecida como tal por ser praticada por uma geração secularizada, que nunca foi à missa.

E dá-se este notável paradoxo: a obsessão pela pureza da alma e pela sacralização de certos valores é hoje a grande causa da esquerda, ajudando a erguer dos túmulos uma velha direita reaccionária, que voltou finalmente a ter bons inimigos contra quem lutar.

Jornalista

TÓPICOS

OPINIÃO  DIREITA  ESQUERDA  CHEGA  ANDRÉ VENTURA.. PODCAST O RESPEITINHO NÃO É BONITO

COMENTÁRIOS:

PAmaral INICIANTE: Fala-se de André Ventura porque à esquerda e direita estão todos amedrontados com o crescimento deste fenómeno que a meu ver só tem a ver com a saturação das pessoas em geral com os políticos "do sistema". Eu já não os posso ouvir, não os suporto, por adivinhar de antemão qual vai ser o seu discurso. Não preciso sequer saber quem são para adivinhar a sua filiação. Da corrupção, mentira e oportunismo do PS e PSD à ingenuidade e oportunismo do BE, quem se salva? O PCP mantém no discurso que não muda há 40 anos alguma integridade. Vamos a ver a IL mas também não ponho a mão no fogo. Tirando o Afonso Mesquita Nunes (e nunca votei no CDS) não há políticos interessantes. O fenómeno André Ventura tem a ver com um sentimento de "estou tão farta que só me apetece partir a loiça toda". 04.01.2021      José Miguel Lima da Cunha e Costa INICIANTE: Excelente tema. A velocidade dos soundbytes leva à superficialidade, ao esquecimento, e à preguiça mental. Aliado à degenerescência dos princípios e da ética, só pode dar tribalismo. 30.12.       José Cruz Magalhaes MODERADOR: Não me detenho na presunção de JM ao intitular o seu texto, como Pequeno Ensaio sobre o Tribalismo, o que não deixa de ser uma contraditória apresentação, já que a dimensão do mesmo é, desde logo, anunciada como primeira parte, de conclusão futura. O que concentra a minha atenção é a afirmação peregrina de ser a virtude o grande problema que submerge a nação e que concita e convoca, o surgimento das forças antagónicas (na sua dialéctica, deveremos chamar-lhes de anti-virtude), sendo por estas a principal responsável. Sem nos alongarmos na análise, que deverá vir a ser desenvolvida, na segunda parte, agora prometida, será importante adiantar que, sendo verdade que qualquer acção determina uma reacção  29.12.2020

DNG. MODERADOR: Portanto entender que não se deve discutir de forma circular o já discutido, que não é correcto colocar sistematicamente em questão valores civilizacionais é, segundo o autor uma "fortíssima tendência política contemporânea, que na sua essência não é outra coisa senão uma forma pervertida de religiosidade (já lá vamos), estando por isso envolta num profundo sentimento de self-righteousness – no caso, a convicção absoluta de se estar do lado certo da Razão e da História –, o que torna o seu combate extremamente difícil". Haja paciência. Pensa que Ventura está interessado em saber como se chegou aos valores contra a racismo e a xenofobia por exemplo? A Ventura apenas interessa explorar o recalcamento. Agora veja, quem não compreende não tem que ser recalcado?!           PAULO CARVALHO FREIRE INICIANTE: O que o JMT aqui diz é verdade, mas não é toda a verdade. Acontece menos em Portugal que nos EUA. Mas mesmo nos EUA (e Portugal), é  mais uma coisa online que algo que se passe na rua. Lá como cá, a maior parte das pessoas tem de trabalhar e cuidar dos filhos, e não resta muito tempo para este tipo de actividade online. A nossa personalidade online é felizmente diferente da personalidade em outras situações. Um exemplo: se eu acreditasse verdadeiramente nas tretas dos Qanon, provavelmente faria mais do que ir a uma manifestação e propagar as mesmas tretas online. O facto de eles não terem ainda recorrido à violência sugere que, felizmente, não são crenças assim tão arreigadas como se diz.          (Dr) Sexo: Nao-Binario EXPERIENTE: Portugal não são os EUA ou o UK, houve uma tentativa de testar as politicas da interseccionalidade com a Joacine e as coisas não correram bem, agora em Portugal a divisão está entre o "Sistema" e o resto, a geringonça acabou com a oposição à esquerda, Portugal vive um regime de partido único que controla tudo e todos, e basta  ver esses opinion makes e essas caixas de comentários, para ver os grandes puritanos da esquerda e do socialismo português que salvaram o pais de PPC, mas que ignoram, a crise por que passam muitas famílias. 29.12.2020        cidadania 123 EXPERIENTE: Caro JMT, é importante efectivamente abordar o problema deste radicalismo fomentado sobretudo pela extrema esquerda, para quem o mundo ficou a preto e branco. Ou se é anti-racista (tem de ver racismo em tudo) ou se é racista. Ou se é um precário explorado ou um capitalista sem escrúpulos. Ou se é um activista protector da natureza, vegan, vegetariano, escravo do seu cão ou gato, ou um brutal assassino de animais, Assim, ou se é puro, ou um adepto do Ventura, logo racista, fascista, xenófobo, capitalista, etc. O problema é que esta suposta divisão social dos cidadãos dividiu o país político entre quem é do chega e quem é inimigo do chega, e muitos que nunca votariam no Ventura, mas que detestam toda essa presunção de quem se sente iluminado, toma um anti-digestivo e lá colocam a cruzinha. 29.12.2020

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